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A evolução das Ordenanças 3.ª parte |
As Ordenanças durante o Absolutismo
O poder que os capitães-mores tinham ao nível local era enorme. Sendo eles que escolhiam os outros oficiais das Ordenanças, tinham um poder de patrocínio social nas comunidades locais que era muito invejado. E ser-se oficial de uma companhia, sendo responsável direto pela administração das listas, de quem estava isento e quem não estava, de quem pertencia às Milícias e quem às Ordenanças, finalmente esse quase poder de vida ou de morte que era decidir quem era "levado" para o exército, era um posto muito cobiçado.
A Coroa sabia muito bem com o que contava, como se pode ler no alvará de 18 de outubro de 1709, que determina a nova maneira de escolher os oficiais das Ordenanças:
A primeira medida tomada foi retirar às câmaras o poder de nomear os capitães. Os vereadores passaram a ser os responsáveis, em reunião em que estava presente o corregedor da comarca ou o provedor da ouvidoria, pela escolha de três nomes a enviar ao governador das Armas da província respetiva. Era este, que a partir desse ano, passou a escolher quem devia assumir o posto enviando todo o processo para o Conselho de Guerra. Esta centralização da escolha, em que estão sempre presentes funcionários régios, levou a que todos os oficiais das ordenanças passassem a ter uma carta patente assinada pelo rei, "pela Real Mão", em vez de uma provisão passada pelo Conselho de Guerra. Era o retomar da tentativa de militarização das Ordenanças por D. João IV, política coartada pelas cortes em 1646. No tempo de D. João V, a Coroa tentava uma nova estratégia, conseguir essa militarização paulatinamente, iniciando-a com a militarização dos oficiais. Esta mudança de política para com as Ordenanças tinha começado em 13 de agosto de 1706 com um decreto que permitia que o serviço dos oficiais, em tempo de guerra, lhes fosse tomado em conta, e por uma carta régia, de 25 de outubro do mesmo ano, em que se permitia aos oficiais usar armas ofensivas, permitindo-lhes também apelar para o conselho de guerra. Os oficiais ganhavam um estatuto independente a nível local, mas tornavam-se mais dependentes da coroa, que assim poderia conseguir uma aplicação mais correta das leis de recrutamento, por meio da potencial aplicação dos regulamentos militares aos prevaricadores De facto estas mudanças eram, como é fácil de perceber, formais. Não irão mudar de facto o recrutamento social dos oficiais das Ordenanças, já que eles continuarão a ser escolhidos nas mesmas famílias, pertencentes à fidalguia e à "gente da governança das terras". Mas o que interessava à coroa, e aos oficiais, era a mudança do seu estatuto, e que era substancial do ponto de vista legal. A partir do reinado de D. João V, a fidalguia da província que dirigia como queria o recrutamento local passou a estar subordinada à justiça do rei e já não só às justiças locais e senhoriais. Mais importante ainda, passou a estar dependente da justiça militar e do Conselho de Guerra, e daquilo que era de facto o Supremo Tribunal Militar. As elites locais ligavam assim o seu futuro ao desenvolvimento nascente do Estado absolutista. O processo de militarização será lento, e vai seguindo o seu curso paralelamente ao aumento do controlo régio sobre o exército. Assim, quando em 1762, no reinado de D. José I, se regulamentaram as insígnias dos uniformes dos oficiais do exército, foi permitido aos oficiais das Ordenanças passarem a usar uniforme militar. Em 1777 era permitido aos sargentos dos regimentos de Ordenanças de Lisboa que também usassem uniforme, mas estes sem nenhum tipo de obrigação. Em 1764, para tentar melhorar o sistema de recrutamento agruparam-se as capitanias em distritos sendo cada um atribuído a um dos quarenta e cinco regimentos de infantaria, cavalaria ou artilharia existentes na altura, incluindo os dois regimentos da Armada e o de Voluntários Reais, corpo de tropas ligeiras criado em 1763 e que durará pouco tempo. Por este alvará, tentou-se regulamentar claramente a forma como se fazia a escolha dos recrutas, tentando torná-lo o mais transparente possível. O método escolhido foi o de tirar à sorte, de entre os membros das listas de Ordenanças, quem seria enviado para o respectivo regimento. A intenção era boa, mas não retirava aos capitães o poder discricionário de escolher quem era incluído nas listas das Ordenanças e os que pertenciam aos Auxiliares; nem tão pouco o de decidir quem eram os cinquenta recrutas previamente escolhidos para entrar na tiragem à sorte, previsto pelo novo Regulamento desse mesmo ano. A criação destes distritos, proposta possivelmente pelo conde de Lippe, mas que pode não ser mais do que regulamentar a organização já estabelecida pela vedoria geral do Exército que acabava de ser extinta, e que copiava em parte a organização cantonal prussiana, introduzia uma nova estrutura de controlo das Ordenanças, quando impunha a obrigação de entregar aos regimentos as listas com os cinquenta recrutas prontos para a leva. Permitia-se também que os comandantes dos regimentos recusassem os recrutas enviados, se estes não tivessem as qualidades físicas necessárias, sendo que quando isto acontecesse os coronéis podiam mandar recrutar diretamente no seu distrito. Muitos coronéis, em momentos de crise, passarão a utilizar este expediente para alistar sem mais demora os membros das Ordenanças, considerados "prontos". O novo regulamento estava claramente desajustado das leis que regulavam o recrutamento, e da última de 7 de julho, e por isso mesmo nesse ano de 1764, tentou-se impedir que os regimentos atuassem dessa maneira, porque tal era, segundo a resolução de 1 de outubro, "uma infração literal, e manifesta da sobredita Lei novíssima". Mas esta resolução, ao manter no novo regulamento a possibilidade de recrutamento directo, e de inspecção das listas de recrutas, não eliminou o conflito. Como escrevia o desembargador Inácio José Peixoto nas suas Memórias Particulares na entrada de novembro de 1791:
A organização prussiana, que se baseava em relações de tipo feudal – os junkers iam buscar às suas terras os servos necessários aos regimentos que comandavam –, estava em contradição com o princípio de organização militar portuguesa, mas sobretudo com o desenvolvimento social do país. Continuando a política de centralização e controlo das Ordenanças, assim como da militarização dos seus oficiais, por outro alvará do mesmo ano, retirava-se aos donatários qualquer poder de intromissão nos assuntos das Ordenanças, ao fazer com que nas suas terras, e mesmo quando estivessem presentes – isto é residissem numa localidade da sua Capitania –, as "diligências" passassem a ser tratadas pelos sargentos-mores, obrigando-se também os oficiais a residirem numa das localidades do distrito, não se podendo ausentar sem autorização por mais de trinta dias. Analisando este alvará, que discrimina quem deve estar isento "na factura das Recrutas", pode-se ver o poder discricionário dos oficiais das Ordenanças. Assim, os caixeiros e feitores dos comerciantes eram isentos, mas só aqueles "que sem excesso, e sem dolo, viverem com eles". Os filhos e criados dos lavradores "mais consideráveis... que lançarem à terra seis moios de pão, e daí para cima" também eram isentos, mas só se na capitania houvesse outros homens "nos quais não concorrão aquelas recomendáveis qualidades", ou se excedessem um número moderado. Dois aprendizes de artífices com loja também estavam isentos das recrutas, mas só se fosse verificado que trabalhavam quotidianamente. E assim por diante, incluindo aqueles que trabalhavam no monopólio do tabaco e em que só um número restrito estava isento. O normal, na época, era dar-se ao chefe de família o poder de determinar quem seria incluído nas listas. Assim os comerciantes, os lavradores, os artífices decidiam quem seria dos seus filhos, criados, ou aprendizes inscrito para a recruta, sendo que o poder dos oficiais se exercia sobre estes chefes de família, pois podiam escolher claramente a que "casa" se dirigir para exigir os recrutas.
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