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Manuel da Costa |
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No
último dia de cada mês, por volta das onze horas da manhã, o velho guarda-roupa
de D. João V, João Correia Manuel de Aboim, abria de mansinho a porta do
quarto do rei, entrava ajoujado com uma, pesada alcofa de esparto, e ia
meter‑lha misteriosamente debaixo da cama. Já se sabia. Ao darem as
onze badaladas na torre da Capela Real, a mão decrépita de João Manuel
erguia o rodapé branco do leito, a alcofa açapada pojava no chão - e na
sombra, esbeiçando do esparto torcido, qualquer coisa de vivo, de metálico,
luzia, faiscava, escorregava tinindo. Era dinheiro.
Mas
que dinheiro era aquele, trazido com tanto recato da Moeda e metido com
tamanho segredo debaixo da cama, do rei? Se se fizesse esta pergunta ao velho
guarda-roupa, ele encolhia os ombros, estendia de esguelha um olho malicioso,
beijava de cruz dois dedos, e abalava sem responder. Só o gordo frei Caetano,
padre bernardo de Alcobaça, espécie de almocreve chambão e grosseiro que D.
João V fizera seu pregador, não tinha papas na língua: em vendo, na sombra
dos corredores, passar a alcofa, latejava-lhe o cachaço, fuzilavam-lhe os
olhos, entouçava os punhos felpudos, e rugia apopléctico:
-
Lá vai o dinheiro das fêmeas!
Frei
Caetano dizia a verdade. Era aquele o dinheiro com que D. João V, casado
havia poucos anos, pagava as suas frequentes viagens a Citera. Eram aquelas
pequeninas moedas de oiro, lampejantes e novas, batidas nos punções admiráveis
de Mengin, que contavam, no seu tinido musical, caindo como horas num relógio,
todos os beijos galantes de Sua Majestade. E se Mariana de Áustria não fosse
uma alemã fria, egoísta, impassível, indiferente a tudo, alheia a tudo,
metida sempre no seu quarto com as damas, com os cães, com os mestres de música,
com o jesuíta Stieff, - essas moedas teriam contado também, uma a uma, as lágrimas
da rainha. Era o dinheiro do amor. Era o dinheiro do pecado. Era a moeda do
fauno real, por cujo espelho de oiro, tão pequeno corno o espaço que ocupa
um beijo, passavam, num clarão fugitivo, hespérides nuas sorrindo, ancas róseas
de ninfas rebolando na relva, peitos loiros de nereida salpicados de espuma e
húmidos das ondas, - as nereidas, as ninfas, as hespérides, as bacantes da
corte e da ópera, dos conventos e do paço, que D. João V sentiu, aspirou,
beijou, e que Pedro António Quillard, o Watteau de Queluz, deixou pintadas
por todos os altos de porta, por todos os tetos de sala, por lodos os tampos
de espineta. Dinheiro vulgar, dinheiro como o outro? - perguntarão. Isso sim!
D. João V era lá homem que pagasse um beijo na mesma moeda em que os pagava
toda a gente! Não, dinheiro especial, dinheiro novo, dinheiro único, -
dinheiro seu. O amor era ainda uma expressão da sua munificência. Um rei que
ama - pensava ele - deve amar como um deus. Júpiter não poderia comprar uma
carícia com o dinheiro dum mortal. Também ele, Júpiter de Odivelas, queria
que todas as Alcmedas de Santa Clara, todas as Ledas de S. Bernardo se
lembrassem, ao ver pojar o oiro nas mangas dos seus hábitos, - que era o rei
que lhes pagava. A ordem foi para a Moeda: Vieira Lusitano desenhou a efígie
de D. João v; Mengin gravou os punções; abriram-se ferros e cunhos novos, -
e, dali a pouco, a primeira alcofa do «dinheiro das fêmeas» entrava no Paço
da Ribeira. Quem visse as moedas a bocejar do esparto, cuidaria que eram
dobras de oiro de dois escudos, meias peças vulgares de 3$200 réis; mas se
as voltasse, se as trasvolteasse nos dedos, se lhes procurasse as cruzes, - não
as encontrava. Tinham, de ambos os lados, em ambos os cunhos, a efígie
coroada, a efígie cesárea de D. João v. Eram dobras de duas caras.
-
Chegou o dinheiro, meu senhor!
O
velho João Manuel levantava os alparavazes do leito, o rei espreitava para
debaixo da cama, - e vinha à noite Manuel da Costa, o imprescindível Manuel
da Costa, homem sardento, ruivo, cambaio, com a cruz de Cristo ao pescoço,
confidente e alcoviteiro de D. João V, contar as peças, apartá-las, empilhá-las
em montes, cinco, seis, nove, doze, tantos quantas eram as mesadas certas e as
aventuras incertas de Sua Majestade, atar as pilhas de dobras em sacos moles
de coiro ou de badana, e escrever em cada saco, discretamente,
respeitosamente, um nome de mulher.
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As Dobras de duas Caras |
Quantos
nomes galantes traçou a mão firme de Manuel da Costa, durante esse conto
brejeiro de La Fontaine que foi toda a vida de D. João V! Quantas figuras de
mulher nós vemos passar, esfumadas, empalidecidas, quase desfeitas na névoa
distante do tempo, por detrás desses sacos grosseiros de dobras de oiro com
que à magnificência do rei pagou a sensualidade hirsuta e gorda do sileno.
Veem
de toda a parte, das varandas do Paço e dos pátios de comédias, das adufas
verdes da rua suja e das grades doiradas dos mosteiros ricos. Agora, é sóror
Madalena Máxima, a freira bernarda a cujo ventre um dos meninos de Palhavã
vai buscar a faixa contraveirada de prata das bastardias, - logo é a cómica
Petronilha Brasilii, responsável pelo ataque de paralisia do rei, fugida para
Madrid com trinta azémolas carregadas de baús: hoje, a cigana Margarida do
Monte, morta no convento da Rosa e amortalhada no hábito de S. Domingos, -
amanhã a Francesa, mãe de D. António, tão francesa, talvez, como a cortesã
Dionísia Águas Belas; um dia, a pimentinha Madre Paula, com as suas pias de
água benta e os seus bispotes de prata, - noutro, a moça azevieira da «Flor
da Murta», de cujo irmão, o sapateiro Bento Fernandes, D. João V faz um
embaixador a Roma: - e, além destas, quantas outras, instantes de loucura e
eternidades de fastio; rosas dum dia, que o rei aspira e desfolha, beija e
desdenha; ilusões de volúpia vindas da ópera das Paghetti ou dos claustros
de Santa Clara; saloias de carapuço colhidas pelos quinchosos verdes de
Belas; franças novinhas da Rua Nova sorvadas já por frades gulosos de S.
Francisco, quantas aventuras, quantas saias, quantas mulheres, povo fecundo e
corte galante, tacão de perdiz e tamanco arreganhado, por cujos toucadores, e
leitos, e baús, e bufetinhos, bateram, tinindo, chispando, faúlhando,
escorrendo, as dobras de oiro de duas caras, a moeda de amor de D. João V.
Mas
- destino de todas as moedas - as dobras bifrontes eram dinheiro, e esse
dinheiro corria. Da Moeda para os sacos de Manuel da Costa; dos sacos para as
arcas das amantes do rei; das arcas de roupa, cheirosas de alecrim e de água
de Córdova, de alfazema e de rosários ,de peros secos, para as mãos
indiferentes de todo o mundo, - adelos e mercadores, ourives e algibebes,
genoveses e capelistas, bruxas e pasteleiros, mestres de cravo e de solfa, de
francês e de dança. Eram meias peças; eram dobras de dois escudos: - era
dinheiro como qualquer outro. Aceitavam-no todos: só as velhas encazinavam
com ele. Quando uma dona do Portugal antigo, enrugada como um pêssego de
sequeiro, ainda com o seu festo e o seu manto de Lamego, o seu breve-da-marca
e os seus rosários à cinta, lobrigava uma dobra de duas caras entre as peças
de oiro que lhe corriam nas mãos - uma moeda do diabo entre o dinheiro de
Deus Nosso Senhor - era certo vê-la agastar-se, arrenegar-se, torcer a boca
de enjoo, bolir na moeda com a ponta dos dedos, jurar que ela ainda cheirava a
pecado, e benzer-se fungando, espirrando:
-
T'arrenego! Dinheiro de Judas!
Mas
nenhuma o deitava fóra.
Júlio
Dantas
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