O GENERAL CLÁUDIO CHABY,
CRONISTA E ARQUIVISTA *

 

Chaby

© BNP

Cláudio Chaby

 

Manuel Amaral

 

O Arquivo

Os dois principais trabalhos de Cláudio de Chaby, Os Excertos Históricos e Colecção de Documentos relativos à Guerra da Península e às anteriores de 1801 e do Rossilhão e Catalunha e a Sinopse dos Decretos remetidos ao extinto Conselho de Guerra...tiveram o seu início e o seu término, praticamente ao mesmo tempo, ocupando quase o mesmo número de volumes, seis no primeiro caso, de que só cinco foram de facto publicados, e sete na segunda obra.

Chaby publicou o primeiro volume dos Excertos Históricos em 1863, ano em que também saíram do prelo os Apontamentos para a Historia da Legião Portuguesa ao serviço de Napoleão I mandada sair de Portugal em 1808, obras que o terão feito notado para a direcção do trabalho de acondicionamento, catalogação e apresentação dos documentos do Arquivo do Conselho da Guerra, que permaneciam «em deploráveis circunstâncias» no Pátio das Vacas. Anteriormente tinha sido decidido, possivelmente por influência do director da Torre do Tombo da altura, Oliveira Marreca, e de acordo com o marquês de Sá da Bandeira, ministro da guerra da época, transferir a documentação para o Arquivo Nacional.

A Sinopse dos Decretos remetidos ao extinto Conselho de Guerra ..., produto desse trabalho, começou a ser publicada 6 anos mais tarde, em 1869. Os Excertos foram concluídos em 1882, e a Sinopse, pouco tempo depois, em 1889.

Nomeado em Abril de 1866 para realizar o trabalho em substituição do coronel Luís Travassos Valdez, e com a ajuda de três técnicos da Torre do Tombo e de pessoal da secretaria de estado da Guerra, a comissão de Cláudio de Chaby demorou cerca de vinte anos a completar, tempo durante o qual foi subindo de posto, sendo já general de brigada quando concluiu o trabalho de entrega da documentação e de publicação da Sinopse. De facto, foi em 10 de Março de 1886 que Cláudio de Chaby entregou os últimos documentos na Torre Tombo, documentos que totalizavam «trinta mil oitocentos e oito decretos autógrafos, avisos, portarias e papéis a estes documentos anexos, duzentos e seis livros, e quatro cadernos de registo, bem como cento e noventa e sete cadernos com a Sinopse e o catálogo de livro pertencentes ao extinto Tribunal do Conselho de Guerra».

De facto, foi um imenso trabalho que permitiu que se desse um salto qualitativo muito apreciável no estudo da história do Exército, já que o trabalho tinha sido, como previsto, acompanhado da publicação de uma sinopse do catálogo mas também de documentos do Arquivo, incumbência distribuída pelos sete volumes publicados entre 1869 e 1889. Esta divulgação de documentação histórica respeitante ao exército, serviu imediatamente a Latino Coelho, que tendo escrito dois volumes da sua célebre História Política e Militar de Portugal, desde os fins do XVIII século até 1814 publicou, dois anos depois do aparecimento do sétimo e último volume da Sinopse, o terceiro volume da sua obra, sendo este dedicado, como é sabido, à história militar e à campanha do Rossilhão e da Catalunha.

Mais tarde, o trabalho realizado pelo general Chaby permitiu também que o Arquivo Histórico Militar lhe desse a conclusão desejável, ao publicar o Catálogo dos Decretos, obra da responsabilidade do coronel Madureira dos Santos, distribuída por 8 grossos volumes, e publicados a partir de 1957.

Muito do trabalho sobre o Exército, enquanto instituição, passou e passará sempre por esse trabalho pioneiro do general Chaby, assim como algum do trabalho a realizar para a investigação sobre a Guerra Peninsular, acontecimento que comemorará o seu segundo centenário daqui a pouco tempo, passará também pela leitura dos Excertos Históricos.

Mas as duas obras são também espelho da sociedade do seu tempo, e da visão histórica do grupo histórico-progressista a que Chaby pertencia, com Sá da Bandeira, Oliveira Marreca e Latino Coelho só para citar aqueles que tiveram alguma influência nos trabalhos que realizou.

De facto, não podemos deixar de ter em conta que, se como o próprio decreto de nomeação e o título da obra afirmam, a apresentação é sinóptica, isto é uma síntese dos documentos existentes, há uma visão que dá consistência à escolha dos documentos publicados.

Não vamos aqui, fazer uma análise circunstanciada dos pressupostos de Cláudio de Chaby, convêm tão-só afirmar que o autor não escapa, evidentemente, às preocupações do seu tempo, preocupações e que em muitos casos se mantém ainda no centro da historiografia militar contemporânea.

A lista dos principais temas que a síntese aborda é relativamente fácil de fazer, inclui a:

  • Legislação militar, que parece ter sido publicada quase integralmente;
  • Nomeação dos altos comandos militares, e seguimento da carreira no caso de alguns generais, normalmente os mais conhecidos, como seja Gomes Freire de Andrade e outros;
  • Promoções de oficiais artilheiros e engenheiros, as principais armas na altura da publicação, seguindo-se a carreira de alguns deles, normalmente também os mais conhecidos, como sejam José António da Rosa e António Teixeira Rebelo;
  • Nomeações de oficiais estrangeiros.

Não é evidentemente uma listagem exaustiva, mas o mais importante é notar as preocupações que transparecem na escolha do catálogo e da publicação de documentos.

Um assunto está sempre presente na Sinopse – é o privilégio. De facto os vários volumes da obra estão cheios de exemplos de situações de privilégio, normalmente a favor de oficiais aristocratas. Promoções, transferências, nomeações para funções não-militares, etc.

Outro assunto sempre abordado, é a contratação de oficiais estrangeiros, transcrevendo-se sempre a situação de privilégio que é o soldo dobrado.

Estas preocupações eram perfeitamente naturais na época, época final do liberalismo regenerador influenciado já por um certo radicalismo, que tentava democratizar a constituição liberal censitária, alargando a sua base eleitoral, preocupações que se farão sentir na revolta da Janeirinha de 1868 e que darão origem a um governo presidido por Sá da Bandeira, o primeiro que será apelidado de reformista.

Mas escolher é também omitir, e as omissões de Cláudio de Chaby são também muito interessantes.

Abordo aqui unicamente dois pontos, os dois da época de governação do marquês de Pombal, o herói típico de um certo liberalismo radical que será transformado também em herói republicano, pela mão daquele que foi dos primeiros a fazer a transição do radicalismo liberal para o radicalismo republicano, Latino Coelho. Falo dos cerca de 40 decretos de 12 de Janeiro 1754, remetidos ao Conselho de Guerra pelo futuro marquês de Pombal, naquele momento secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, que visavam transformar a estrutura do exército vindo do reinado anterior, criticado por ter oficiais saídos das fileiras e por isso não aristocratas. Os decretos dividem-se em decretos de promoção e de reforma, e seguem-se a quatro anos de promoções de soldados nobres, quase todos com o título de fidalgo da casa real, que tinham ascendido aos postos de oficiais subalternos à revelia dos regulamentos, como os próprios decretos explicitavam, e que preparam a criação dos cadetes, o que aconteceu em 1757. A intenção era clara, se pouco conhecida mesmo ainda hoje: transformar a estrutura social do exército, tornando-o mais aristocrata, transformação que só será terminada em 1763, na época do conde de Lippe.

Ora esta actuação do marquês não é descrita pela historiografia porque os decretos não apareceram na Sinopse referente ao reinado, o 5.º volume publicado em 1875. E porque é que um número tão importante de decretos não apdemasiados arece na sinopse? Será que, como o facto não tinha sido abordado na obra A História do reinado de El-Rei D. José e da Administração do Marquês de Pombal, de Luz Soriano, aparecida em 1867, o autor decidiu não apresentar o assunto? E como não tinha aparecido nessa obra, Cláudio Chaby não lhe terá dado a importância que de facto tem para a compreensão da administração do exército feito por Sebastião José de Carvalho e Melo nos primeiros anos do reinado de D. José? É difícil de dizer, mas a verdade é que Latino Coelho, mais tarde, também não referirá o assunto. Possivelmente o problema era de difícil compreensão para a época, em que o que mais se salientava era a luta do marquês contra os privilégios da aristocracia.

Mas outro tema da administração do marquês é esquecido por Cláudio de Chaby, como também pelos dois historiadores que referimos acima.

Na Sinopse, como é natural, Chaby segue a carreira do 1.º marquês de Alvito, que começando em 1742 se desenvolve, do ponto de vista militar, de uma forma estranhíssima, já que sendo capitão do Regimento de Cavalaria de Alcântara, posto que ocupava a partir de um certo momento com o seu filho, foi nomeado conselheiro de Guerra em Novembro de 1758, o que obrigou a que fosse promovido a tenente general no mês seguinte. A Sinopse continua a publicar os decretos de nomeação para funções governativas, mas a partir daqui as promoções militares deixam de aparecer, não se sabendo por isso que em 5 de Abril de 1762 foi promovido a Marechal dos exércitos e que em 1768 é já denominado Marechal general, título que em princípio, no reinado de D. José, só teria pertencido ao conde de Lippe, a partir de Julho de 1762.

Porquê a omissão ostensiva? Difícil de compreender, se não tivermos em conta que o facto era, de acordo com o que se sabia sobre a época de Pombal, estranho, de novo. De facto não deve haver omissão intencional, não seria compreensível numa personagem como Cláudio de Chaby, mas sim incredulidade perante um facto que na segunda metade do século XIX era desconhecido. Tal maneira de ver este caso não nos deve surpreender. É natural, e está de acordo com uma visão preconcebida, ideológica – política, mesmo –, dos acontecimentos históricos. Essa visão do mundo específica não era ultrapassável por um método científico de investigação histórica que estava ainda em fase de consolidação. As limitações da documentação obrigavam a uma construção mais intelectual do que seria aceitável actualmente, e que tem em Oliveira Martins o seu expoente máximo.

Mas, se temos que, de acordo com o método histórico, fazer a crítica interna e externa dos documentos, realizar uma hermenêutica, tentando compreender o sentido das intenções ou das acções dos autores, temos também de seguir o exemplo de Cláudio de Chaby, que nas suas obras históricas abriu o campo à publicação de fontes militares que era bom continuar, com a mesma capacidade de trabalho que este oficial do exército mostrou na segunda metade do século XIX, e que tendo sido continuado por um tempo pelo Arquivo Histórico Militar está há demasiado tempo parado, sendo que o que não falta são fontes para publicação, como seja a publicação dos Avisos remetidos pelo Conselho de Guerra, o que seria uma nova homenagem ao trabalho de Chaby, assim como a conclusão do Dicionário Bibliográfico Militar Português, do general Martins de Carvalho, reeditado em 1979 mas nunca concluído, como tinha acontecido já com a sua 1.ª edição.

 


NOTA

* O texto deste artigo, de que se apresenta a parte escrita por Manuel Amaral,  foi apresentado ao XIII Colóquio de História MIlitar: "Portugal Militar. Da Regeneração à Paz de Versalhes" e publicado nas Actas: Portugal militar, da Regeneração à paz de Versalhes: Actas, XIIII Colóquio de História Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2003

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