Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Maridos cucos

Marido cuco

Marido cuco


 

Sabem como no tempo de D. João V chamavam aos maridos infelizes? É o bispo do Grão-Pará que o diz: chamavam-lhes «cucos».

Porquê? Frei José Queirós não entra em pormenores. Mas sabe-se. O cuco é urna ave que tem o mau costume de pôr os ovos no ninho dos outros; - por antítese, o século XVIII chamou «cuco» ao marido que deixava entrar os outros no ninho dele. Havia, segundo os papéis dos conventos e as mercuriais do tempo, muitas espécies de «cucos». Os maridos infelizes foram pitorescamente classificados pelos moralistas portugueses de 1700 - ao que parece, pela fantasia turbulenta dalgum frade bernardo de Bouro ou de Tarouca - existindo ainda, nalgumas terras da Beira, a tradição remota dessa classificação. «Cuco», em geral, era o marido duma mulher infiel, «ante-cuco», o homem casado com mulher que fora doutro antes do casamento, mas que se portava bem depois de casada; «re-cuco», o marido de mulher que fora doutro ou doutros antes do casamento e que continuava a portar-se mal depois de casada; «chiscismelro», o marido que sabia das infidelidades da companheira e não se importava com elas; «ribeirinho», o marido consentidor, que ainda por cima recebia e obsequiava os amantes da mulher; finalmente, «assombrado», o marido que estivera para ser cuco por um triz, mas que o não chegara ser por milagre. Desde as salas do Paço até às vielas da Madragoa, desde as casas solarengas, hirsutas de cunhais de armas, até às hortas do Ducado gralhantes e bezoantes de povo, a Lisboa fidalga do século XVIII, desse admirável século que, na frase dos Goncourt, «a affiché le scandale, mais a connu l'amour», transbordou de cucos e de recucos, de chiscismelros e de ribeirinhos, de ante-cucos e de assombrados. Foram tantas, entre nós, as intrigas amorosas, tantos os maridos infelizes, e tão frequentes os escárnios públicos a que eles estavam sujeitos, que as circunstâncias aconselharam a publicação do alvará de 26 de Setembro de 1769 e obrigaram o marquês de Pombal a mandar proibir, sob pena de Aljube, por outro alvará célebre, que se persistisse na brincadeira de mau gosto de andar a pendurar chavelhos, de noite, pelas portas de toda a gente.

Como explicar a revoada de infelicidades dos maridos setecentistas? Pela frágil virtude da mulher portuguesa, que, na opinião do ci-devant duque do Châtelet, «excedia no galanteio todas as mulheres da Europa»? Decerto. Mas não lhe façamos a injustiça de a culpar a ela só. A grande razão dos desastres conjugais na sociedade lisboeta do século XVIII está muito na fragilidade das mulheres; mas está, mais ainda, na ciúme dos maridos.

No ciúme? Mas o ciúme não é um efeito? Não. Foi uma causa. Os portugueses passaram sempre por ser os homens mais ciumentos do mundo. «Ciumentos e bentos», - diz Montesquieu, em 1723. «Muito dados a ciúmes», - insiste Dalrymple, que aqui esteve em 1774. «Vis, soberbos, escarnecedores, presunçosos, ignorantes e excessivamente ciumentos das rnulheres», - acrescenta o duque do Châtelet, espécie de jornalista impertinente que visitou em 1777 o marquês de Pombal. E o alemão Link conclui, em 1797, num repelão de mau humor: «ciumentos e tenebrosos». Há nestas impressões dos estrangeiros que nos visitaram, nem sequer sempre rigorosamente delicadas, uma evidente sugestão da Espanha; mas ainda fica uma grande parte de verdade para Portugal. O português do tempo de D. João V e de D. José foi ciumento por índole, por fatalidade, por herança, por carácter, por essa desconfiança taciturna que lhe adveio da sua hereditariedade torva de beatos e de inquisidores, por essa orgulhosa hipertrofia do sentimento da posse que constituiu nele a noção fundamental da honra. O seu ciúme obstinado e violento explica todos os seus desastres matrimoniais. O seu errado conceito da nobreza do lar e do respeito patriarcal da família, levando o português a fechar a mulher a sete chaves, a guardá-la estiolada em recâmaras e oratórios, a mandá-la espiar por lacaios e mochilas, a acusá-la da sua própria beleza como dum crime, a afligi-la de desconfianças que eram vexames, a torturá-la de suspeitas que eram afrontas, - foi criando pouco a pouco, mesmo nas mais dóceis, mesmo nas mais recatadas, um natural instinto de revolta, um irreprimível sentimento de dignidade ofendida, que foi a razão suprema de todo os adultérios e a dolorosa justificação de todos os crimes. Refugiado na noção estreita de moral conjugal que lhe apresentava a mulher como uma baixela de prata, fechada e aferrolhada todo o ano para só sair da arca por festas, - o marido português do século XVIII, na preocupação absorvente de não ser enganado, fez tudo quanto era preciso para não poder deixar de o ser. Foi à sua educação de cavalariça e de mosteiro, de picadeiro e de oratório: foi à sua falsa noção do respeito pela mulher; foi, acima de tudo, ao supersticioso horror que à sua fidalguíssima carcaça causava a ideia de ser cuco, -que ele deveu, incontestavelmente, a glória de o ter sido.

Mas - coisa curiosa! - o português, que tinha ciúmes de toda a gente, ciúmes de tudo o que o rodeava, ciúmes dum candeeiro, ciúmes dum cão de fralda, ciúmes dum papel de solfa, ciúmes dum pé de vento, só não era cioso da maior peste que lhe entrava em casa: o frade. Para a luz do dia, - rótulas fechadas. Para o frade, - portas abertas. É Montesquieu que o diz: «O português e o espanhol não são capazes de deixar a mulher sozinha, durante meia hora, com um velho de oitenta anos; mas consentem da melhor vontade que ela se feche no quarto, o dia inteiro, com o franciscano robusto que a confessa». E o autor desconhecido da Description de la ville de Lisbonne, publicada em Paris em 1738, acrescenta: «As mulheres portuguesas não têm licença para falar senão com frades; fora disso, entretém-se em casa, por dentro das gelosias, a olhar quem passa na rua». Era o frade que as ensinava a ler; era o frade que as consolava; era o frade que lhes levava as indulgências e as folhinhas de Lausperenes: era o frade que cantava com elas motetes à viola, que lhes dobava nos braços as meadas de seda, que lhes levava na manga do hábito as cartas de amor; era o frade, sempre o frade, que a cólera dos maridos ou a vara de prata dos alcaides encontrava invariavelmente, sofraldando o chiote, chocalhando as camândulas, resmungando o breviário, no fundo de todos os dramas domésticos e de todas as intrigas de alcova. Foi um frade capucho que facilitou, em 1724, a fuga para Tuy do marquês de Gouveia D. João com a mulher de D. Lourenço de Lencastre; foi por causa dum frade que, em 5 de Dezembro de 1733, o fidalgo Luís Álvares de Andrade mandou matar por um mulato a mulher D. Micaela Joana; foi com um frade trino, frei André Guilherme, que o cirurgião Isaac Elliot surpreendeu a mulher sobre uma espreguiçadeira de damasco, matando-os a ambos com as facas do ofício e com tiros de pistola em 26 de Novembro de 1731; sempre que numa alcova do século XVIII se levantava o cortinado dum leito, era a face sanguínea, a face bestial do frade que surgia, entre potes de prata, encapuçada na testeira negra do capelo, as avarcas às costas, o olho felpudo piscando, como um diabo de iluminura pendurado nas letras de oiro dum antifonário.

Por que é que os frades de Bouro
Fazem tanto casamento
Para haver moças casadas
Que os vão catar ao convento...

O cuco nobre, o circo fidalgo, o cuco que se esquartelava , a esmaltes e metais no teto doirado da Sala dos Veados, - vingava-se, assassinando. Ou, melhor ainda, mandava matar a mulher por um negro ou por um mulato. Calderon de La Barca, no Médico de su Honra, tinha ditado a lei da nobreza: «la sangraré!». Foi o «tue Ia!» do século XVIII. Matava-se por simples denúncia, por mera suspeita. «Os maridos portugueses, conhecendo a extrema fraqueza das mulheres que Deus lhes deu - diz ainda o duque do Chatelet - nunca as largam, fecham-nas em casa, correm-lhes as rótulas, vigiam-nas dia e noite, e se encontram vivalma que desperte suspeitas, cravam-lhe no coração a faca que trazem consigo». Mas a lei não dava ao marido o direito de matar; era ela que punia. Cucos e recucos, chiscismelros e ribeirinhos, tinham o seu caso previsto no Livro 5.° das Ordenações e no alvará de 26 de Setembro de 1769. Se o marido acusava, - adúltero e adúltera sofriam morte natural, com perda dos bens para o marido e filho; se o marido não acusava - degredo dos dois para Angola por dez anos; se o marido perdoava à mulher, - degredo perpétuo do adúltero pára o Maranhão; se o marido consentia, - degredo perpétuo dos três, o adúltero para Angola, marido e mulher para o Brasil...

E tudo isto, porquê?

É Maria de Riva que responde, na Veneza do século XVIII, ao embaixador de França, conde de Froullay:

- «Por que os maridos não sabem amar...»

 

Júlio Dantas

 

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