Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Namoro de Bufarinheiro

O Faceiro bufarinheiro

O Faceira bufarinheiro


 

É dia de procissão. O sol esplende. O alecrim e o mirto juncam as ruas. Armam‑se de damasco todas as casas. Todas as janelas se abrem. Não fica fechada uma rótula, uma adufa, um postigo. Não há fresta, nem lumieira, nem gelosia, onde não espreite, não fareje, não assome, toucada de amarelo, mosqueada de sinais, pingada de jóias., uma cabeça de mulher. A Lisboa de todo o ano, silenciosa, embiocada, aferrolhada, morta, – revive, renasce, cascalha de risos, empoeira-se de oiro, pinta-se de colchas da Índia, abre, floresce, desabrocha, como uma grande roseira, em milhares de caras bonitas. É a aleluia das janelas. É o Lausperene da formosura. Nesse dia, o faceira, o casquilho, o farsola namorador está como o peixe na água. Espaneja‑se, arregala-­se, sorri. Pode passar revista a todas as “meninas bandarras” da cidade. Pode, à vontade, «namorar de bufarinheiro».

O que era, na Lisboa da primeira metade do século XVIII, o “namoro de bufarinheiro”? Um grande passeio solene pela cidade, com acompanhamento de piscações de olho, de mordeduras de beiço, de cortesias “d'aba beijada”. Chamavam-lhe assim, por que o faceira namorador ia pelo meio da rua, de carinha no ar e chapéu na mão, olhando as janelas “como um bufarinheiro que apregoa”. Não era, designadamente, o namoro para uma ou para outra, para esta ou para aquela; era o galanteio para todas, – era um jubileu de amor. Em dia de procissão não havia “frança” bonitinha que não recebesse, atiradas da rua como uma flor, a sua mordedura de beiço, o seu olho piscado, a sua cortesia em Gloria Patri. Não ficava faceira, não ficava galante, por mais jarra, que não apanhasse também à lambugem do chão, caídas dalguma janela como fruta madura, uma mirada de olhos, um trejeito de boca, um aceno de leque. Se pegava, era barro; se não pegava, era graça. E o “bufarinheiro” lá ia, aos pulinhos, de nariz no ar, a beber janelas, a engolir cortinas, olhando agora à direita, mirando logo à esquerda, entre um enxame de faceirinhas com gravata de garrote e chapéu “à Anastácia”, que namoravam como ele, que bufarinhavam como ele, que olhavam, que cortejavam, que rompiam em ais de espanto para estes olhos, para aquele toucado, para aquela mãozinha, sempre em tiple, sempre em falsete:

- Ai, como é linda!

- Ai, o prazer de orelhas furadas

- Ai, a boquinha de “ai Jesus”!

- Madamita, me alegro!

- Olha o desdénsinho!

- O melindre!

E elas, vendo-se adoradas, sentindo-se comidas com os olhos, sorriam lá de cima, faziam momos, olhavam em alvo, brincavam com o broche da testa, escondiam o focinhito, trejeiteavam com o leque, – ou então, mais buliçosas, debruçavam-se, espeitoravam-se, penduravam-se das colchas vermelhas, cochichavam, riam de esfusiote, estendiam o abanico, apontavam ora este ora aquele, ora um ora outro, o dos “braços de arame” e o da “casaca de mosquito”, o do “chapéu de assobio” e o dos “calções de mamar”, - e doidas, risonhas, bêbedas de vento, afogueadas de sol, tontas de liberdade, sem verem que já lá vinha para a Sé o coche doirado do senhor Patriarca, espreitavam, segredavam, riam das janelas:

- Ai, mana, aquele casaca!

- E o outro; como vai frança!

- Olha aquele dos olhinhos de carocha!

- Mira, minha mana, o casaquinha de enjoo!

- Ai, Jesus, a barriga do frade!

- Chama-se a parteira, mana, que ele já vai para tôda a hora i

E o povo miúdo, a mafra baixa, que enxameava, que gritava, que tairocava na areia das ruas, que se esgalgava para as janelas, que pasmava na Rua Nova diante dos arcos de pedra armados de panos de Arrás, – fregonas, alfamistas, regateiras, mariolas, fandangos, chocas de manada e cruz-diabos das funções, ansiosos por ver o senhor rei, e a senhora rainha, e as basílicas, e as bandeiras dos ofícios flutuando ao vento, e o rei David, de grandes barbas, a dançar atrás do pálio, – assistia indiferente ao namoro dos faceiras, deixava-os bufarinhar à vontade, meter bufarinhando ao Arco dos Pregos, seguir bufarinhando pela Rua Nova, galgar bufarinhando os Ourives do Ouro, afunilar-se bufarinhando ainda pela rua dos Escudeiros, espadanar, bufarinhando sempre pelo terreiro do Rossio. Só os garotos e os michos lhes iam na colada, seguindo os ranchos de faceiras, macaqueando-os, imitando-os na piscar do olho, no morder do lenço, nas cortesias para as janelas, tão variadas e tão características do namoro de bufarinheiro, – a cortesia “de mergulho”, rápida, sacudida, afável; a cortesia em Gloria Patri, profunda, respeitosa; a cortesia “d'aba-beijada”, pérola das cortesias, em que o joelho esquerdo se dobrava, o pé direito recuava escarvando como mula de alquilér, o busto se encolhia em mea-culpa, e, na impossibilidade de beijar na face a bandarrinha cortejada, se beijava de assobio a aba do chapéu. E enquanto o faceira parava no Rossio a tomar o vento, fazendo beicinho, arregaçando o quitó, afagando os mostachos da cabeleira, emborcando-se para os coches, para as seges, para os florões, para as cadeirinhas que passavam – que a tudo isto obrigava o namoro bufarinhado – os michos, os negrinhos, os saltarelos, os palmilhas suadas guinchavam-lhe, cantavam-lhe, ganiam-lhe nas costas um “minuete maroto”:  

Olha o faceira

Com seu requeijão,

Vem ao Rossio

Comê-lo com pão...

A procissão passava. O sol ardia. Vinha o rei, a pé; os meninos-órfãos a cavalo; cónegos de mitra que pareciam bispos; monsenhores vermelhos que lembravam cardeais; o Patriarca dormitando entre flabelos; e no couce do palio de nove panos, que arfava como uma asa enorme faúlhante de oiro, – as chacotas, as folias, as danas de farta-velhacos, o Manuel Trapo e os mochatins, a Marisápoles e Juan Rana, bailando, dessalgando-se, abanando saracoteios, sapateando fandangos, como se a própria alma do povo fosse, dançando, atrás daquele palio. O enxame dos jarretas, dos bromas, dos casaquinhas, das maranhôas, dispersava-se, formigava, bezoava; as bandarras janeleiras, pouco a pouco, recolhiam-se para almoçar o doce dos seus bofetes, entre o frade confessor e a mulata dengosa; rescendia mais, depois de pisado, o alecrim das ruas; – e o faceira, ao fim de três horas de procissão e de bufarinheiro, a cabeça ourada, a casaca escorrida, os braços de arame amolgados das ombradas, o pescoço dorido de tanto olhar as janelas, calcorreava para casa, debaixo da raçada crua do sol, deslumbrado, em êxtase, como se a imagem rósea das onze mil virgens lhe passasse, revoando, por diante dos olhos.

Nisto, ao entrar numa viela torta do Bairro Alto, o “França” sente que lhe repuxam a testa, que lhe arrepiam a nuca; estala-lhe, retesado, o cabelo do topete; vê passar no chão a sombra de qualquer coisa que voa, – e, quando leva a mão à cabeça, gritam-lhe de cima

- Mata a galinhola! Mata a galinhola!

Um garoto, duma água-furtada, tinha-lhe pescado a cabeleira.

 

Júlio Dantas

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