As Origens das Ordenanças e das Milícias

 

A tentativa de reorganização militar no princípio do século XVI

 

A criação das Ordenanças e Milícias portuguesas teve como origem remota o desaparecimento da Hoste real e dos acontiados, besteiros do conto e da câmara, instituições militares portuguesas medievais desaparecidas em 1498, momento decisivo da criação do Estado moderno renascentista em Portugal, ao mesmo tempo em que tal acontecia na Europa1

D. Manuel


D. Manuel

A decisão de modernizar as forças militares portuguesas deu-se por volta de 1505, ano em que, segundo Jean Aubin, o rei D. Manuel fixou a política geral de Portugal em relação à Europa e às Descobertas. Sem forças militares permanentes desde o desaparecimento dos besteiros do conto, milícias populares vindas dos tempos medievais, a intenção do Rei foi criar uma organização militar como a da Suíça do seu tempo. Forças militares recrutadas na população em geral, combatendo em grandes quadrados compactos, armadas de grandes piques, alabardas, arcabuzes e espadas, forças com  que os Cantões tinham mantido a sua independência face a Carlos o Temerário, duque da Borgonha. Técnica de combate que o exército de Fernando, o Católico, estacionado em Nápoles sob a direcção do Gran Capitan, Gonçalo de Córdoba, tinha adoptado com sucesso e que valeram aos espanhóis os seus sucessos militares no decurso das Guerras de Itália.

O desaparecimento destas instituições militares independentes da Coroa necessitou a criação de uma nova organização militar que começou a ser realizada, segundo parece, em 1505, e que se institucionalizou provisoriamente em maio de 1508, com o alvará que nomeou D. Nuno Manuel capitão-general de “toda a gente de ordenança que está presentemente feita tanto na nossa corte como no reino e em todas os nossos senhorios”2.

As Ordenanças, nada tendo a ver com milícias locais, eram tropas profissionais – já que o que a Coroa pretendia era acabar com a sua dependência das forças militares dos concelhos e dos senhores –, que davam origem a companhias de piqueiros e arcabuzeiros, já tinham sido chamadas em 1506 para conter o motim contra os cristãos-novos acontecido em Lisboa naquele ano. Também foram enviadas para a Índia, onde Afonso de Albuquerque as elogiou nas suas cartas ao rei D. Manuel, dando-lhes o nome coletivo de “Suíça”3 – nomeando assim claramente o modelo que se seguia na instrução, a das forças militares dos cantões helvéticos que, tendo feito renascer com êxito a tática dos Antigos, se tinham tornado a base mercenária de quase todos os exércitos europeus de finais do século 15 a finais do século 16. Estas novas forças militares profissionais da coroa portuguesa participaram também nas campanhas de Marrocos, primeiro em agosto de 1508, quando do fracassado primeiro ataque a Azamor, onde os dois mil e quinhentos soldados organizados em companhias de ordenanças cobriram a retirada sem perdas4, mais tarde, em 1513, na conquista da cidade dirigida por D. Jaime, duque de Bragança, e no ano seguinte, em 1514, na batalha dos Alcaides, onde foram decisivas na vitória portuguesa, tendo também participado na expedição a Tunes dirigida pelo imperador alemão Carlos V5. Mas a sua estrutura não se deve ter mantido durante muito tempo, possivelmente porque, sendo profissional, tinha custos demasiado elevados para as finanças da Coroa portuguesa do primeiro quartel do século 16, ou porque D. Manuel não conseguiu impor à nobreza a reforma das estruturas militares, tendo as companhias de ordenanças sido sacrificadas6.

 


1. O conceito de Estado do Renascimento foi introduzido por Fritz Hartung e Roland Mousnier em “Quelques Problèmes concernant la Monarchie Absolue”, comunicação conjunta apresentada ao X. Congresso Internacional das Ciências Históricas, realizado em Roma em 1954. V. Relazioni del X Congresso Internazionale di Scienze Storiche, vol. IV, Florença, Sansoni, 1955, págs. 3-55. Ver também M. Chabod, “Y a-t-il un État de la Renaissance?” in Actes du Colloque sur la Renaissance, Paris, 1958, págs. 57-78.

2. Publicado por Anselmo Braamcamp Freire, “Regimento da gente da ordenança e das vinte lanças da guarda”, Archivo Historico Portuguez, vol. I (1903), págs. 80-88 e por Alberto Faria de Morais, “Ordenanças e ginetes d’elrey”, Boletim do Arquivo Histórico Militar, n.º 24 (1954), págs. 7-186.

3. Carta de Afonso de Albuquerque para D. Manuel, de Cananor, de 16 de outubro de 1510 in Bulhão Pato (Ed.), Cartas de Afonso de Albuquerque seguidas de documentos que as elucidam, Lisboa, 1884-1935, vol. I, pág. 20. Em 1514 Afonso de Albuquerque propunha-se “ter 400 homens da ordenança”.

4. Jean Aubin, “Le Capitaine Leitão, un sujet insatisfait de D. João III”, Separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. 29 (1983), pág. 90.

5. Vítor Luís Gaspar Rodrigues, “As Companhias de Ordenanças em Marrocos nos Reinados de D. Manuel e D. João III”, Separata de D. João III e o Império, Atas do Congresso Internacional comemorativo do seu nascimento, Lisboa, 2004, pág. 187 e João Paulo Oliveira Costa e Vítor Luís Gaspar Rodrigues, A Batalha dos Alcaides, 1514. No Apogeu da presença portuguesa em Marrocos, Lisboa, Tribuna, 2007.

6. Jean Aubin, ob. cit., págs. 94 e 95. Vítor Luís Gaspar Rodrigues, “As Companhias de Ordenanças em Marrocos”, nota que foi em meados de 1516 que as companhias de ordenanças foram mandadas regressar a Portugal.

 

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