PORTUGAL E AS GUERRAS
DA REVOLUÇÃO, DE 1793 A 1801:
DO ROSSILHÃO AO ALENTEJO*

 

 

 
Granada do Rossilhão

A Granada, de ouro para os oficiais, colocada na parte superior da manga esquerda das fardas, era uma distinção acordada a todos os membros do exército que tinham participado na Campanha do Rossilhão

 

Manuel Amaral

 

A Neutralidade

 

Quando em Abril de 1792 as guerras da revolução francesa tiveram início, com a declaração de guerra da França ao "Rei da Boémia e da Hungria", Portugal tinha no concerto das nações europeias, o estatuto de neutralidade que desde os remotos tempos de D. João III tentava conseguir.

De facto, desde o tratado do Prado de 11 de Março de 1778 entre D. Maria I e Carlos III de Espanha "de Amizade e Garantia" entre as monarquias ibéricas, mas que em Espanha tinha passado a ter, no acto de ratificação, o título de "Neutralidade, Garantia e Comércio", com ênfase dado à palavra Neutralidade, que é como Carlos III o chamava; assim como desde o "Tratado de Amizade, Navegação e Comércio" entre Portugal e a Rússia de Catarina II, tratado este que vinha no seguimento da "Convenção marítima de Neutralidade Armada", assinada com a Rússia em 13 de Julho de 1782 durante a Guerra da Independência Americana, que Portugal tinha ganho esse estatuto. 1

Estatuto que tinha sido reconhecido formalmente ao ter sido aceite a mediação de Portugal no conflito provocado pelo estabelecimento de um entreposto comercial britânico na Baía de Nutka (Nootka Sound), na costa americana do Pacífico. A instalação deste estabelecimento comercial, a actual cidade de Vancouver, em território que a Espanha considerava parte das suas possessões na América do Norte, provocou a reacção do vice-rei do México que mandou ocupar o posto e arrear a bandeira britânica, o que aconteceu em Maio de 1789, tendo sido apresado um navio mercante e aprisionado a sua tripulação.  

O entreposto de comércio das peles fazia parte dos planos britânicos de reconquista do muito rentável comércio de peles do interior do continente americano, absolutamente necessário ao comércio com a China, e as notícias da acção espanhola, que chegaram ao Reino Unido em Janeiro de 1790, provocaram medidas imediatas de preparação para a guerra, com a aprovação de fundos para a guerra e o armamento de uma frota. A Espanha requereu o apoio da França, de acordo com o "Pacto de Família", mas a recusa de Luís XVI de apoio a Espanha, após a Assembleia Constituinte ter repudiado o Pacto de Família em 26 de Agosto desse ano, obrigou este país a negociar com a Grã-Bretanha. A Espanha foi obrigada a entregar o navio que tinha apresado, a libertar a tripulação, a pagar compensações e, o mais importante, a aceitar a posse da costa a norte da Califórnia pelos britânicos. 2

O desfecho do caso era favorável à política externa portuguesa, ao provocar a separação entre a França e a Espanha, e o isolamento da potência vizinha de Portugal na Europa. Para além de que Portugal aparecia como tendo apaziguado os ânimos bélicos das duas potências, o que serviu para apresentar a proposta de criação de uma Tríplice Aliança, 3 o corolário lógico da política diplomática da "Viradeira". Mesmo que a proposta não fosse aceite, como nunca foi, mantinha os canais diplomáticos abertos e as soluções bélicas afastadas do relacionamento entre os dois principais aliados de Portugal, e o país diplomaticamente equidistante das duas potências. A política diplomática seguida pelos governos de D. Maria I desde 1778, de aproximação à Espanha, mantendo a Aliança inglesa, ficava assim consolidada.

 

A Guerra da Primeira Coligação

 

A tentativa de fuga de Luís XVI, o seu julgamento, condenação à morte e execução pública na guilhotina, foram provocando reacções diplomáticas em cadeia das potências europeias a quem a república francesa ia declarando guerra. Depois da declaração de guerra à Áustria, ainda realizada em nome de Luís XVI, seguiram-se as declarações contra a Grã-Bretanha e a Holanda (1 de Fevereiro de 1793), e contra a Espanha (7 de Março). O que provocou a assinatura de um conjunto de tratados que tinham como centro o Reino Unido, que deram corpo à primeira «coalizão». Assim a Inglaterra assinou, de 25 de Março a 28 de Outubro, da Rússia à Toscânia, passando pela Sardenha, Espanha (25 de Maio), Áustria, Prússia e alguns príncipes alemães, vários acordos de assistência financeira para apoio aos armamentos dos vários países.

Portugal, que assinou o tratado de aliança com a Inglaterra, em 26 de Setembro, um dos últimos países a fazê-lo, não queria ficar de fora deste acordo global. Sobretudo quando a Espanha, tendo abandonado a sua política de neutralidade perante a França revolucionária, defendida por Aranda, chefe do partido aristocrático ou "aragonês", se converteu à ideia de uma aliança com a Grã-Bretanha, intenção de que o governo português teve conhecimento em 29 de Janeiro, por meio do novo primeiro-ministro espanhol Manuel Godoy. De facto a Espanha tinha intenção de aderir à coligação que se formava a instâncias do Reino Unido, e Godoy mostrava a necessidade de Portugal também "entrar em acção" e de fornecer à Espanha, "não estando o exército espanhol naquela força e bom pé que ele desejava ... os auxílios possíveis, e que se deviam esperar da aliança e amizade" entre os dois governos. 4 

Portugal, a instâncias de Luís Pinto de Sousa, secretário de estado dos negócios estrangeiros desde 1788, parecia afastar-se do princípio de neutralidade, contra a opinião de um grupo dirigido pelo duque de Lafões, que defendia a manutenção do "status quo", exactamente o que em Espanha o "partido aragonês" defendia e em Inglaterra o partido «whig» - a grande aristocracia britânica -  propunha. Mas a necessidade de manter a equidistância e a ligação aos nossos dois principais parceiros diplomáticos assim o exigia, segundo o ministro. Sobretudo, porque, como salientou Valentim Alexandre se "a entrada de Portugal na guerra não deixava de trazer riscos e de acarretar dificuldades financeiras ... no entanto, a situação internacional do país parecia bastante sólida". 5

A verdade é que, formalmente, a entrada de Portugal na coligação não se fazia directamente mas de acordo com os tratados bilaterais anteriores, e que implicavam o estatuto de potência auxiliar. Quer isto dizer que Portugal não se considerava em guerra com a França, mantendo formalmente a sua situação de neutralidade. Do ponto de vista do direito internacional e das regras da diplomacia da época, era uma atitude perfeitamente legítima, mesmo que não tivesse em conta as mudanças provocadas na diplomacia pela política revolucionária francesa. Mas a verdade é que Portugal não podia, nem queria, deixar de se manter no quadro das normas diplomáticas da época, que lhe interessava manter, e o facto é que a sua posição foi sendo reconhecida pelas diferentes potências europeias. 6

 

O Exército Auxiliar à Coroa Espanhola

 

O corpo organizado para apoiar o exército espanhol na Catalunha, de acordo com a convenção assinada com a Espanha em 15 de Julho de 1793, era uma divisão reforçada composta por 6 regimentos de infantaria, um quarto de toda a infantaria portuguesa, e alguma artilharia. Representou de facto um grande esforço sobretudo devido à rapidez com que foi necessário organizá-la. Foi necessário colocar em estado de realizarem uma campanha os vários regimentos envolvidos, tendo para isso sido necessário reformar os soldados e oficiais incapazes de participarem na expedição, devido sobretudo à idade, substituir os oficiais e fazer o recrutamento para completar os quadros regimentais, preparar os corpos tacticamente para manobrar conjuntamente, o que já estava a ser realizado desde a criação do campo da Charneca de Sintra, em Junho. O problema principal não era juntar os corpos; o problema mais complexo era a parte material. Montar a artilharia, requisitar animais de tiro, preparar as munições, organizar o material de engenharia, etc. Em 18 de Setembro, 3 meses depois da assinatura da convenção, o Exército Auxiliar à Coroa de Espanha partia para a Catalunha, onde chegou a 9 de Novembro.

Quando a divisão portuguesa desembarcou no porto de Rosas o exército espanhol ocupava uma pequena faixa de território do Rossilhão francês na margem esquerda do rio Tech, com o centro em Le Boulou na estrada para Perpignan, a esquerda em Le Ceret e a direita na Costa. O reforço português era significativo para um exército que estava reduzido a 20.000 homens, e devido ao aumento de efectivos o exército do general Ricardos pôde retomar a ofensiva empurrando os franceses para Perpignan, cidade que acabou por não ser tomada. A incapacidade de conquistar esta cidade francesa foi um revés importante para os espanhóis, e teve como consequência a perda definitiva da iniciativa militar. 

De facto, o ano de 1793 não terminava favoravelmente para a coligação nem a sul, já que Toulon, o grande porto militar francês do Mediterrâneo, que tinha sido ocupado em Agosto por uma força militar anglo-espanhola, tinha sido reconquistada em 19 de Dezembro, mostrando a dificuldade de relacionamento entre britânicos e castelhanos; nem no norte da Europa, já que os exércitos revolucionários tinham conseguido impedir a invasão do território francês. O ano de 1794 foi pior, e desde o começo da campanha iniciada pelo exército francês em Abril, as derrotas nos Pirinéus sucederam-se, terminando com a vitória francesa de 17 de Novembro na batalha da "Montanha Negra", onde foi feito prisioneiro em bloco o 1.º regimento do Porto e, ainda mais grave, com a rendição da fortaleza de Figueiras, em 27 de Novembro, o que possibilitava a rápida conquista da Catalunha pelo exército francês. No País Basco e em Navarra, nos Pirinéus Ocidentais, a situação não era melhor. No norte da Europa, 1794 viu a conquista da Bélgica e da Holanda pelos exércitos franceses.

No princípio de 1795 a situação militar não melhorou. A Prússia retirou-se da coligação assinando a paz em Basileia em 5 Abril, a Holanda conquistada assinou um tratado de aliança em 16 de Maio e as forças inglesas expulsas da Holanda tinham reembarcado em Hamburgo a 14 de Abril. Na Catalunha a fortaleza costeira de Rosas foi capturada pela forças francesas, mas depois desta conquista o exército da república não conseguiu avançar muito mais para Sul mantendo-se os dois exércitos na linha do rio Fluvia, não havendo mais do que pequenos reencontros que foram sempre indecisos. De facto, sob o comando do general Urrutia, o quarto comandante espanhol em dois anos de guerra, o exército espanhol da Catalunha tinha sustido a invasão francesa e mesmo contra-atacado, retomando a povoação de Puigcerdá, na fronteira, em 26 de Julho. Mas quatro dias antes, no dia 22, a Espanha e a França tinham assinado um tratado de paz em Basileia. 7

A situação de Portugal complicava-se, assim como a da coligação. Para Portugal, tratava-se agora de perceber qual a posição que a Espanha iria seguir. Iria ser o mais difícil. Mas o que era previsível era, no mínimo, o regresso da hostilidade entre a Espanha e a Grã-Bretanha, até porque a entrega da parte espanhola da ilha de São Domingos, nas Antilhas, pelo tratado de Basileia, não era de molde a agradar à Grã-Bretanha. O que ninguém podia prever é que para a Carlos IV o essencial da sua política iria ser tentar assumir a direcção da Dinastia Borbon, sem direcção desde a morte de Luís XVI, controlando-a em Itália, onde estava instalada por meio das casas de Parma e de Napóles, e tentando dirigi-la em Portugal, por intermédio da sua filha primogénita, a Princesa Carlota Joaquina. De facto, essa intenção de Carlos IV tinha sido apoiada pela França, quando a República aceitou que quaisquer conversações de paz com os estados italianos, assim como com Portugal, se realizassem por mediação espanhola.

 

Um Balanço da participação portuguesa na Catalunha

 

Para a análise da campanha na Catalunha tem-se seguido sempre de muito de perto a análise de Latino Coelho, não havendo nenhuma discussão sobre as conclusões que este autor defendeu. Para Latino Coelho, como é sabido, seguindo Luz Soriano, não havia razão para nos termos embrenhado nos problemas europeus, seguindo os interesses britânicos e espanhóis, muito menos havendo razão de atacar a França que não nos tinha declarado guerra. 

No seguimento de Borges de Macedo, Valentim Alexandre veio dar uma nova visão sobre o problema diplomático, pondo em causa as opiniões dos dois autores citados, como mostrei. Mas do ponto de vista militar, a situação ainda não foi revista, e é preciso reavaliá-la rapidamente, até porque permitirá aprofundar o estudo inovador do professor Valentim Alexandre.

Assim, é patente que a infantaria, a artilharia e mesmo os vários generais portugueses deram boa conta de si, do ponto de vista profissional. É também patente, que a experiência ganha nos dois anos de campanha não se perdeu, havendo introdução rápida de novidades no regulamento de manobra, com a criação logo em 1795 dos atiradores. 8 Mesmo que alguns autores, como Chaby, Ferreira Gil, Carlos Selvagem, Fernando Taveira, possam afirmar que nada se apreendeu na campanha a verdade é que a legislação de carácter militar promulgada nos anos seguintes demonstra a tentativa de aplicar na prática os conhecimentos ganhos nos Pirinéus.

Mas o mais interessante na história da campanha, é o grave problema disciplinar que foi despoletado no princípio de 1795, pela publicação do relatório da batalha da "Montanha Negra" na Gazeta de Lisboa em Dezembro de 1794. Latino Coelho considera tratar-se de uma grave falta de disciplina, não resolvida convenientemente pelo comandante da divisão, o general Forbes, notando que o caso tinha contornos de repúdio dos oficiais estrangeiros a servir no exército português. Interessantemente, mas sem tirar nenhum tipo de conclusão sobre isso, nota que "os que se diziam agravados eram principalmente [oficiais] de valia na corte, pelas suas relações de parentesco". É de notar a hábil maneira como Latino Coelho, republicano radical, evita constatar que eram todos oficiais oriundos da aristocracia da corte.

O carácter nacionalista do confronto será o ponto central da obra de Raul Brandão, Vida e Morte de Gomes Freire, publicado em 1914, livro que tornará o nacionalismo a base da compreensão deste estranho conflito disciplinar. Há de facto um anacronismo nesta conclusão que não tem sido notado, assim como se não tem notado a antipatia mostrada por este grupo aristocrático para com os, na época, majores Teixeira Rebelo e António da Rosa, os comandantes da artilharia que também foram alvo dos ataques de Gomes Freire.

O interessante é que estas posições de Freire de Andrade se repetirão em 1801, no relatório sobre a incursão na Galiza, e mais tarde em 1803. Voltaremos a este assunto mais abaixo quando falarmos da Guerra das Laranjas, e mais tarde, noutro estudo, quando falarmos das tentativas de reforma do exército de 1803 e dos motins de Campo de Ourique.

 

Portugal e o turbilhão espanhol

 

A política espanhola modificou-se logo no ano seguinte com a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso com a França, em 18 de Agosto de 1796. O acordo que só tinha efeito contra a Grã-Bretanha, como especificava o seu artigo 18, 9 punha em prática o que tinha sido defendido em 1790 por Mirabeau: uma aliança ente as duas Nações, para além dos respectivos regimes. A ideia baseava-se no facto de se achar, dos dois lados da fronteira, mas sobretudo do lado francês, que os dois países eram aliados naturais, e os seus interesses económicos e militares complementares.

Para Portugal o artigo 4 do Tratado era muito interessante, já que a França revolucionária aceitava a existência do estatuto de potência auxiliar. 10 Do ponto de vista formal, as posições de Luís Pinto de Sousa estavam a partir de agora acauteladas. Conseguir que a República aceitasse esse estatuto para a participação de Portugal na coligação era evidentemente o mais difícil. Havia aqui uma contradição que só podia ser resolvida pela França. Portugal tinha entrado na coligação defendendo o seu estatuto de potência auxiliar, e por isso sem pôr em causa o seu estatuto de neutralidade. A França aceitava a existência desse estatuto, mas não o aceitava no caso da participação portuguesa. Ora era exactamente para prevenir a eventualidade - melhor seria dizer a probabilidade - de a França, na guerra europeia que se avizinhava em 1793, não acatar a neutralidade portuguesa, que Portugal tinha sentido a necessidade de se aliar à Grã-Bretanha e à Espanha, e colocar o seu comércio marítimo sob a protecção das duas forças navais aliadas.

Mas para as potências contratantes, a França e a Espanha, os objectivos imediatos eram bem diferentes. À França interessava-lhe o apoio da frota espanhola e a possibilidade de utilização dos Portos atlânticos da Espanha na guerra marítima contra a Grã-Bretanha. A Espanha estava somente interessada em Itália, já que na frente marítima o apoio francês seria sempre mínimo, como de facto sempre o foi até 1808, e a guerra marítima contrária aos interesses económicos e financeiros da Espanha naquele momento. De facto não parecem ser os interesses da Espanha o que estava em causa na assinatura da aliança ofensiva e defensiva contra o Reino Unido, mas sim os interesses dinásticos, centrados pelo casal real Carlos IV e Maria Luísa da Parma, com o apoio explícito de Manuel Godoy, na península itálica.

E a realidade política italiana estava a ser transformada de uma maneira totalmente inesperada, no segundo trimestre de 1796, pelo jovem general Bonaparte. O exército francês de Itália tinha tomado a iniciativa militar a partir de Abril, invadido o Piemonte, o território continental do Reino da Sardenha, e derrotado o seu exército, tendo ocupado de seguida Parma e Modena assim como a Toscânia, tomado algumas fortalezas da República de Veneza, invadido os Estados da Igreja e obrigado o reino de Nápoles a negociar a sua retirada da coligação anti-francesa. Em 23 de Junho, data do tratado de paz com o Papa, a Itália estava pacificada e ocupada pelo exército francês, sendo que a Espanha não tinha sido solicitada a intervir como mediadora em nenhuma destes acordos. Nem tão-pouco foi notificada quando foi negociado o tratado de paz de Outubro de 1796 entre Nápoles e a França, que teve como consequência a retirada da frota britânica do Mediterrâneo.

 

Portugal entre a Grã-Bretanha e a aliança franco-espanhola.
A frente diplomática e a frente militar.

 

A partir de 1795 Portugal desejará ver reconhecida o seu estatuto de neutralidade pela França, recusando primeiro qualquer mediação espanhola, mais tarde aceitando-a mas recusando a discussão de um tratado de paz, finalmente em 1797, ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha, aceitando, a discussão de um tratado, com pagamento de indemnizações mas com recusa de uma aliança ofensiva. A situação diplomática irá manter-se indefinida até 1801, com avanços e recuos nas posições diplomáticas mas sempre na defesa de uma estratégia bem definida. 11

Para Luís Pinto de Sousa, assim como para uma parte importante da elite governativa portuguesa, conhecida na história como "partido inglês", a aliança inglesa era essencial para a prosperidade económica do país, devido à necessidade do mercado britânico, da vulnerabilidade do comércio português ao ataque da frota britânica e à dependência do abastecimento alimentar de fornecimentos externos. 12

A aliança seria por isso o fulcro da nossa diplomacia e da nossa defesa em caso de guerra. A novidade em finais do século XVIII é que, com base na experiência da última campanha militar, se achou que Portugal, com a ajuda militar britânica, se conseguiria defender de uma invasão conjunta franco-espanhola.

Por isso, a política de preparação da máquina militar, que tinha começada por volta de 1790, após a nomeação de Luís Pinto para a secretaria da Guerra e do duque de Lafões para o posto de marechal general, continuará em 1796 e nos anos seguintes produzindo melhorias significativas na organização militar, assim:

  • organizaram-se as guarnições dos fortes e fortalezas do Algarve, do Minho e da Beira, as fronteiras em que se achava que a rede de fortalezas daria um contributo eficaz para a defesa;

  • aumentaram-se os efectivos da artilharia e da infantaria, e modernizou-se a organização dos batalhões;

  • criou-se a "Legião de Tropas Ligeiras" e organizaram-se as companhias de caçadores nos regimentos de infantaria;

  • reorganizam-se os antigos Terços de Infantaria Auxiliar, a que se deu o nome de "Regimento de Milícias", ligando estes corpos ainda mais às tropas de linha;

  • criou-se a Brigada Real de Marinha;

  • do ponto de vista do recrutamento, acabou-se com todas as isenções e obrigou-se os detentores e sucessores de bens da coroa e das ordens, de títulos e de vínculos, por junto a aristocracia, a servir no exército ou na armada, ou a inscrever-se no Colégio dos Nobres, ou nas várias Academias militares do país, ou a pagarem uma contribuição equivalente a 20% do valor dos seus bens; de facto uma tentativa relativamente conseguida de militarização da aristocracia portuguesa;

  • criou-se a Sociedade Real Marítima, Geográfica e Militar para fazer o levantamento cartográfico do país e dos territórios ultramarinos, preparando também projectos de desenvolvimento económico, e que juntou numa instituição oficial os engenheiros militares, a oficiais da armada, professores da Universidade e membros da elite científica nacional;

  • finalmente, contratou-se um general austríaco, o príncipe de Waldeck, para comandar o exército de campanha em caso de guerra, e um conjunto de oficiais franceses emigrados, dirigidos pelo marquês de La Rosière, para organizarem o estado-maior do Exército. 13

Para dar corpo a estas modificações e mostrar a intenção de defender o país, criou-se em finais de 1796 um campo de manobras na Azambuja, onde se concentrou uma parte importante do exército,14 havendo um plano de defesa do país, 15 resumo de vários planos apresentados. Juntando a tudo isto a Grã-Bretanha enviou em 1797 uma força expedicionária de reforço do exército português. As inspecções realizadas pelo príncipe de Waldeck em Março e Abril de 1798, a 10 regimentos de infantaria, mostravam um exército relativamente bem preparado, realizando manobras competentemente, mas com efectivos muito variados, devido a que uns regimentos estavam a pôr em prática os novos regulamentos, com manobras tácticas que não eram inteiramente uniformes e com armas de várias proveniências e tamanhos. Os quatro regimentos de cavalaria inspeccionados nessa altura caracterizavam-se sobretudo por ter cavalos fracos e pequenos. 16

Entretanto a guerra com o Reino Unido tinha-se tornado para a Espanha um desastre, tendo a frota espanhola sido derrotada na batalha do Cabo São Vicente, em 14 de Fevereiro de 1797, e a ilha da Trindade nas Antilhas sido conquistada poucos dias depois. Os desastres espanhóis levaram Godoy a entrar em conversações com o governo britânico, que tendo sido mal sucedidas, levaram à sua demissão em Março de 1798, acusado pelo Directório francês de, entre outras coisas, não querer atacar Portugal. Para a Grã-Bretanha a situação também não se mostrava muito favorável, já que a França mostrava poder invadir as ilhas britânicas, tendo-o quase conseguido em Dezembro de 1796 na Irlanda, e tendo-o de facto conseguido em Fevereiro de 1797 quando um pequeno número de tropas francesas desembarcaram por um momento em Bristol e incendiaram a cidade. Os motins na frota do Canal em Abril e Maio foram ainda mais preocupantes, pondo em causa a operacionalidade da principal força de defesa da Grã-Bretanha.

Para Portugal a situação, que tinha sido muito preocupante e de preparação para uma invasão conjunta espanhola e francesa no Outono de 1797, devido à assinatura da paz entre a França e a Áustria pelo tratado de Campo Formio de 17 de Outubro, foi-se tornando cada vez mais calma, sobretudo quando se soube que os armamentos navais realizados no sul de França desde princípios da Primavera de 1798 se tinham dirigido para o Egipto. A frota portuguesa do marquês de Nisa, em cruzeiro no Mediterrâneo desde Junho de 1798, sob as ordens de Nelson que por lá navegava desde o mês anterior, na tentativa de descobrir as intenções francesas, assegurava a cooperação luso-britânica na guerra, e na possível defesa de Portugal se a frota francesa de Toulon se tivesse dirigido para a Europa. Cooperação que se manteve neste caso até Janeiro de 1800, época em que a frota regressou a Lisboa. Nesse mesmo mês de Janeiro de 1800 o exército português viu os seus efectivos reduzidos devido à situação diplomática muito favorável para Portugal, já que o reacender da guerra na Europa devido à vitória de Aboukir em Agosto de 1798, que tinha provocado o isolamento do exército francês no Egipto, afastava o espectro de uma invasão.

 

A Guerra das Laranjas

 

Com o regresso de Napoleão Bonaparte a França em Outubro de 1799, a tomada do poder em Novembro por meio do golpe de estado de "Brumário" e a vitória do exército francês em Marengo, em Junho de 1800, mas sobretudo com o armistício de Parsdorf de 15 de Julho assinado pelos comandantes dos exércitos francês e austríaco na Alemanha, a situação portuguesa deteriorou-se rapidamente. Com este armistício perfilava-se a possibilidade de um acordo com a Áustria, o que permitia pensar no desvio de recursos para a Península Ibérica.

Em 28 de Julho Napoleão Bonaparte decide enviar o general Berthier, o seu conhecido chefe de estado-maior, a Madrid com o objectivo de levar a Espanha a declarar a guerra a Portugal, interessando Carlos IV no projecto com uma solução para a situação do duque de Parma, primo direito do rei de Espanha, irmão da Rainha Maria Luísa, e sogro de uma das suas filhas, a infanta Maria Luísa, e que tinha o seu ducado ocupado pelo exército francês. 17 A missão de Berthier, que só chegou a Madrid em 3 de Setembro, teve como consequência a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso de 1 de Outubro de 1800. Para dar ao duque de Parma a Toscânia e o título de rei a Espanha entregou à França a Luisiana, e 6 naus de guerra. Mas a declaração de guerra contra Portugal não foi acordada, mesmo que Napoleão Bonaparte tivesse pressionado para que a Guerra fosse declarada em meados de Outubro. 18 A missão de levar a Espanha a declarar a guerra a Portugal foi entregue ao irmão Luciano Bonaparte, nomeado embaixador em Novembro de 1800, mas sem ordens para oferecer apoio militar, tirando a oferta de alguns oficiais de engenharia e de artilharia. O governo espanhol continuou a recusar-se a atacar Portugal. Em finais de
Novembro, com o fim do armistício na Alemanha, a guerra entre a Áustria e a França retomava-se afastando de novo o espectro de uma intervenção francesa na Península. Mas a derrota austríaca na batalha de Hohehlinden, na Baviera, em Dezembro de 1800, fazia prever a retirada da Áustria da guerra o que veio a acontecer em 9 de Fevereiro de 1801, quando se assinou o tratado de paz de Luneville entre a Áustria e a França. 

Portugal, que se via pressionado pela Espanha para aceitar as velhas exigências da França de abandonar a aliança inglesa, foi recusando de facto a realização de qualquer tipo de negociação, durante todo o ano de 1800. E preparava-se para a guerra, ao regulamentar o recrutamento e a utilização dos regimentos de milícias, considerados essenciais para o reforço do exército de campanha, e que irão ter na guerra futura uma participação assinalável. 19 

A guerra acabou por chegar por via de um ultimato conjunto francês e espanhol entregue em 6 de Fevereiro de 1801, que tendo sido recusado provocou a saída de Lisboa em 19 de Fevereiro dos dois embaixadores, sendo a declaração de guerra assinada em 27 e proclamada em 2 de Março. Começou então uma corrida febril para pôr o exército em estado de entrar em campanha criando-se as companhias de artilharia a cavalo, levantando-se um novo regimento de infantaria, o 24.º e que se denominará "de Lisboa", nomeando-se o intendente-geral dos Transportes, e mandando criar-se corpos de voluntários de ordenanças que serão organizados tanto em Trás-os-Montes, sob a direcção do coronel Pamplona, e que serão dirigidos pelo futuro conde de Amarante, assim como na Beira, sob a direcção do marquês de Alorna, e que são criadas para actuarem como corpos de infantaria ligeira.

 

A estratégia portuguesa 

 

O governo português sabia que havia um exército francês em Bayonne, e que a invasão de Portugal iria ser feita pela Galiza e pela Extremadura espanhola, pondo assim em perigo as províncias do Minho e Trás-os-Montes e a do Alentejo. 20 O exército foi por isso dividido em 2 corpos. Um foi organizado nas províncias do Minho e de Trás-os-Montes sob o comando do quartel-mestre general marquês de La Rosière, o outro, sob o comando do inspector-geral da Infantaria o tenente-general Forbes, defenderá a fronteira da Beira e do Alentejo, tendo o controlo das poucas forças que são deixadas no Algarve sob a direcção do governador das Armas da província, Francisco da Cunha Menezes, Monteiro-mor do reino, oficial que tinha participado, enquanto coronel do regimento de infantaria de Cascais, na campanha do Rossilhão. 

 

As instruções de campanha

 

As instruções dadas pelo duque de Lafões, tanto a La Rosière como a Forbes, são muito simples. Evitar "acções gerais e consumir o inimigo na guerra de postos" 21 como escreve a La Rosière ou "evitar quanto possa acções gerais e decisivas adoptando o sistema da guerra, que lhe parecer mais próprio para retardar os progressos do inimigo, sem procurar a ruína deste por acções que possam também completar a nossa em um só dia", sendo que "a guerra de postos, e principalmente a de montanhas é a que mais nos convêm."

A estratégia no Alentejo é clara desde o princípio. Estabelecer um cordão de tropas de Nisa até Arronches, e logo que o exército espanhol invadir a província tentar manter-se o maior tempo possível na serra de São Mamede, sendo que o objectivo principal é impedir a travessia do Tejo, entre Abrantes e Santarém, pelo exército invasor. De acordo com estas instruções as forças de manobra na Beira, sob o comando do marquês de Alorna, servirão somente para proteger a retaguarda do exército do Alentejo e apoiar uma possível retirada deste exército atravessando o Tejo por Vila Velha de Ródão.

As fortalezas que se preparam para uma defesa efectiva foram no norte, Valença, Chaves e Bragança, na Beira Almeida e no Alentejo Campo Maior, Elvas e Castelo de Vide, sendo deixadas quase sem tropas de linha Juromenha e Marvão, sendo entregues à exclusiva defesa de tropas milicianas Olivença e Estremoz.

Os dois exércitos são organizados diferentemente. Assim, no Norte as 4 brigadas organizadas, das quais 3 estavam no Minho e uma em Trás-os-Montes, os regimentos de infantaria de linha foram misturados com regimentos de milícias, numa proporção de 1 para 3, tendo cada brigada também um esquadrão de cavalaria. No Alentejo, o exército é organizado em 3 divisões, divididas em brigadas, compostas só de tropas de infantaria de linha, sendo os regimentos de milícias utilizados nas fortalezas.

Forbes chegou a Estremoz, quartel-general do exército do Alentejo, a 21 de Março, estando já aquartelados os regimentos enviados de Lisboa, sob o comando de Gomes Freire de Andrade, esperando-se os batalhões enviados do Algarve.

As únicas tropas não ocupadas nas fronteiras estavam de guarnição em Lisboa. Dois regimentos de infantaria e metade dos 3 regimentos de cavalaria, assim como a Brigada de Emigrados franceses, que parece não se saber muito bem o que fazer com ela, já que estando destinada a fazer parte do exército do Norte, para lá não foi, tendo acabado por ser enviada para o Alentejo. 

O exército espanhol concentrava-se nos princípios de Maio entre Badajoz e Alcântara, depois de se ter dirigido para Cidade Rodrigo por Alcântara, em Abril, enquanto que e o exército francês comandado pelo general Leclerc, cunhado de Napoleão Bonaparte, ia entrando em França dirigindo-se com muita dificuldade por Burgos para Salamanca e Cidade Rodrigo, enviando patrulhas para Alcântara, para fazer a ligação às tropas espanholas comandadas pelo regressado Manuel Godoy.

No dia 10 de Maio de 1801 houve um pequeno reencontro com tropas espanholas na fronteira, do lado de Portalegre. Não achando que fosse ainda o ataque geral, Forbes decidiu, de qualquer maneira, transferir o quartel-general de Estremoz para Portalegre em 18 de Maio, e avançar a linha de postos para a fronteira, concentrando o exército à volta de Castelo de Vide, Porto da Espada e Alegrete "aproximando assim todo o exército à Serra de São Mamede", mas a divisão comandada por D. António Soares de Noronha, ao transferir a sua divisão de Monforte, Arronches e Assumar para Alegrete, deixou desguarnecidas tanto Monforte como Arronches, povoações que deviam definir o flanco direito do exército de Forbes.

Quando Forbes chegou a Portalegre dia 20 soube do ataque do exército espanhol a Olivença, Juromenha, Elvas e Campo Maior. Olivença, que não estava em estado de se defender, rendeu-se logo por intermédio do seu governador, o coronel francês Jules César de Chermont. Juromenha que estava preparada para a defesa, e se esperava que demorasse os espanhóis algum tempo, impedindo-os de se dirigirem a Estremoz, rendeu-se também à primeira intimação. Mas as duas praças de Campo Maior e de Elvas em que se verdadeiramente confiava para retardar decididamente a invasão espanhola fizeram o que se esperava - defenderam-se.

A brigada de granadeiros e caçadores da Divisão do Centro, comandada por Bernardim Freire de Andrade, foi transferida para Alegrete para reforçar o ainda considerado flanco direito, sendo dois batalhões dos regimentos de Olivença da brigada de infantaria da direita mandados regressar a Arronches e Monforte por D. Miguel Pereira Forjaz, ajudante-general do exército do Alentejo. O erro de ter abandonado Monforte e Arronches não pôde ser colmatado totalmente, já que Monforte já estava ocupado pelos Espanhóis.

A defesa das duas fortalezas da raia fizeram com que o exército espanhol, tendo de se reorganizar para bloquear Elvas e sitiar Campo Maior, só tivesse começado a avançar de novo em 24 de Maio, tendo ocupado nesse dia Santa Eulália e Barbacena. Só 3 dias depois avançaram sobre Monforte. Em 29 de Maio foi a vez de a divisão espanhola da Vanguarda, comandada pelo general Solano, avançar em direcção a Arronches. Esta pausa só pode ser entendida pelo atraso nos transportes de víveres e munições. No dia anterior, dia 28 de Maio, chegou ao Crato a Brigada de Emigrados, comandada pelo general escocês Simon Fraser, num movimento que Garção Stockler considerou, nas suas Cartas, como a salvação do exército português pelo duque de Lafões, que a tinha dirigido para essa povoação, impedido assim o avanço generalizado dos espanhóis. A verdade é que a ordem fora dada por Forbes, no dia 18 de Maio, dois dias antes da invasão espanhola, quando soube por Stockler que a brigada se dirigia de Abrantes para se reunir ao exército do Alentejo, como prova o seu copiador de correspondência 22 , e o ter-lhe sido dado um posto tão na retaguarda deveu-se tão somente ao medo da deserção generalizada dos soldados da brigada, se estivessem perto da linha de combate.

Em Arronches como vimos encontrava-se D. José Carcome Lobo a comandar, com ordens claras de não atacar as forças espanholas à sua frente, recuando em direcção às forças, comandadas por Bernardim Freire de Andrade, que estavam em Mosteiros para apoiar a sua retirada. A verdade é que o coronel Carcome não conseguiu cumprir as ordens e deixou-se envolver pelas tropas espanholas que o atacaram, acabando por realizar o que lhe estava ordenado, mas com baixas desnecessárias. Segundo Neves Costa, assim como Luz Soriano, que tem a mesma opinião, a má colocação das tropas foi o principal erro do coronel Carcome, sendo que devia ter aproveitado uma pausa no ataque espanhol, quando as primeiras forças pararam o combate à espera de reforços, para retirar-se. No relatório deste combate, temos a primeira descrição da utilização dos atiradores das companhias de fuzileiros dos batalhões de infantaria portugueses, e a sua utilização no combate, tanto à frente do batalhão como no apoio dos flancos. O exército português não estava tão mal preparado para a guerra como pode parecer na leitura de alguns autores de história militar, mesmo que a aplicação táctica por oficiais superiores pudesse ser deficiente.

Como escreveu Neves Costa, mesmo depois do combate de Arronches o exército espanhol continuou a progredir lentamente, permitindo ao exército português que tinha duas divisões ao redor de Portalegre, e a outra em Castelo de Vide, retirasse em direcção ao Gavião, na margem esquerda do Tejo, tendo a sua retaguarda protegida por forças da divisão da Beira. Quem dirigiu esta retirada foi o duque de Lafões, que tendo saído de Lisboa em 22 de Maio, tinha chegado a Portalegre a 28. Todo o exército do Alentejo se reuniu no Gavião em 31 de Maio de 1801, abandonando assim praticamente todo o Alto Alentejo, sem ter sido incomodado, mas mantendo duas fortalezas que impediam que o exército espanhol pudesse aproveitar convenientemente os seus sucessos. Absolutamente dependentes dos armazéns e dos transortes para se alimentarem, as duas fortalezas alentejanas seriam sempre um espinho na linha de comunicações do exército espanhol, entre Badajoz e Portalegre, e depois Abrantes se quisessem continuar a campanha.

Até 8 de Junho, data em que foi assinado o tratado de Paz de Badajoz, os únicos acontecimentos que se deram foi o aprisionamento, no dia 4, de uma força que tinha escoltado os carros enviados a Flor da Rosa para recuperar os mantimentos aí armazenados, e a rendição, no dia 6, de Campo Maior. Nem um nem outro acontecimento tiveram impacto nas negociações finais do tratado de paz

O tratado de Paz assinado por Godoy e Luciano Bonaparte, tinha como objectivo para a Espanha concluir rapidamente a intervenção francesa na Península, já que pelo tratado de Aranjuez se afirmava que com a assinatura de um tratado de paz as tropas francesas seriam retiradas rapidamente da Península. Godoy estava interessada em fechar os Portos portugueses às frotas britânicas, pensando que com este sucesso poderia negociar directamente com a Grã-Bretanha a paz, como o tinha tentado em 1798. De facto uma guerra de conquista contra Portugal, com o apoio do exército francês, poria em causa tal objectivo. Por isso, como não tinha destruído o exército português na fronteira, e não podia avançar para a linha do Tejo facilmente, devido a ter o seu flanco direito ameaçado pela divisão do marquês de Alorna, e a sua retaguarda ameaçada pela forças estacionadas em Elvas, só com o apoio da divisão francesa de Leclerc poderia continuar a campanha. Mas as forças francesas estavam ainda muito longe de puderem entrar em campanha, e para ajudarem os espanhóis teriam de se dirigir para Alcântara, a Sul da sua zona de concentração que era Salamanca. Mesmo que algumas forças de cavalaria francesa se tivessem
mostrado, segundo parece, na fronteira da Beira Baixa, não eram suficientes para pôr em perigo as forças comandadas pelo marquês de Alorna. Godoy decidiu-se então pela paz.

Como o tratado de paz não foi ratificado pelo primeiro cônsul francês o estado de guerra manteve-se entre Portugal e a França. 

Entretanto no Norte, no Minho e em Trás-os-Montes nada tinha acontecido, não tendo havido movimentos ofensivos espanhóis, o que levou o marquês da La Rosière a ordenar a Gomes Freire de Andrade que entrasse na Galiza, com uma pequena força, retirada da brigada comandada pelo tenente general D. Manuel José Lobo e pelo marechal de campo João António de Sá Pereira, barão de Alverca, para se informar se era possível realizar uma ofensiva pela veiga de Chaves em direcção a Monterei na Galiza. A expedição, que entrou em Espanha no dia 8, foi um fracasso não tendo conseguido realizar nada, recuando vagarosamente até que regressou a Chaves no dia seguinte. Houve outras pequenas acções mas nada influíram na conclusão da guerra. 

No Algarve, as forças comandadas por Francisco da Cunha, monteiro-mor do reino, impediram, no dia 8 de Junho, uma tentativa de travessia espanhola do Guadiana em direcção a Vila Real de Santo António. Tudo se resolveu a um duelo de artilharia entre as canhoneiras espanholas e as baterias portuguesas. Francisco da Cunha ganharia o título de Conde de Castro Marim por esta acção. 

Mais importante do que tudo isto, numa acção preparada desde 1800, forças milicianas do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, com o apoio de índios descontentes com a governação colonial espanhola, conquistavam definitivamente a zona das sete missões, entregues formalmente a Portugal pelo tratado de Madrid de 1750, mas nunca de facto transferidas para a soberania portuguesa. Cedidas por Portugal no Tratado de Santo Ildefonso de 1777, aceitando a realidade dos factos, mas nunca esquecendo a importância de tais territórios para o desenvolvimento do sul do Brasil, como Jaime Cortesão lembrou. 

Esta conquista realizada a partir de 8 de Agosto de 1801, por José Borges do Canto, antigo soldado do Regimento de Dragões do Rio Grande do Sul, com o cerco e tomada da povoação de São Miguel e posteriormente do resto das missões, foi um sucesso que nunca foi reconhecido em tratado, mas que o governo espanhol reclamou sempre, ligando no futuro a entrega das missões à entrega de Olivença. 23

Mas a guerra não tinha acabado, e por isso não se sabendo as intenções dos espanhóis, pensando-se que podiam avançar por Ponte de Sôr, e tornear a posição do Gavião, decidiu-se recuar o exército para Abrantes, continuando por isso a cumprir o plano pensado desde 1796. O exército começou a retirar em 7 de Junho, atravessando o Tejo no dia 8 e acampado no dia 9. O tratado foi ratificado pelo príncipe regente em 14 de Junho, e no dia 23 seguinte o duque de Lafões foi dispensado do comando, sendo este entregue ao conde de Goltz. 

Goltz, oficial prussiano ao serviço da Dinamarca, conhecido pelo Tártaro, tinha sido contratado por Portugal para dirigir o exército em campanha, mas mais uma vez, exactamente como tinha acontecido ao Príncipe de Waldeck, falecido em 1798, tinha tido a oposição do marechal general, que via nestas contratações um ataque ao seu poder e à sua capacidade. Goltz que estava em Portugal desde o Outono de 1800, não tinha funções determinadas, e de facto não fazia rigorosamente nada.

Quando assumiu o comando do exército decidiu chamar para Coimbra a cavalaria de linha do exército do Norte, ordenando a Gomes Freire que organizasse uma rede de postos de vigilância na fronteira a ser mantido unicamente pelos regimentos de milícias. La Rosiére que estava a reposicionar o seu exército da linha do rio Minho para uma linha de defesa entre Braga e Guimarães, fortificando o desfiladeiro de Salamonde; preparando-se portanto para uma invasão francesa pela Beira e Trás-os-Montes, em direcção ao Porto, por Braga. A decisão de Goltz provocou uma reacção violenta do general francês emigrado, e a apreensão do governo português sobre as capacidades militares do general prussiano, já que a defesa do Norte de Portugal era absolutamente essencial, porque o objectivo assumido da França era ocupar as
três províncias do Norte com o Porto. Na carta de 2 de Outubro em que discute esta situação, o general francês apresenta mesmo a demissão. A assinatura do tratado de paz entre Portugal e a França, em Setembro, e a sua ratificação em Outubro, com o subsequente regresso aos quartéis do exército acabou por resolver este grave conflito disciplinar.

 

Uma avaliação da campanha

 

O exército português mostrou fragilidades grandes na campanha. Neves Costa refere-se a elas muito claramente. Falta de oficiais experimentados em dirigir grandes unidades, de cavalaria capaz de reconhecer o inimigo, de efectivos.

Os vários problemas vão ser abordados logo de seguida. Assim, criou-se em Dezembro de 1801 uma comissão para a reorganização do exército, mais tarde em 1802, outra para remodelar o código de disciplina militar e a organização das coudelarias, necessárias para a remonta da cavalaria do exército. Na cavalaria cria-se logo em 1801 um Centro de Instrução na Azambuja, para onde são enviados destacamentos de todos os regimentos de cavalaria do exército. O general Forbes apresentará na primeira reunião da comissão, como solução para a falta de efectivos, a eliminação das Milícias e a reorganização das Ordenanças permitindo a "Leva em Massa" em caso de guerra, criando-se como na Prússia os soldados semestreiros, soldados que estando ao serviço do exército só serviriam dois meses por ano.

Muitas das opiniões de Forbes nesta Comissão Militar deram lugar a Leis, sendo dele a ideia de organizar o exército em três divisões, assim como ideia de criar seis legiões de tropas ligeiras, formadas por um batalhão de caçadores e um esquadrão de cavalaria ligeira, que serão criados em 1808 por D. Miguel Pereira Forjaz, secretário da comissão e seu colaborador desde 1790.

Estas propostas de Forbes, algumas radicais, provocaram a reacção dos seus velhos rivais, o marquês de Alorna e Gomes Freire de Andrade, este defendendo no seu livro de 1806 a manutenção da organização militar tradicional em 1.ª Linha, Milícias e Ordenanças. As propostas de reforma acabaram por não ser postas em prática em bloco, sendo postas em prática isoladamente. Mas em 1807 Portugal chegou ao fim do ano com o mesmo dilema. Sem forças militares em número suficiente só com um exército aliado poderoso poderia resistir a uma invasão franco-espanhola.


Notas:

* Este artigo foi apresentando como comunicação ao Congresso Guerra Peninsular - Da Europa dividida à União Europeia realizado nos dias 28 a 30 de Novembro de 2002 pelo Instituto da Defesa Nacional, e foi a base do meu livro Olivença, 1801: Portugal em Guerra do Guadiana ao Paraguai, Lisboa, Tibuna da História («Batalhas de Portugal»), 2004.

1. Ver José Ferreira Borges de Castro, Colecção de Tratados, III, págs. 268 e seguintes; Caetano Beirão, D. Maria I, págs.

2. Muriel E. Chamberlain, ‘Pax Britannica’? British Foreign Policy, 1789-1914, Londres, Longman («Studies in Modern History»), 1988, págs. 23 e 24. O assunto é tratado também por Valentim Alexandre, Os Sentidos do Império, Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português, Lisboa, Afrontamento («Biblioteca das Ciências do Homem»), 1993, págs. 97-98.  

3. Latino Coelho, História Política e Militar de Portugal desde os fins do XVIII século até 1814, tomo II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1885, pág. 235.

4. Luz Soriano, História da Guerra Civil, 1.ª Época, Tomo III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, págs. 122-127.

5. obra citada, págs. 100-101.

6. Valentim Alexandre defende que já na época o estatuto de potência auxiliar era “demasiado subtil e evanescente para ter efeitos práticos” (cf. ob.cit., pág. 100). Não me parece correcto esta afirmação, já que no Tratado de Santo Ildefonso de Agosto de 1796 entre a França e a Espanha o estatuto de potência auxiliar é reconhecido (vide nota 10), e é bom lembrar que devemos ter em conta que Portugal entrava na coligação para se manter no concerto das monarquias europeias contra a novidade que era a república francesa. Assim o que interessava é que o estatuto de auxiliar fosse reconhecido pelas potências europeias, e foi-o de facto, e isso era o que tanto naquele momento, como no futuro, interessava a Portugal. Luz Soriano refere esta aceitação da situação específica de Portugal pelos diferentes países europeus na sua História da Guerra Civil.

7. A história da campanha foi feita no Tomo III, da obra clássica de Latino Coelho, História Militar e Política de Portugal desde os fins do XVIII século até 1814, Lisboa, Imprensa Nacional, 1891; a campanha foi reapreciada na obra do tenente coronel João Vieira Borges, Intervenções Militares Portuguesas na Europa do Séc. XVIII, Uma análise estratégica, Lisboa, Atena, 2000, no capítulo V: «Portugal na “Campanha do Rossilhão e da Catalunha”», mas que segue muito de perto a apreciação de Latino Coelho.

8. Latino Coelho, ob.cit., tomo III, pág 521: «cada um dos batalhões [portugueses] marchava coberto pelos seus atiradores, porque então se começava a modificar a táctica tradicional».

9. « Artículo decimoctavo: Siendo la Inglaterra la única Potencia de quien la España ha recibido agravios directos, la presente Alianza sólo tendrá efecto contra ella en la guerra actual, y la España permanecerá neutral respecto a las demás Potencias que estén en guerra con la República». A última frase refere-se claramente a Portugal.

10. «Artículo decimocuarto: En el caso de que una de las dos Potencias no obrase sino como auxiliar, la Potencia solamente atacada podríá tratar separadamente por sí de Paz; pero de modo que de esto no resulte perjuicio alguno a la Potencia auxiliar y que antes bien redunde, en lo posible, en beneficio directo suyo; a cuyo fin se enterará a la Potencia auxiliar del modo y del tiempo convenido para abrir y seguir las negociaciones».

11. Valentim Alexandre, ob.cit., pág. 103, refuta claramente a análise de Luz Soriano, e seguida pela maior parte da historiografia portuguesa até aos nossos dias, de que não havia linha política coerente na acção do governo português.

12. Ob.cit., págs. 103 e ss.

13. Luz Soriano afirma sobre este assunto que «atenta pois a política que Portugal tinha abraçado, decididamente hostil à França, mandava a prudência e aconselhava o bom senso, que se recorresse a todos os meios possíveis de resistir aos nossos adversários.» afirmando que nada se tinha feito. Cf. ob.cit., vol.II, 1879, pág. 308. A legislação foi compilada de António Delgado da Silva, Collecção da Legislação Portuguesa desde a última compilação das ordenações ... , Legislação de 1791 a 1801, Lisboa, Na Typografia Maiorense, 1828.

14. Barão de Wiederhold «Campos militares», Revista Militar, 1863.

15. Vide documento n.º 98 «Plano de defesa, ou das posições que devem ocupar os exércitos de observação, feito em 4 de Setembro de 1796», in Luz Soriano, História da Guerra Civil, 1.ª Época, Tomo III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, págs. 450-459.

16. Documentos publicados sobre as revistas passadas a regimentos de infantaria, cavalaria, artilharia e milícias assim como a ordenanças na Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve pelo príncipe de Waldeck no Boletim do Arquivo Histórico Militar, 62.º volume, págs. 153-373.

17. Cf. carta de Napoleão Bonaparte a Talleyrand, ministro dos negócios estrangeiros de 28 de Julho de 1800, Correspondance de Napoléon Ier, Tome VI, Paris, Imprimerie Impériale, 1860, págs. 538-539, n.º 5.034.

18. Correspondance de Napoléon Ier, Tome VI, pág. 593, n.º 5.120.

19. Alvará de 1 de Setembro de 1800 in António Delgado da Silva, Collecção da Legislação Portuguesa desde a última compilação das ordenações ... , Legislação de 1791 a 1801, págs. 643-644

20. Júlio Firmino Júdice Biker, Suplemento à Colecção dos Tratados, Convenções, Contratos e actos públicos celebrados entre a coroa de Portugal e as mais potências desde 1640, Tomo XIII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, págs. 155-156 «Ofício de Luís Pinto de Sousa para D. João de Almeida de Melo e Castro» de 26 de Fevereiro de 1801.

21. «Instruções dadas pelo marechal general, duque de Lafões ...ao tenente general marquês de la Rosière, comandante do exército de Entre-Douro e Minho» in Luz Soriano, ob.cit., tomo III, doc. N.º 96, págs. 442-446, transcrição de documento do Arquivo Histórico Militar, ...

22. Arquivo Histórico Militar, 1.ª Divisão, 12.ª Secção, Caixa 2, n.º 13, «Copiador da Correspondência Oficial dirigida pelo Tenente General João Forbes Skellater ao Comandante em Chefe do Exército, Secretário Militar e Ministro da Guerra».

23. V. de Silvino da Cruz Curado, «A Guerra de 1801 no Brasil e a Questão de Olivença» in Preito de Reconhecimento. Colectânea de Estudos em Homenagem ao Senhor Coronel Carlos da Costa Gomes Bessa, no seu 80.º Aniversário, Lisboa, Academia Portuguesa da História e Comissão Portuguesa de História Militar, 2002, págs.361-389. As lista de fontes e bibliografia citadas é completa.

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