O Infante D. Henrique na Crónica da Guiné
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O Infante D. Henrique na Crónica dos feitos da Guiné de Gomes Eanes de Zurara

 

 

O Infante D. Henrique, 1394-1460

(Assinalando os 550 Anos da sua morte)

 


 

Ver o currículo do Autor João Silva de Sousa

 

D. João I, filho ilegítimo de D. Pedro I, irmão de D. Fernando I, sucede a este último, nos primeiros dias de Março de 1385, não sem que se travassem duras batalhas com Castela, continuando assim, mesmo já depois de rei. Por isso, tratou de recompensar quantos o haviam apoiado nesses anos de intranquilidade e de inevitável constante movimentação militar necessária à defesa do Reino de Norte a Sul e na sua consequente e inevitável reconstrução.

 

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Filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, o Infante D. Henrique foi um dos cinco primeiros filhos do casal, e, dos vivos, o terceiro. Descendia, pelo lado materno, dos reis de Inglaterra (dos Eduardo I, II e III) e, pelo lado do pai dos reis de Portugal, de Leão e Castela, de Navarra e das Astúrias.

Nasceu na cidade do Porto, a 4 de Março de 1394. Acerca da rua e da casa onde viera ao mundo, nada está provado documentalmente. Parece ter sido baptizado a 8 seguinte, na Sé do burgo, acontecimento, naturalmente celebrado com festejos populares, em parte promovidos e custeados pelo concelho, nos quais se gastou avultada importância como pode verificar-se através dos nove recibos originais de Outubro-Novembro daquele ano, comprovativos das despesas então feitas pela câmara. Seu padrinho de baptismo, entre outros, terá sido o 42.º bispo de Viseu, D. João Homem, que o foi também de D. Duarte. Este dado podemos inferir de uma carta do próprio D. Henrique, uma vez que se dirigiu ao cabido viseense a solicitar-lhe que concedesse, por emprazamento e a preço conveniente, a Pedro Nunes Homem, escudeiro de sua Casa, a terra de Canhas de Senhorim, não muito afastada dos bens paternos do dito Pedro Nunes.

 

1. Carta patrimonial (1411).

 

Antecedentes: 1400 e 1402.

Após o tratado de Paz começado a gizar em 1400 e, finalmente, assinado, em Segóvia, em 15 de Agosto de 1402, D. João I terá pensado na correcção da Casa dos filhos já nascidos, D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique.

Neste ano, o rei mandou reduzir, em elementos humanos, as despesas com a sua Casa e com a da rainha, para vir a constituir as Casas dos jovens Infantes.

Nas cortes de Évora, de Abril de 1408, fica organizado o património destes e, assim sendo, o monarca terá ponderado na centralização do seu poder, dado que muito teria de recuperar dos grandes magnates do Reino, cerceando-lhes a força económica e com esta a política, e dando aos filhos partes do território que, nas mãos deles, poderia significar um mais fácil acesso da Coroa a rendimentos e auxílios de variados géneros, como os militar e paramilitar.

 

2. A constituição da Casa do Infante

 

A 17 de Abril de 1411, ficam definidos os alicerces das casas de D. Pedro, em torno de Coimbra, no Baixo-Mondego, e de D. Henrique, nos aros de Viseu, Guarda e Lamego, na então Comarca da Beira, correspondendo, sensivelmente, à Beira Interior de hoje. Guarda, Viseu e Lamego eram, na altura, os únicos três almoxarifados da dita comarca, abrangendo a Guarda toda a área de Castelo Branco, e tornando-se no almoxarifado equivalente, em superfície, à soma dos de Viseu e Lamego.

Ficamos conhecedores dos bens doados, inicialmente, ao Infante e por ele, mais tarde, adquiridos, por doação, troca e compra, comparando as referidas na carta de património de 17 de Abril de 1411 com as elencadas na Inquirição ordenada por D. Duarte aos almoxarifados de Viseu e Lamego, em 1433-1434.

Em 1413, sabemo-lo a viver já em terras de sua jurisdição, ao redor daqueles três principais concelhos.

 

 

O infante D. Henrique numa gravura holandesa

© Corbis

Príncipe Henrique, chamado O Navegador, gravura holandesa

3. Primeiro grande momento: A tomada de Ceuta e os reforços
(1415; 1418-1419; 1424…)

 

No que se refere aos preparativos da tomada de Ceuta, o Infante revela-se um jovem alegre, amante da boa comida e dos bons vinhos, divertido, provavelmente bom dançarino, uma personagem totalmente distinta da que nos tem sido retratada e que, há vinte e cinco anos a esta parte, vem sendo modificada pelos historiadores. O próprio Zurara, em meados do séc. XV, ao relatar as festas que assinalaram o consentimento dado pelo rei aos Infantes para uma intervenção militar no Norte de África, desvenda-nos esta característica, mas a ela adiciona a de um homem religioso, asceta, pensativo, olhando o Oceano…, características, ainda estas, contrariadas pelo comércio em que investia, bastando recordar o doloroso e desumano retrato que nos é apresentado pelo Cronista, ao narrar o mercado de escravos em Lagos, padecendo da situação em si e da separação.

D. Henrique desloca-se com seus irmãos e cavaleiros-criados a suas terras, por perto de Viseu, organiza festas condicentes, com estandartes, panos de cores, tochas acesas, tocadores, por certo, de violas de arco, rotas e flautas, e danças que davam cor e som à região, crendo o Povo, de imediato, que, pelo aparato, se tratava de Príncipes da Corte de Portugal e convidados destes. O Infante encomendou os melhores vinhos da região, brancos, vermelhos e malvasias, e do Estrangeiro também. E, deste modo, por aí ficaram alguns dias, dirigindo-se depois a Coimbra, a terras do Infante D. Pedro.

Daqui foi, de novo, ao Porto, para preparar a armada, entre Fevereiro e Junho de 1415. E, uma vez em Ceuta, após retumbante vitória, foi armado cavaleiro pelo rei, seu pai, na mesquita-maior, então já templo cristão.

Em termos de áreas da jurisdição henriquina e da aquisição de feudos territoriais e funcionais, a conquista de Ceuta em 1415 foi, por demais, informativa, nas suas imediatas consequências: um desastre, porque um sumidouro de homens e dinheiro. Uma vitória, pela sua localização estratégica à boca do Estreito.

Regressado ao País, foram-lhe outorgados o título de Duque de Viseu, a alcaidaria-mor da cidade, o senhorio da Covilhã, vila de uma localização, também esta estratégica, porque importante, e ficou encarregado do provimento e defesa de Ceuta, de cuja capitania incumbiram D. Pedro de Menezes, a quem o rei entregara um bastão, o Aloé, posterior devisa do Conde, o qual este colocou nas mãos da imagem de Nossa Senhora de África.

Entretanto, os Portugueses, nas naus henriquinas, redescobrem as ilhas da Madeira e Porto Santo. Começaram em 1419.

Em 25 de Maio de 1420, o papa Martinho V designou-o Administrador da Ordem de Cristo, cargo que desempenhou até morrer. Fê-lo a pedido do rei de Portugal, através da bula In apostolice dignitatis specula, por morte de D. Lopo Dias de Sousa, seu antigo tutor.

Com a Ordem entregue ao Infante, a 2 de Outubro deste ano, o rei despacha a criação da feira semi-franqueada de Tomar, a durar 15 dias, a começar 5 dias depois da Páscoa, com o privilégio do pagamento apenas de metade da sisa.

Acompanhando as principais empresas do Norte de África e políticas no Continente, desde a tomada de Ceuta e do seu primeiro socorro, em 1418/19, D. Henrique recebeu o monopólio do fabrico e o exclusivo da venda do sabão, o que deu azo a fortes e variadas reclamações por parte do Povo, em cortes. Mas o facto é que, enquanto se não elaborou o Regimento das Saboarias, promulgado por D. Afonso V, em 1455, a exploração do sabão preto e branco constituiu um monopólio do Infante. Feito de gordura animal e cinzas, o sabão fabricava-se da Ilha da Madeira ao Continente, passando pela Beira e pelo Alentejo e, por vezes, em cidades que não pertenciam nem no todo nem em parte ao Navegador, como Évora, por exemplo, onde tinha uma sua saboaria, administrada por oficiais de sua Casa, perto da Fonte das Bravas.

Em 1421, o Príncipe obteve do soberano, seu pai, o monopólio das pescas nos rios Ocresa, Ponsul e Ródão, onde mais ninguém poderia fazê-lo. E, quanto às pescas, em geral, mas desta feita, fora dos domínios henriquinos, desde 10 de Janeiro daquele ano, D. João I autorizou o filho a mandar abrir canais de pesca nos rios, a cortar em troços o fluxo das águas, troços esses mais ou menos longos, nos rios principais e em outros onde apenas ele poderia mandar colocar redes. Levantavam-se aí também pesqueiras como é natural, e colocavam-se nesses espaços barcas de passagem, em que os barqueiros recebiam direitos de passagem (as costumagens) que eram divididos entre eles e o mordomo que arrecadava a parte que cabia a D. Henrique.

O Infante deteve:

A) O exclusivo da pesca do atum, das corvinas e sardinhas nos mares do Algarve;

B) A dízima nova (ou redízima) da pesca no mar de Monte Gordo;

C) A pesca nas Berlengas e no Baleal, nos mares de Peniche;

D) A pesca nas Ilhas Atlânticas e na Costa de África;

E) No Cabo de S. Vicente;

F) A do coral, desde 1450, um ano após a batalha de Alfarrobeira.

Iniciam-se os privilégios a trabalhadores das terras suas e da Ordem que administra. Ficam isentos do pagamento de impostos ao monarca (excepto dos direitos reais), livres ainda do cumprimento do serviço militar, de velas e rondas, de anúduvas, de tutorias e curadorias, das funções de besteiro do conto e de acompanhar presos e dinheiros públicos, um bloco extremamente importante de benesses para que pudessem dedicar-se exclusivamente ao ciclo do pão, do vinho e das leguminosas e de trabalhos manuais em prol das casas do Infante e das granjas da Ordem de Cristo. Esta situação antes de generalizar-se, começou por 30 cultivadores nomeados para a granja de Alpriate que era pertença da Ordem e, entre 24 de Março e 11 de Junho de 1430, recebeu do pai privilégios como os que enunciámos para seus criados, mordomos e apaniguados. Os comendadores de Cristo recebem igualmente um bom rol de imunidades, em 1434.

Em 1431, colaborou na feitura da lei que o rei promulgou sobre o degredo para Ceuta e, neste mesmo ano, aconselhou D. Duarte a celebrar um tratado de paz e amizade com os reis de Aragão e Navarra. Pondo-os do nosso lado, Castela ficava como um enclave, embora extenso e poderoso, cercado de reinos amigos uns dos outros e capazes de se interajudarem em caso de necessidade.

Em 1432, participou, em Almeirim, no juramento pelo rei do tratado de paz com Castela, passando a contar, desde então, com a amizade e a confiança de todos os reis peninsulares

 


Henrique, O Navegador, avistando a sua frota

D. Henrique, O Navegador, avistando a sua frota

Segundo Grande momento: a passagem do Cabo Bojador (1434)

 

Logo, no ano seguinte, D. Duarte, no trono desde 1433, outorgou a D. Henrique autorização para mandar fazer feira na sua vila de Tarouca (26 de Agosto de 1435), três dias antes da festa do Corpo de Deus até três dias depois, “de guisa que sejam sete dias”, do tipo da de Tomar, de 1420. Começou, assim, a Coroa, a dar algum sentido às terras menos populosas da Comarca da Beira, onde se impunha uma atenção dobrada no seu povoamento e desenvolvimento económico e administrativo a todos os níveis. A área é muito rica, com uma grande diversidade de produções, muita água e generosa em linho, fruta (a cereja), vinho de excepcional qualidade, entre o Dão e o Douro, lanifícios de muito boa qualidade e quantidade. Os impostos pagam-se em dinheiro, preferentemente, daí a importância da feira, onde se vendiam os produtos, se fazia dinheiro com eles e se liquidavam as obrigações de modo pecuniário.

Na comarca em causa, D. Henrique obtém o relego das uvas e do vinho da cidade, que era até então, um direito real, Este privilégio visiense era antiquíssimo, pois D. Teresa, em 1109, doou-o ao Cabido da Sé, por alturas do nascimento de D. Afonso Henriques e do seu baptizado e, pelo que nos é dado verificar, sempre permanecera na cidade. Era uma das mais importantes fontes de receita. Entretanto, de Constância até Lisboa, foi-lhe autorizada a construção de moinhos neste trecho do rio Tejo.

 

Terceiro Grande Momento: a adopção de D. Fernando, filho de D. Duarte, antecedendo o desastre de Tânger (1437)

 

A ida a Tânger, um tanto fora das inclinações políticas e militares de D. Duarte, levou D. Henrique, a 7 de Março de 1436, a perfilhar ou adoptar o filho do rei, o Infante D. Fernando, seu sobrinho e afilhado. Desconhecemos qual o significado que teriam na Idade Média os quadros da perfilhação e da adopção de um filho de pais vivos e com condições económicas para o sustentar. Para mais, filho de rei e rainha, legítimo e o segundo na ordem da sucessão. Talvez o instituto em causa fosse o único válido para que D. Fernando viesse a ser herdeiro de alguém que não era seu pai, mas tio e padrinho. A Lei Mental, dado o consentimento dos reis, pais do príncipe, não contrariaria a herança por parte deste dos bens henriquinos. Mas a referida perfilhação – caso único na Idade Média, nestes termos -, não seria por certo necessária. Quantos não se furtaram à Lei Mental, por benevolência especial do rei, e sem que fosse precisa alguma situação tão estranha e estrema como esta, ou, quando muito, a legitimação… Por outro lado, o documento, com perfilhação e adopção, não deixa de mencionar a expressão “sem embargo da Lei Mental”. De facto, parece-nos este caso de difícil entendimento, excepto se D. Henrique, invocando a situação de não esperar vir a casar e a ter filhos – como declara sem saber o que diz -, quisesse que, deste modo, este filho de D. Duarte fosse considerado seu próprio filho para poder vir a herdar o que este tinha, mas sem referência ao que viesse a arrecadar no futuro. Desta feita, a Coroa ficaria com o conhecimento de quem seria o herdeiro do Infante, caso este viesse a falecer em combate.

Os reis concordaram e Tânger passou a ser um destino definitivo, mas inglório. Se o Infante viesse aí a falecer, todos os seus bens transitavam para a posse de seu afilhado. O documento veio a ser, de imediato, ratificado pelo Eloquente e, anos mais tarde, a 23 de Novembro de 1451, por D. Afonso V. Em grandes tormentos ficou, durante seis anos, em Fez, o Infante D. Fernando, vindo aí a falecer e tendo sido beatificado posteriormente. O Cronista refere que D. Henrique se queria fazer substituir ao irmão. O facto é que o Infante Santo morre em 1443 em Marrocos, e o Infante D. Henrique não saiu sequer do Reino.

 

Quarto Grande momento: a regência de D. Pedro a par do início do governo de D. Afonso V (1438-1448)

 

Tânger por um lado, depois a morte do rei D. Duarte e, de seguida, a sucessão de D. Afonso V causaram problemas muito difíceis de solucionar.

Vejamos: D, Duarte tinha deixado expresso, no seu derradeiro testamento – segundo parece – que seria sua mulher, a rainha-viúva, D. Leonor, filha de Fernando I, rei de Aragão e de Leonor Urraca de Castela. Era irmã dos então infantes Afonso e João. Foi designada nas Cortes de Torres Novas de 1438 para ser Regente do Reino, durante a menoridade de D. Afonso V de Portugal, com seis anos, ao tempo da sucessão. Nas cortes de Lisboa de 1439, D. Leonor foi forçada a abandonar o cargo de co-regente do Reino, saindo do País e vindo a falecer dez anos depois, na cidade de Toledo. Dizia-se que poderia vir a repetir-se o longo episódio de má lembrança, ocorrido em 1383.

Entre umas cortes e outras, porém, o Infante D. Henrique, redigiu o famoso Regimento do Reino, - um belíssimo exemplar escrito de diplomacia portuguesa -, colocando D. Pedro, irmão mais velho do rei D. Duarte como Regente e com a pasta da defesa. D. Leonor encarregar-se-ia da tutoria dos filhos menores e D. Fernando, Conde de Arraiolos, filho de D. Afonso, 8.º Conde de Barcelos, ficaria com a justiça. Nenhum poderia decidir fosse o que fosse sem conhecimento dos outros dois e da assinatura dos três. Mexeu ainda na Administração régia, propondo umas Cortes restritas e um conselho alargado… mas tudo fora efémero. Na assembleia seguinte, D. Pedro foi bem sucedido a envidar esforços em afastar D. Leonor da regência e ficou como regente a sós, a partir de então, até que o jovem rei perfizesse os catorze anos, ou seja, até 1446.

Pelos favores prestados e atendendo a que o regente tinha a noção de que governava em nome de outrem, não era, na verdade, esbanjador. Mas também não podia esquecer-se de que era ao Infante e a outros sequazes que devia a sua vitória, sobre uma regente, mulher e para mais estrangeira, e sobre o Conde de Barcelos, seu meio-irmão, que lhe fizera a vida num inferno.

D. Pedro tratou de outorgar a D. Henrique o exclusivo da navegação e comércio para lá do Cabo Bojador, dado que já o detinha de Gibraltar até ao dito Cabo; isentou-o do quinto e da dízima do que destas paragens trouxesse ao Reino ele próprio ou quem por ele fosse autorizado a ir. Doou-lhe o Cabo de S. Vicente, no extremo do Barlavento algarvio o que com o Cabo de Sagres, vinha a obter um espaço alargadíssimo, importante ponto de estudo dos ventos, das estrelas, dos planetas, do movimento dos mares e local privilegiado para pôr em prática, ao ar livre, os conhecimentos e instrumentos que as Repúblicas Italianas lhe iam enviando e quanto do Oriente, Árabes e Persas faziam chegar às suas mãos.

A 4 de Maio de 1442, deu ao Infante autorização para organizar a sua feira de Pombal, certame anual como os outros, de 23 de Junho a 8 de Julho, tal como a de Tomar; e, no ano seguinte, doou-lhe a vila de Gouveia, com todos os rendimentos e termos, a título hereditário. Foi dele até 1457, ano em que foi trocada por Silves, onde mandou erigir Paços: doação associada aos direitos do rei e monopólios da pesca e do sal e outros que se estendiam por Boina e pela Serra de Monchique. A 22 de Fevereiro de 1444, D. Pedro concedeu feira anual na cerca da Vala da cidade de Viseu, de 12 a 28 de Outubro, invariavelmente, com os privilégios da feira de Tomar.

O facto é que, partindo da Covilhã, agora com Gouveia e, a Oeste, com os cabos de Sagres e de S. Vicente, por um lado, competia-lhe a defesa da Beira pela raia. E no Poente, permitia-lhe ter sempre gente que vigiasse esse corredor imenso do Atlântico e perto da costa portuguesa. Desta feita, D. Pedro doava-lhe ainda vilas da Coroa no Alentejo, na linha fronteiriça, tais como: Montalvão, Alpalhão e Arez, além de bens em Alcáçovas, Évora, Portel, Arraiolos, Évora Monte e no Redondo. Já o seu potencial herdeiro veio a ser duque de Beja, ficando com a sua alcaidaria-mor e os senhorios de Serpa e Moura. Nesta ordem de ideias, acrescente-se que, em 1440, O Infante foi designado por seu irmão D. Pedro, como Fronteiro-mor da Comarca da Beira, detendo, sobretudo, nas terras de Norte a Sul, bem junto à raia, a máquina que se impunha para defesa da alargada linha de entradas e saídas de Portugal para Castela e vice-versa.

Há ainda, dentro desta cronologia seguida, um facto a assinalar e que representará o grau indiscutível de cultura que D. Henrique demonstraria junto do Pai e dos irmãos, todos eles tidos como representantes da Literatura Didáctica e Científica da época, do interesse pelo estudo dos Clássicos greco-latinos que não cessavam de cotejar e citar. D. Henrique, só porque era por certo um dos que teriam mais capacidade intelectual, foi designado pelo número dois dos irmãos mais sabedores, como Protector do Estudo-Geral sito, à época, em Lisboa. Estamos no ano de 1443. Precisamente de 12 de Outubro, existe uma escritura de venda de casas, na freguesia de S. Tomé ao Infante por 400 coroas de ouro do cunho do Rei de França e da oferta imediata desses bens imóveis pelo actual proprietário à Universidade. Em outra escritura, D. Henrique doou ao Estudo-Geral para sua instalação, as casas de que era proprietário no Bairro dos Escolares da mesma cidade, na freguesia de Santo Estêvão de Alfama. Destinavam-se ao ensino das sete artes liberais. Ainda para finalizarmos este ponto, diga-se que, no seu II Testamento datado de Set.-Out. de 1460, numa das quinze cartas de capelania, o Navegador legou, dos dízimos da Ordem de Cristo na Ilha da Madeira, 12 marcos de prata ao lente da cadeira de Teologia da referida Instituição (a 22 de Setembro), e que essa soma lhe fosse entregue anualmente e a título perpétuo pelo Natal. A par, temos todos bem presentes as aquisições e as ofertas de que foi alvo de mapas, planisférios, globos representativos da Terra, instrumentos náuticos então concebidos pela primeira vez ou adaptados de outros já existentes. A própria caravela e a sua configuração mais adequada ao tipo de navegação que se fazia. Eram instrumentos representativos da Ciência Náutica, da Engenharia, e da construção naval desenvolvidas a seu mando.

 

O Infante D. Henique numa gravura portuguesa do século 18

© BNP

D. Henrique, Infante de Portugal, gravura de Joaquim Carneiro da Silva

Quinto Grande momento: a batalha de Alfarrobeira e o patrocínio a D. Afonso V (1449)

 

Numa fase extremamente negativa para o Regente que deixou funções em 1448 (prolongando por mais dois anos o exercício da Regência, a pedido do rei Afonso V que se achava, em 1446, ainda impreparado para os negócios do “Estado”) mas que, entretanto, casou a filha, D. Isabel, com D. Afonso V e fez do filho, D. Pedro, Condestável do Reino, embora tivesse concedido o título de duque de Bragança a D. Afonso, seu meio-irmão, ilegítimo de D. João I e colocando-o em pé de igualdade com os duques e Mestres das Ordens, os infantes de Portugal, as intrigas concorreram para opor as tropas do ex-Regente contra as do monarca que ele mesmo criou, educou e preparou para a governação. O recontro deu-se a 20 de Maio de 1449, perto da ribeira de Alfarrobeira, em Alverca, às portas de Lisboa. D. Afonso V venceu e D. Pedro ficou dias em campo de batalha, morto, jazendo, lado a lado, com os soldados que haviam também perecido.

O Infante D. Henrique, tornando-se embaixador de tos os lados em conflito, correu o País de Norte a Sul, a fim de contemporizar os ânimos. Acabou por tomar o partido de D. Afonso V, pois, se assim não fosse, era mais um a cometer um crime de lesa-majestade. Não sabemos, no entanto, quantos fiéis ao Infante não se terão passado para o lado de D. Pedro e ficado em Alfarrobeira com ele.

Neste mesmo ano e seguintes, foram-lhe concedidas as inevitáveis cartas de perdão, associadas ou não a diplomas de concessão de privilégios para pessoal de sua casa e aos comendadores da Ordem de Cristo por si administrada. Mais uma vez, um bom número de imunidades. Ainda a cedência do Mestrado da Ordem de Avis, pelo facto de o Condestável D. Pedro ter fugido para Castela após a morte do pai.

A 2 de Outubro de 1449, elaboraram-se novos Estatutos para a Ordem de Cristo. Realçamos a obrigatoriedade dos hábitos, vestimentas e panos que usavam os cavaleiros desta instituição, que iam dos bordados a ouro e prata, aos de escarlata e chapeados. Predominavam os brocados, a seda e tecidos tingidos, acompanhando as modas inglesa e francesa da época. Foi assim já que D. Afonso, 4.º Conde de Ourém, se dirigiu e apresentou no Concílio de Basileia, onde o esperavam o bispo de Viseu, D. Luís do Amaral e do Porto, D. Antão Martins de Chaves, embaixada organizada pelo Infante, ainda em vida de D. Duarte. O Conde de Ourém levava, então, a despacho o problema das Canárias que Portugal queria ver solucionado a nosso favor em termos definitivos, o que não aconteceu.

Foram ainda tomadas medidas favoráveis ao Infante, no que respeita ao desenvolvimento da pastorícia. A transumância, a organização de regulamentos (Gil Álvares foi nomeado para escrivão da Comarca da Beira dos gados que iam pastar a Castela), a exploração da lã e o gado do vento. O infante torna o projecto-lei extensivo aos Açores e daí manda importar gado lanígero.

Embora não detendo, seguramente, o monopólio dos panos da lã, assim como nos Açores, D. Henrique foi, com efeito, senhor de várias terras no Continente, em cujas montanhas, pelo menos, predominariam rebanhos de ovelhas que se espraiavam de Lalim e Baldigem, nos arredores de Tarouca, à serra da Estrela. O gado atravessava os lugares serranos da Guarda, Manteigas, Folgosinho, Mós, Gouveia e Covilhã, nomeando ele próprio um escrivão para a comarca da Beira que superintendesse nas terras que lhe pertenciam e nas da Ordem de Cristo. A transumância fazia-se sempre, mesmo internamente, dada a configuração de montanha, planície, vale profundo e irrigado e planaltos, da região.

A 18 de Maio de 1451, D. Afonso V concede ao tio autorização para mandar fazer moinhos de vento na alcáçova de Santarém e em barcas do rio Tejo, dali até Lisboa. Foram postos de parte os engenhos caseiros nos Paços, nas Vilas e nos feudos, ficando apenas a ser utilizados pelas famílias que trabalhavam nos mansos: mós caseiras, outras maiores movidas pelo homem e por animais de tracção. Nessas zonas na foz do rio, quem construísse moinhos teria de pagar direitos ao rei, revertendo os mesmos para o fisco henriquino. Novos dispositivos foram colocados nas fozes dos rios Barosa, Barosela e Balsemão, onde se instalaram pisões para o fabrico do mel. Por perto, viam-se lagares, com bica, para deixar sair o vinho que se consumia, imediatamente “à bica do lagar”, expressão referida pelos diplomas da época.

A reforçar este alvará, o rei emitiu um outro, permitindo ao Infante mandar construir moinhos de vento na linha de Constância (Vila Velha de Ródão) até Lisboa. Mas mais havia e de que há notícias, que datam, igualmente, de 1451, em diante.

Aproximadamente do mesmo ano, mais precisamente, de 1453/54 (de que há documentação que o prove), o rei outorga o monopólio do abate de árvores e aproveitamento das madeiras e resinas nos pinhais e matas, em geral, do Ribatejo, para a construção de casas, de suportes para as boticas das feiras e, mais concretamente, para a construção das embarcações que até ali só seria possível com madeiras da Comarca da Beira e das Ilhas dos Açores e da Madeira que, para serem povoadas, teriam de ser arroteadas e as árvores abatidas.

Ainda o exclusivo da tinturaria do pastel, cujo aproveitamento se iniciou em 1455. Dava um tom azul e obtinha-se pela maceração das folhas da Isactis Tinctoria L. Da Ilha do Porto Santo e das Canárias vinha o sangue-de-drago, uma resina da árvore do dragoeiro. Finalmente, o rei outorga-lhe direitos únicos sobre quanto havia descoberto e viesse a descobrir.

 

Sexto Grande momento: A bula de Nicolau V Romanus pontifex (1455). A bula de Calixto III Inter coetera (1456).

 

Através destes importantes documentos a Santa Sé pouco mais faz do que legitimar decisões que já analisámos tomadas pelo rei de Portugal. Entretidos uns contra os outros, estava a maior parte dos ”Estados” europeus. Terminada a chamada guerra dos Cem Anos em 1453, o rescaldo levou mais uma série de anos até que A França e a Inglaterra se recompusessem de um conflito armado que se iniciara em 1337, 126 anos de luta arrasadora; o Norte da Europa interrompia a sua organização com a persistente vida tribal Viking e de outros que se iam instalando: não houve união romana que romanizasse e unisse os povos; a Hispânia dividia-se e quando se uniu, Castela, sob a égide de Henrique IV e, depois, de sua irmã, Isabel I, prosseguia na Reconquista e nas tentativas frustradas da tomada de Granada; Aragão, sob os auspícios de João II e, depois, de seu filho, Fernando II tinha problemas graves a resolver com as Repúblicas Italianas.

Entretanto Portugal progredia, enquanto os abutres não desceram aos mares e às nossas feitorias, iniciando um processo de desforra que poria em causa tudo quanto se ia concertando sob a batuta da Santa sé.

Em 1455, Nicolau V expediu a bula Romanus pontifex, dirigida a D. Afonso V e ao rei de Portugal, dando-lhes o monopólio dos mares das terras firmes e ilhas, do comércio e navegação… do Cabo Bojador à Guiné e, como desconhecia o fim da África e os lugares que ainda tencionávamos visitar, utilizou a expressão e “da Guinea ad ultram”.

Em 1456, à morte do papa, o seu sucessor Calisto III emite ao Infante D. Henrique e à Ordem de Cristo por este administrada, a bula Inter coetera, nos mesmos termos da anterior, apenas substituindo a temporalidade pelo espiritual, outorgando-lhe e aos seus comendadores a possibilidade de mandarem edificar casas de oração e mosteiros e de receber deles os direitos de padroado.

O Mundo desconhecido dos europeus era nosso. Decisão ratificada pelo líder do Direito Internacional Público da época: o bispo de Roma.

Esta situação não a gozou o Infante por muito tempo.

Cansado e velho, a velhice já de si era uma doença, ainda acompanha o rei a Alcácer Ceguer, participa da sua conquista mas regressa ao Reino nesse ano de 1458.

 

Túmulo de D. Henrique no Mosteiro da Batalha

Túmulo de D. Henrique no Mosteiro da Batalha

Sétimo Grande momento (1460): a morte do Infante, a herança e os herdeiros; as dívidas.

 

Frágil, inicia a redacção do seu II Testamento, distinto do primeiro, fazendo seu herdeiro universal D. Afonso V, talvez por exigência deste mesmo. Lega a terça a várias entidades e pede ao rei seu sobrinho que se não esqueça de beneficiar seu irmão D. Fernando que fora, desde 1436, seu herdeiro universal de quanto detinha, mas não, de facto, de quanto viesse a deter. Em quatro anos, efectivamente, o duque de Beja vem a receber tudo quanto D. Henrique legara à Coroa, mas o rei e ele têm de encarregar-se de solver o pesado montante de inúmeras dívidas deixadas por D. Henrique.

É àquelas disposições papais que temos de ir buscar as bases do Tratado de Tordesilhas, cordialmente concertado entre D. João II e os chamados Reis Católicos, Fernando e Isabel, de Castela e Aragão, em 1494, quando Cristóvão Colombo descobre as Antilhas, um conjunto de ilhas na América Central. Se eram Ilhas e se achavam localizadas no Mar Oceano, eram nossas por direito próprio e disposição papal.

 

A Casa henriquina, como qualquer outra da época, suscitou problemas perfeitamente enquadrados no plano político de Quatrocentos. Vistos foram alguns dos que se levantaram e que lhe deram origem e vitalidade, outros, no decurso da vida do seu titular e, por fim, à morte deste, porquanto a atitude do rei não foi de excepção: fazer voltar à Coroa os bens imobiliários, originariamente seus, muitos e bem localizados. De novo tentaria o rei de Portugal coarctar o poder económico – e, consequentemente, político e social – de um forte terratenente e desmesurado possidente em que poderia vir a tornar-se o seu próprio irmão, o futuro Duque de Viseu, o que, aliás, veio a suceder com uma estrondosa facilidade, quatro anos volvidos.

Detinha D. Henrique uma Casa na qual os documentos nos permitiram apurar 886 homens e mulheres. Foi das casas que estudámos até hoje, a que nos forneceu um maior número de dados. Todavia, na verdade, este número não passa de uma indicação meramente simbólica, pois encontramos em cada função desempenhada em cada um dos meteres necessários à manutenção da Casa, do aparelho náutico e das necessidades, em geral, do Senhor Infante um número extremamente restrito de profissionais, O verdadeiro valor dessas indicações reside, sobretudo, na variedade de profissões de que ficámos conhecedores, da sua utilidade numa Casa Senhorial, como no Paço do rei, contemplando a Administração em todas as suas vertentes, e os mesteres existentes: do pedreiro ao físico, do peliteiro ao simples mercador ou recoveiro.

 


 

Bibliografia

 

Alves, Alexandre, “Viseu e a Beira no tempo do Infante D. Henrique”, in Actas do Congresso Infante D. Henrique. Viseu e os Descobrimentos”, Viseu, Câmara Municipal de Viseu, 1995, pp. 57-66.

Costa, João Paulo Oliveira e, Henrique, O Infante, Lisboa, A Esfera dos Livros, [2009].

Dinis, António Joaquim Dias, Estudos Henriquinos, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1960.

Iria, Alberto, O infante D. Henrique no Algarve. Estudos Inéditos, Lagos, Centro de Estudos Gil Eanes, 1997.

Monumenta Henricina, ed. de António Joaquim Dias Dinis, 15 vols., Coimbra, Atlântida, 1960-1974.

Russell, Peter, Henrique, o Navegador, Lisboa, Livros Horizonte, 2004 (original, 2000).

Sousa, João Silva de, A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, Livros Horizonte, 1991.

- 1394-1494: Do Infante a Tordesilhas, Cascais, Patrimonia, 1995.

- Senhorias Laicas Beirãs no Século XV, Lisboa, Livros Horizonte, 2005

- D. Afonso, 4.º Conde de Ourém, >Ourém, Câmara Municipal, 2005

 

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