A Guerra de 1801 - 3.º parte

 

 

 

O "Turbilhão Espanhol": A Defesa dos Interesses Dinásticos 

O interesse da Espanha na guerra que a França bonapartista lhe impôs contra Portugal era muito pequeno, tão pequeno que no próprio tratado de Aranjuez de 1801 se escrevia, no artigo 10.ª, que "a guerra de que se trata é de tanto ou mais interesse para a França do que para a Espanha".

 

A Família Real espanhola

A Família Real espanhola. Composição inspirada em Goya


De facto, a Espanha não tinha nenhum interesse vital nesta guerra. O país, contra os seus interesses nacionais, estava em guerra com a Grã-Bretanha, e o que interessava à monarquia castelhana era fazer a paz, permitindo assim o reatar das relações com as suas colónias, fonte da riqueza espanhola e da sua manutenção como potência de 2.ª categoria, no concerto das Nações europeias. Mas contra o interesse "nacional" espanhol, apareceu o interesse dinástico dos seus monarcas. 

Desde que Filipe V, o primeiro rei Bourbon de Espanha, tinha casado, em segundas núpcias, no distante ano de 1714, com Isabel Farnésio, herdeira do ducado italiano de Parma, que a diplomacia espanhola se preocupava em manter a sua antiga hegemonia em Itália. A Espanha foi obrigada a participar em todas as guerras europeias do século XVIII, para conseguir os territórios que Isabel Farnésio ansiava para os seus quatro filhos e duas filhas. E de facto assim aconteceu. O seu filho mais velho, Carlos, foi sucessivamente duque de Parma e rei de Nápoles de 1731 a 1759, tendo sido reconhecido por um tempo como sucessor do grão-duque da Toscânia, antes de subir ao trono de Espanha enquanto Carlos III, após a morte sem sucessão directa do seu meio-irmão, Fernando VI. Um outro filho de Isabel Farnésio, Filipe, herdará o ducado de Parma, e dois netos seus sucederão a Carlos III nas coroas reais, Carlos IV em Espanha e Fernando I no reino das Duas-Sicílias. Com o casamento de Carlos IV com a sua prima, Maria Luísa de Parma, e de duas das filhas deste casamento com os herdeiros dos tronos das Duas-Sicílias e de Parma, a teia de relações familiares entre a família real espanhola e as monarquias Bourbons de Itália ficou completa, pressionando todos os esforços diplomáticos e militares da Espanha. Luís Pinto de Sousa, o ministro dos negócios estrangeiros de 1788 a 1801, chamará "o turbilhão espanhol" a este estranho posicionamento dos Bourbons. Interpreta-se erradamente a fórmula de Pinto de Sousa quando não se percebe que ele estava a definir a desorientação da diplomacia bourbónica, sempre a mudar de posição, oscilando entre a importância das possessões na América e a defesa das posições dinásticas em Itália. 

Desde pelo menos a execução de Luís XVI, em 1793, e até 1808, o centro dos esforços diplomáticos espanhóis foi a Itália, procurando Carlos IV todos os meios para ser reconhecido como o chefe da Casa de Bourbon pelas potências europeias. Para isso a Espanha entregará à França, em 1795 a sua metade da Ilha de São Domingos, nas Antilhas, e a Luisiana na América do Norte, em 1800; e perderá para a Inglaterra a ilha de Trindade nas Caraíbas, em 1802, para além dos vários navios de guerra entregues à França por diferentes motivos, que juntos aos muitos perdidos na guerra com a Grã-Bretanha, sobretudo na Batalha do Cabo de São Vicente, em frente de Sagres, acarretaram a diminuição brutal da marinha de guerra, o corte quase total de relações políticas e comerciais com as possessões ultramarinas, e o despoletar de uma crise económica e financeira que depauperou a sociedade espanhola de uma maneira quase insuportável. 

Pressionado pelo general Berthier, ministro da guerra de França, Carlos IV assinou com a França o Tratado preliminar e secreto de Santo Ildefonso em 1 de Outubro de 1800, em que se obrigava a entregar a Luisiana, o ducado de Parma e Piacenza, e 6 navios de guerra, em troca da colocação de um seu parente como Grão-Duque da Toscânia. Era um regresso à diplomacia dos séculos XVII e XVIII, às transferências de territórios para compensação de casas reinantes espoliadas, e também uma retrocessão mútua de doações do passado, já que a Luisiana tinha sido entregue pela França de Luís XV à Espanha em 1762, após o segundo Pacto de Família entre os Bourbons, e o direito de sucessão à Toscânia tinha sido dado pelo futuro Carlos III de Espanha à França, pelo tratado de Viena de 3 de Outubro de 1735, para esta trocar posteriormente o ducado de Lorena por este território italiano. 

Esta transacção de 1800 fez as delícias de Carlos IV. O monarca via concretizar-se a política de 1795, quando ao assinar o tratado de Basileia com a República Francesa, viu ser aceite, em teoria, senão na prática, as suas ambições de direcção e domínio sobre as casas reinantes Bourbons de Itália. E por isso, quando Mariano Luís Urquijo, o secretário de Estado espanhol, chefe do governo desde a queda de Godoy em 1798, aproveitou a ocasião para mandar regressar a Cádis a frota espanhola fundeada em Brest, pondo em causa os planos e irritando Napoleão Bonaparte, Carlos IV demitiu-o, mandando-o preso para a fortaleza de Pamplona, assim como ao comandante da frota, o almirante Mazarreno, fazendo-o substituir pelo almirante Gravina, um dos marinheiros preferidos dos franceses. A seguir, chamou para secretário de estado Pedro Cevallos, casado com uma prima de Godoy, e a este fê-lo generalíssimo dos exércitos que se preparavam para atacar Portugal. 

O rei de Espanha ficou eufórico com o tratado de Aranjuez, de 21 de Março de 1801, já negociado pelo seu favorito, que confirmou os preliminares de Santo Ildefonso. Napoleão transformou o grão-ducado da Toscânia em reino, dando-lhe um pouco mais tarde o nome de Etrúria. Como escreveu Godoy, o valido e fiel executor da política italiana de Carlos IV e da rainha Maria Luísa, 

"a Toscânia com o título de reino para coroar nela um infante de Espanha oferece-nos vantagens atendíveis: a (...) de aumentar o poder, a honra e a influência da casa reinante, desde que o seu tronco perdeu o reino de França; a [de] receber dela esta espécie de desagravo da dinastia Bourbon, e ter perto das suas fronteiras outro ramo desta família que lhe pode ser querido; a (...) de ressuscitar a nossa antiga influência nos estados italianos, onde tanto sangue espanhol foi derramado para tê-la e manter o equilíbrio da Europa contra as ambições da Áustria e da França". 

Evidentemente que os soldados e marinheiros espanhóis que morreram em território português, nas planícies alentejanas, no sapal do Guadiana, no meio do Atlântico, e nas vastidões da América do Sul, nunca terão percebido estas combinações entre Cortes e governos. Na realidade morreram por Florença, cidade que se manteve na posse de príncipes espanhóis por seis curtíssimos anos, até 1807, quando a Toscânia foi "trocada" pela província portuguesa de Entre-Douro-e-Minho, previamente transformada no fictício "Reino da Lusitânia Setentrional", tendo este reino durado no papel menos de quatro meses, de Outubro de 1807 a Janeiro de 1808. 

A guerra podia ter propiciado um acordo global entre a monarquia espanhola e o Reino Unido, mas nem sequer serviu aos espanhóis para recuperar a Ilha da Trindade. Os monarcas espanhóis e Godoy, a criatura política que utilizaram para alcançar os objectivos dinásticos em Itália, sem qualquer oposição organizada na sociedade espanhola, revelaram-se incapazes de melhorar a situação diplomática do país, e muito menos a económica. Assim, foram procurar outras compensações imprevistas, para tentar dar aos espanhóis uma justificação para tantos esforços. Laranjas, foi o que o povo espanhol achou que lhes tinham dado.


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