Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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O PERALTA

O Peralta

O peralta



O século XVIII português deu‑nos, sucessivamente, três tipos diferentes do elegante namorador. Cada um desses três tipos correspondeu a uma das três fases distintas por que passou a sociedade portuguesa, desde, que D. João V começou a estrangeirar a corte, em 1707, até que, pela chegada dos Franceses, o «jinota» do botequim das Parras (de Jinó, corruptela de Junot) se tornou, com o seu spencer, as suas pantalonas brancas e a sua abotoadura de ouro à` Talavera, o árbitro incontestado de todas as elegâncias lisboetas de 1808. A sumptuosidade brasileira de D. João V deu o «faceira»; a burguesia parvenue do consulado de Pombal, deu o «casquilho»; o período de beatério corcunda que se seguiu, em 1777, à revolução aristocrática e católica da Viradeira, - deu o «peralta». O faceira, eminentemente ridículo, foi a expressão duma nobreza inculta de mosteiro e de estrebaria, afrancesada e civilizada à força; o casquilho, profundamente snob, caracterizou a plutocracia pombalina dos sindicatos e das companhias, do briche e dos faraós; o peralta, escandalosamente efeminado, havia de ficar, na história galante da sociedade portuguesa de Setecentos, como o símbolo duma fidalguia degenerada e imbecil, consanguínea e devota, loira e tatebitate, ajoelhada, em adoração, diante dum arcebispo almocreve e duma rainha doida. De resto, faceira, casquilho, peralta, igualmente saltitantes, dengosos, ceceosos, polvilhados, borrifados de joias, irmãos-gémeos no ridículo e na impertinência, na devoção e na inutilidade, foram três caricaturas sucessivas, três versões diferentes do mesmo parvo autêntico e fundamental: o elegante português do século XVIII.

Para o estudo do peralta de 1780 a 1790, se falta a iconografia, sobeja, pelo contrário, a literatura. E através dessa literatura, onde cantam por vezes, como cigarras de oiro, os versos de Filinto, que nós conhecemos hoje a figura insexual, pintada, e babada de rendas do «francelho-mor» do tempo de D. Maria I. O autor ignorado das Cartas sobre as Modas, folheto de cordel publicado em 1789, diz na Carta. 3.ª: “Como presumo que não terá ouvido a palavra peralta, e não saberá o que significa, lhe direi a sua definição: peraltas são uns animais com figura humana, que constituem uma nova espécie entre racional e irracional, e a que é próprio tudo o mais indigno e ridículo que se pode imaginar”. Nunca as mercuriais de 1720 ou de 1760 se referiram tão duramente ao faceira de D. João V ou ao casquilho de D. José. Porque eram menos ridículos? Evidentemente, não. Os moralistas e os poetas pouparam-nos, porque, tanto o casquilho pombalino como o «frança» das Turinas e dos

Lausperenes souberam manter ainda, através da extravagância dos polvilhos e das modas francesas, uma expressão de virilidade que afirmava o seu sexo. Com o peralta, esses restos de dignidade viril desapareceram. O elegante de D. Maria I, andrógino e maricas, põe trancinhas no cabelo “à Nazaré”, espartilha-se, fura as orelhas como uma mulher, usa brincos, mosqueia-se de sinais, pinta a cara de cor de rosa, traz fivelas de prata enormes nos sapatos, anda com o chapéu “a mamar” no sovaco como uma roca, e tantas voltas dá à gravata tufada “de lençol” e aos bofes de rendas da camisa, que, olhado de perfil, parecem apojar-lhe os seios sob a murça redonda do capote. São meninas. Inútil procurar alguma coisa de másculo naqueles corpos de Baco adolescente, esticados em casacas inglesas de fashionable, faulhando anéis de diamantes em mãos brancas de mulher, ceceando,  gaguejando, dançando, coleando a cabeça em passinhos de pombo, abanando-se a leques, fingindo-se míopes através do seu grande óculo holandês de punho de oiro. Esse carácter de feminilidade que o autor das Cartas sobre as Modas acha “indigno”, transparece em toda a vasta literatura do peralta. Filinto descreve-os:

Ali peraltas mil afrancesados
Brinco na orelha, goelas abafadas
C'um tufado lençol, em rancho os guizos
Pendem dos farfalhudos perendengues
De estiradas cadeias do relógio;
Quadrado é o talhe da cardada trunfa,
Dengue a servilha preta luzidia
E é giganta a fivela roça-ruas,
Seu livro de fitinha na algibeira,
Noutra a ponta do lenço debruçada...
Não movem pé nem mão, nem volvem olhos
Que não seja afetada macaquice.
E os rapapés, e o derrengar do corpo
Tremelicando a apolvilhada grenha
E as safadas lisonjas delambidas?

Pinta-os, melhor ainda, uma décima inédita do tempo, de autor ignorado (códice 8.589), que vale uma miniatura italiana de Rosalba:

Chapéu de canto cortado,
Trancinhas postas á cara
E no pescoço uma vara
De pano bem amarrado
Brinco na orelha apertado,
O vestido todo inglês,
Quási descalço dos pés,
Tudo posto em má postura,
Esta é a triste figura
Do Peralta português.

Manuel de Figueiredo, pela boca do graciosíssimo alfaiate dos Pais de Famílias, indigna-se contra o androginismo do peralta, - contra as pinturas, contra os brincos, contra as tranças, contra o espartilho, contra os sinais de tafetá:  

Nós então é que andamos de espartilho:
E que usamos de cor, branco e sinais:
A cara apolvilhada... Isso era de ontem.
E hoje, se repara, com mil tranças
Ornamos as cabeças; grandes popas;
Furamos as orelhas; empregamos
Já fitas cor-de-rosa nas castanhas
Por formas de sapatos de mulher
Se fazem já os nossos sem talões.
E se a minha senhora me permite
Que eu lhe diga a razão por que se apertam
Já os nossos calções cá nesta altura,
É por não estranhar o cós da saia
Que mais mês menos mês nos cai em casa.

E as Queixas de Clorindo, folheto de cordel, de autor ignorado, publicado em 1782, satirizando as modas do peralta, os seus “três côvados e meio de topete”, as suas “seis varas de chapéu”, os seus “velvutes pintados”, as suas “joias indecentes”, os seus “bofes da camisa fugindo dos peitos para fora”, os seus “perendengues de oiro dos relógios comprados no Pires e no Pollet”, as suas “fivelas desmarcadas”, toda a sua “sécia vergonhosa”, - apela para os “vigilantíssimos Maniques”, clama pela vara de prata dos alcaides, pelas “moscas” terríveis do Intendente, e conclui, com tristeza, vendo passar ao sol, a caminho da missa, pintados, polvilhados, capote curto, brincos nas orelhas, livrinho e rosários pingando das mãos, os peraltas francelhos de S. Roque w da Capela Real:

E um homem em mulher, por seu pecado,

Se vê desta maneira transformado!

Permite a progressiva feminização do homem do último quartel do século XVIII, - que fez a mulher? A única coisa que podia logicamente fazer: masculinizou-se. Foi a consequência fatal duma lei de equilíbrio. Ao androginismo do peralta correspondeu o ginandrismo da sécia. A mulher da Viradeira era um homem. Andava “de casaca, de rabicho, faca de mato, botas, chapéu, vestia à mangalaça, sem brincos nem garganta, fazia a barba, cortava o cabelo sobre o pente, e punha, como os homens, cabeleiras de bandas”, - diz Manuel de Figueiredo nos Pais de Famílias; chegava a trazer “cabeleiras de cão de água, verdes e encarnadas”, - acrescenta um folheto de cordel, Crítica às modas escusáveis; “tomava rapé como um homem” - diz, em 1790, a mercurial em verso intitulada Mulher da Moda; “passava todo o seu tempo na caça”, - informa para Viena de Áustria o cavaleiro Lebzeltern; entregava-se, perdidamente, aos “amours da genre de Sapho”, - escreve o inglês Dalrymple em 1783; e um interessantíssimo folheto de cordel publicado em 1784, Reflexões feitas pelo Voador Peralta, conclui:

E que direi das senhoras,

Dos homens imitadoras,
Mulheres de cabeleira,
Com um grande capotão,
Flaques, vestidos à mão,
Grandes fivelas, botões
Só lhe faltam os calções...

Mas não. Nem os calões lhes faltaram. Em breve as pantalonas cor de carne de M.me Talien, de M.me Recamier, de M.me Benjamin Constant, os anéis nos dedos dos pés, as jóias nos bicos dos peitos, chegam a Lisboa na asa de oiro dos jornais de modas da França revolucionária, sucessores do Cabinet des Modes, de 1785; aparecem no Passeio Público os primeiros maillots; Pina Manique, apoplético, expede a circular de 26 de março de 1804 contra o escândalo das modistas lisboetas; e, tristemente, o grave e erudito irmão de Manuel de Figueiredo comenta, em 1808: “As mulheres já não trazem anáguas mas sim as ceroulas que os homens deixaram, não sei se por asseio, se por economia...”

  

Júlio Dantas 

 


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