A evolução das Ordenanças

2.ª parte

 

As Ordenanças na época da Restauração

 

Quando em 1 de dezembro de 1640, Portugal se separou da Coroa espanhola – aclamando um rei natural –, uma das primeiras medidas de carácter militar que foram tomadas, foi a de reinstituir as Ordenanças sebásticas. Mas a situação em 1640 era bem diferente da de 1570, política e socialmente, e o que finalmente se acabou por organizar foi bem diferente do original.

 

D.João IV

D. João IV

Primeiro, porque o poder dos dois reis era bem diferente. D. Sebastião era um rei sem problemas de legitimidade que podia exercer o seu poder pondo em causa os direitos das grandes casas aristocráticas e das instituições locais. D. João IV era um rei – considerado rebelde ao seu rei legítimo, Filipe III, IV de Castela, com todas as consequências que esse estatuto lhe dava no estrangeiro, mas também em Portugal – que nos primeiros tempos do seu reinado teve que contar com uma forte oposição interna, fundamentalmente aristocrática e eclesiástica, mas que nos primeiros tempos da Restauração não sabia se era mais alargada e incluía partes substanciais da população portuguesa. Para impor a sua legitimidade teve que conseguir compromissos, com a aristocracia como é evidente, mas também, e no que concerne ao recrutamento militar, que é o que nos preocupa aqui, com o "Estado dos povos" a quem teve de conceder vários privilégios de isenção do serviço militar.

De facto, logo em 1642 pensou-se na criação dos soldados auxiliares (os futuros milicianos), o que não era mais do que retirar todos os membros das classes privilegiadas dos concelhos das listas de Ordenanças (a população do concelho de Lisboa só começará a ser recrutada para as Milícias a partir de outubro de 1807, tendo havido uma primeira tentativa em 1661), e por isso, a partir desse momento, isentas do recrutamento para o exército, ou como se dizia no alvará de 1645 que as regulamentava "isentos dos mais alardos das Ordenanças". Pelo mesmo alvará, os membros destas tropas passaram a ser licenciados após um ano de serviço em campanha. Em março de 1646, foi a vez de os homens inscritos nas listas das Ordenanças deixarem de ser obrigados a qualquer serviço na defesa das praças e fortalezas, para o qual tinham sido chamados desde 1640.

Nas Cortes celebradas em Março de 1646, nos capítulos publicados, afirmava-se:

 

"16. E por quanto, uma das maiores perturbações, que padecia o Reino, era chamar-se a gente da ordenança a todos os rebates do inimigo e a todas as correrias e entradas que se fazem de nossas praças e juntamente mandar-lhes guardar as trincheiras, e o Rio, e fazer rondas e vigias do que resultava faltarem os lavradores às lavouras, e a mais gente ao benefício das fazendas e exercício de seus ofícios, em grande prejuízo do bem comum e particular, mandará Sua Majestade que não seja chamada a gente de ordenança às praças fronteiras senão quando o inimigo faça alguma invasão tão grande a que seja necessário acudirem todos, porque a esse respeito se esforçou o Reino a acrescentar nestas Cortes à contribuição do que se passaram os Alvarás necessários para se registarem nas Câmaras e se escreverá aos Governadores das Armas que com efeito os façam guardar, por si, e pelo Capitães-mores das praças. (…)

18. Que com efeito mande Sua Majestade executar em todas as Comarcas o regimento que se fez para os auxiliares, pois é um meio tão necessário para a defesa e conservação do Reino e com que se alivia a opressão que os vassalos padecem, em tempo que se acham tão cansados com os encargos da guerra: justo será que se pratique os de sua segurança e alívio."

 

Com base nas decisões das cortes a coroa passou diversa legislação, que explicitava esta exigência. Assim, por alvará de 13 de março explicitava que:

 

"tendo respeito ao que o Estado dos Povos me pediu com toda a instância nas Cortes presentes, sobre não haver de ir às Fronteiras a Gente da Ordenança, por intender que isto é o que mais convém à mesma guerra (…) Hei por bem, que daqui em diante nenhum Governador das Armas, ou qualquer outro Ministro de Guerra e Justiça de meus Reinos obrigue a ir às Fronteiras a gente da Ordenança."

 

No regimento da Décima, de 28 de abril de 1646, a situação de desmilitarização ficou mais explícita. De facto, de acordo com o regimento, nas Cortes tinha-se declarado:

 

"que não se chamaria a gente da Ordenança aos rebates do inimigo, nem ao serviço das rondas, trincheiras e vigias, porque com isso se desampararia a lavoura e artes, em prejuízo até da presente contribuição; sobre o que mandei passar Alvará, com declaração que a gente da Ordenança somente poderia ser chamada às Fronteiras em caso de alguma grande invasão dos inimigos, e que não se obrigaria a ter cavalos senão às pessoas que por suas Comendas, Hábitos, Tenças, Foros e ofícios, fossem a isso obrigado."

 

Estas decisões impunham uma mudança da condição das Ordenanças, e por isso a coroa, por alvará de 16 de maio, voltava atrás na sua decisão de militarização, afirmando que:

 

"porquanto pelo Regimento que mandei dar ao meu Conselho de Guerra [de dezembro de 1643], no capítulo 26, tenho ordenado que… conheça das culpas dos Oficiais e Soldados das companhias de Ordenanças" tinha decidido que "de nenhuma culpa dos Soldados da Ordenança, ele, nem outro Ministro de Guerra poderão tomar, nem tomem conhecimento, conforme a resposta que mandei dar sobre esta matéria no requerimento que me fez o Estado dos Povos, porque deles e de tudo o mais que tocar aos ditos soldados e gente da Ordenança, se lhes hão de livrar e correr suas causas diante das Justiças ordinárias."

 

Como afirma Fernando Dores Costa, a coroa defendia "a especificidade das ordenanças face à esfera genérica da guerra... Impede-se deste modo a aplicação de um plano de integração vertical das ordenanças". Em 1646, as Ordenanças deixaram de ter qualquer tipo de obrigação militar, quer em tempo de guerra quer em tempo de paz, impondo à coroa o fim da sua dependência da jurisdição militar. Deve ser este o pano de fundo desta mudança. Como se verá também com a difícil organização das tropas auxiliares, a população dos concelhos em geral recusava a militarização das suas obrigações na defesa do país. As Ordenanças, tirando os seus oficiais, passaram, assim, a ser listas de homens que, devido à inexistência de privilégio social ou funcional, podiam ser recrutados para o exército por meio das levas.

E de facto, até 1808, foi assim que se mantiveram. Como explicava, por meio de um aviso expedido em 22 de Outubro de 1785, Francisco Xavier Teles de Melo, secretário do Conselho de Guerra ao visconde da Lourinhã, ao tempo governador das Armas do Alentejo:

 

"as Ordenanças não são verdadeiramente Corpos militares, e só se devem considerar como um viveiro de Paisanos, donde saem, e para onde se recolhem os indivíduos, que hão-de ir servir nos Corpos regulares, e Auxiliares, e para onde voltam os que se inutilizam", sendo que "os Oficiais destes Corpos [não têm] senão o nome de Oficiais, honrando-se com aqueles Títulos para se encarregarem das divisões, e subdivisões em que for preciso dividirem-se todos estes paisanos para melhor se compreenderem, e sem confusão se poder dispor deles."

 

As Ordenanças não eram, nunca chegaram a ser, nem nunca serão, a 3.ª linha do exército de campanha, como Latino Coelho afirmou, seguindo as ideias explicitadas por Gomes Freire de Andrade na sua obra publicada em 1806 e que se tornou um dado adquirido pela historiografia militar portuguesa até hoje. As Ordenanças passaram a ser, utilizando uma instituição do exército do século 20, Distritos de Recrutamento Militar, que a partir deste momento só serão utilizados militarmente, quando em tempo de guerra se pedia aos seus membros – dos capitães aos cabos de esquadra, os oficiais com obrigações militares – que comparecessem na defesa das fortalezas, e na vigia da fronteira, mas que nunca mais serão chamados a servir – mobilizados – enquanto membros das Ordenanças. É por isso que em 1678, no Regimento dos Governadores das Armas, estes oficiais generais são impedidos de se intrometerem "nas eleições dos Oficiais da Ordenança, que pertenciam às Câmaras, e [no] seu governo". O que esta decisão implicava é que para a coroa as Ordenanças não faziam parte da estrutura militar do país, situação que se manterá claramente até 1808.

 


1. Auto das Cortes que se Celebraram nesta Cidade de Lisboa, em Dezanove de Setembro de 642, pelo Estado do Povos, Lisboa, Por Antonio Alvarez Impressor Del Rey N.S., 1645. O texto do Auto é muito claro:

«Que suposto o Reino contribuio com o dinheiro para vinte mil infantes, e dois mil e oitocentos cavalos, não serão obrigados os povos, nem os lavradores acudir as fronteiras, senão nas ocasiões precisas, que se declaram no Regimento das Décimas, tirados os auxiliares, pessoas desobrigadas, que se hão de tirar de cada companhia [de Ordenanças] en todas as Comarcas para estarem prevenidos, e armados para sem opressão dos povos acudirem nas ocasiões, e aos lugares onde for necessario.»

págs. 22 e 23 e Doc. N.º 3 - Alvará de 24 de Novembro de 1645.

 


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