Batalha de Aljubarrota
 
Batalha de Aljubarrota

 

De 910 a 1910

 

Da génese da Monarquia Portuguesa ao início da República

 


 

 Ver o currículo do Autor João Silva de Sousa

 

Esta mundanal afeiçom fez a alguüs estoriadores que os feitos de Castela com os de Portugal escreverom, posto que homeës de boa autoridade fossem, desviar da dereita estrada e correr per semideiros escusos, por as mínguas das terras de que eram em certos passos claramente nom seerem vistas; e espicialmente no grande desvairo que o mui virtuoso Rei da boa memoria Dom Joam, cujo regimento e reinado se segue, ouve com o nobre e poderoso Rei Dom Joam de Castela, poendo parte de seus boõs feitos fora do louvor que mereciam, e ëadendo em alguãs outros da guisa que nom acontecerom, atrevendo-se a pubricar esto em vida de taes que lhe forom companheiros, bem sabedores de todo o contrairo”.

Fernão Lopes

 

 

2.

 

À morte de D. Fernando I, abriu-se nova crise, não menos grave, causada pela instabilidade do monarca e da falta de capacidade demonstrada no fim da vida, quando, meses antes de vir a falecer, assinou com João I de Castela o Tratado de Salvaterra (1383). D. Fernando colocava Portugal nas mãos do rei vizinho, provocando uma forte reacção dos partidários do Mestre de Avis “ca filho he d’el-rei dom Pedro”1. Bastardo, suportado pelo povo que fora empurrado para a Revolução, esta transformou-se de crise dinástica, numa verdadeira mudança do aparelho de “estado” e dos que antes aconselhavam e detinham títulos de nobreza, por uma nova e diferente em que nobres e gente comum subiam a linhas de nobreza altíssimas com dois ou mais títulos, em alguns casos.

 

Sucessivas guerras com Castela e batalhas sangrentas restituíram o Reino aos Portugueses, dado que a herdeira legítima, D. Beatriz, era casada com o monarca castelhano. Uma outra barreira também fortemente alicerçada teria de ser derrubada. Tinha a ver com os mais altos cargos do Conselho e da Administração em geral e ainda com os mais importantes títulos de nobreza terem sido entregues por D. Fernando, mas, sobretudo, pela sua mulher, a rainha Leonor Teles de Menezes que os havia nomeado tendo-os praticamente todos do seu lado. Só rolando cabeças e o exílio restituíram a D. João I o trono, mantendo-o na governação exclusivamente portuguesa por mais dois séculos.

 

Deu-se, então início, após Aljubarrota, Trancoso e Valverde, no seu conjunto, um grande teste à independência de Portugal, trazendo consigo uma mudança digna de nota na estrutura social do País. As camadas baixas da nobreza e os filhos-segundos, ansiando a obtenção de terras e cargos que pertenciam aos poderosos senhores feudais, alinharam com o Regedor e Defensor do Reino. Por motivos diversos, a média burguesia e os artesãos que aspiravam a uma maior participação na administração local e nos assuntos económicos em geral, preferiram ficar ao lado do Mestre e tê-lo por seu chefe contra os que defendiam a velha ordem. As gentes menores aspiravam também a melhores condições de vida e apoiaram todos estes.

D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431) fora condestável do Reino, mordomo-mor da Corte, 2.º Conde de Arraiolos, 7.º Conde de Barcelos e 3ºConde de Ourém. O Dr. João das Regras (1340/1345-1404), jurisconsulto, professor do Estudo-Geral de Lisboa, Protector do mesmo, cavaleiro da Casa do rei, Senhor de Castelo Rodrigo, Tarouca e Valdigem, senhor de Cascais e do reguengo de Oeiras… E assim foram recompensados os que mais de perto auxiliaram o Mestre durante a Crise2.

 

 

Quadro 2

Linhagem real portuguesa da 1.ª Dinastia até D. Afonso IV - 1179- 1325

 

 

D. Afonso I    c.c.    D. Mafalda

                        |

             D. Sancho I    c.c.    D. Dulce de Berenguer (Barcelona)

                                    |                    (1160-1198)

                                    |

                      D. Afonso II    c.c.    D. Urraca de Castela                          

                      (1185-1223)     |              (1186-1220)

           __________________|________________

           |                                                                   |

 D. Sancho II    c.c.    D. Mécia de Haro     D. Afonso III    c.c.    D. Beatriz de Castela

 (1207-1248)                    (1215-1270)       (1210-1279)    |             (1242-1303)

                                                                                      |

                                                                                  D. Dinis      cc.    D. Isabel

                                                                              (1261-1325)    |    (1271-1336)

                                                                                                      |   

                                                                                            D. Afonso IV

 

 

Quadro 3

Linhagem real portuguesa da 1.ª Dinastia desde D. Afonso IV - 1325-1383

 

  

D. Afonso IV    c.c.    D. Beatriz de Castela

 (1291-1357)      |              (1293-1359)

                        |

                  D. Pedro I    c.c.    D. Constança Manuel de Castela

                (1320-1367)     |                         (1320-1349)

                         |            |

                         |  D. Fernando I    c.c.    D. Leonor Teles de Meneses

                         |   (1345-1383)       |                    (1350-1386)

                         |                           |

                 D. João I               D. Beatriz    c.c.    João I  rei de Castela

                                            (1373-1410)                  (1358-1390)

                  

  

Casado, em 1387, com D. Filipa de Lencastre (1359-1415), filha de John of Gaunt (1340-1399), Duque de Lencastre e Duque da Aquitânia, e neta de Eduardo III (1312-1377) de Inglaterra, o rei de Portugal assinou o tratado de Windsor com aquele País, em 1386, que nos daria boas garantias de sucesso e tremendas restrições muito mais tarde na política portuguesa. Tendo como filhos os designados Infantes da Ínclita ou Ilustre Geração, foram pais de D. Duarte, sucessor do trono, D. Pedro, o chamado Infante das Sete Partidas que veio a ser regente do Reino durante a menoridade de D. Afonso V, sucessor de D. Duarte, que falecera muito novo, 1.º Duque de Coimbra e senhor de Montemor; do Infante D. Henrique, o Navegador, assim chamado pelo impulso dado às descobertas e à Expansão Portuguesa, 1.º Duque de Viseu senhor de Covilhã e 1.º administrador laico da Ordem de Cristo; D. Isabel que veio a casar-se com Filipe, o Bom, Duque da Borgonha, em 1430; de D. Fernando, Mestre de Avis, o Infante mártir em Fez, aquando do desastre de Tânger, em 1437; e de D. João, Mestre da Ordem de Santiago. Teve ainda um filho bastardo, nascido antes do seu matrimónio, D. Afonso que veio a ser o 8.º Conde de Barcelos e 1.º Duque de Bragança (1442), rival sanguinário do Infante D. Pedro, seu meio-irmão.

 

A moeda raramente era cunhada em metal puro: inclusive, por motivos técnicos, como a dureza e menos desgaste, ao ouro e à prata devia ser misturado outro metal, obtendo-se uma liga, onde os metais entram em certa proporção. Por exemplo, um quilo de metal a amoedar, para 900 gramas de ouro, 100 gramas de prata: diz-se, então, que o toque é de 900 por mil.

A situação monetária por época da Crise de 1383-1385 não era famosa. Famosa seria… mas pela negativa. Porque foi a partir desta data que se deteriorou em termos difíceis de imaginar e que só não foram catastróficos por virtude do relativamente reduzido papel-moeda na economia do Reino e das defesas que os interessados certamente adoptaram à margem das leis.

 

Efectivamente, refere Fernão Lopes que, após “tais mudanças de liga e talha que serão longas de contar”, uma dobra de D. Fernando chegou a valer, no final do governo de D. João I, 1.173 dobras joaninas3. O cálculo não é, no entanto, exagerado: “o marco de prata de 11 dinheiros elevava-se, entre 1422 e o fim do reinado, a 2.772 libras , quando valera, por morte de D. Fernando, 22 libras apenas. A depreciação real da moeda ultrapassara assim 1.000 vezes ou 100.000%. Em 1422, admite-se a equivalência de 500:1, como encontramos repetidas vezes referido nas Inquirições do rei aos almoxarifados de Viseu e Lamego, em 1433-1434.

 

A Ordenação de 1473 deixa de fazer o cálculo em libras. A libra antiga, que, pela lei de D. Duarte, valia 500 libras novas, passava a ter um valor, nos contratos anteriores a 1466, 36 reais brancos, valendo o marco de prata 1.270 reais. A moeda corrente, após a cunhagem feita para ocorrer às despesas da expedição a Ceuta, era o ceitil. Nos contratos posteriores a 1472, o real branco valia seis ceitis, correspondendo cada libra a 20 reais brancos. Um real branco equivalia a um soldo e um real preto, de cobre, a um dinheiro.

 

Em 1411, D. João I associou o primogénito e herdeiro da Coroa, D. Duarte, ao governo do País, com quem reinou durante 22 anos. Organizaram ambos um plano de expansão militar no Norte de África. Politicamente considerada, teve a vantagem de manter a nobreza ocupada fora das fronteiras portuguesas, ajudando, igualmente, a aliviar a pressão da crise económica, desviando as atenções da situação interna muito debilitada após a Crise, a qual estava longe de satisfatória. Financeiramente, foi um dos maiores erros em que podíamos ter caído. A fama não correspondia à realidade dos factos, mas, mesmo assim, prosseguimos: Ceuta, o desastre de Tânger, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger de novo, Azamor… Anafé e o grande desastre de Alcácer Quibir que nos fez parar de vez, em 4 de Agosto de 1578. Cavalarias e cavalgadas tardo-medievais a par de viagens que traduziam a fase de transição para a modernidade, um contra-senso que nos proporcionariam, a par dos desastres de uma banda, conhecimentos acrescidos, de nova gente, seus hábitos… troca de culturas, organização de colónias, domínio de novos caminhos para transacções comerciais e a descoberta do ouro de Arguim (1446-1460), e a da Mina (1474), ainda a exploração do açúcar na Ilha da Madeira. Iniciaram-se com o Infante D. Henrique e, após a passagem do Bojador, não pararam mais. Até 1460, foram levadas a efeito sob a égide henriquina, interrompidas pelos novos sonhos do Africano e prosseguidas em 1474, pelo Príncipe D. João, futuro D. João II que manteve a política expansionista de seu tio-avô, o Infante D. Henrique.

 

Reconstituição de uma caravela

Reconstituição de uma caravela portuguesa

D. João I morreu em 1433 e D. Duarte reinou a sós cinco anos, pois veio a falecer em 1438. Confirmou centenas de documentos passados pelo pai: legitimações, privilégios, nomeações, doações… Mas não se ficou por aqui. Havia o problema insolúvel da posse das ilhas Canárias e o rei enviou seu sobrinho D. Afonso, 4.º Conde de Ourém, ao Concílio de Basileia; mandou efectuar inquirições aos almoxarifados de Viseu e Lamego que ficaram, aparentemente, concluídas; promulgou a Lei Mental que fazia voltar à Coroa os bens dos falecidos que não deixassem filhos varões; promulgou as chamadas Ordenações de D. Duarte, tidas como uma primeira arrumação das leis publicadas e extravagantes do que viriam a ser as futuras Ordenações Afonsinas; assistiu à passagem do Cabo Bojador que daria início a centenas de viagens de contorno da Costa da África. Morreu após o desastre de Tânger onde seu irmão, o Infante D. Fernando, ficou a apodrecer cativo dos Mouros… Doente, de humor merencório que o levaria aos apontamentos do seu Leal Conselheiro… deixou, num testamento que se perdeu, a rainha viúva como tutora e curadora dos filhos menores. O seu sucessor, D. Afonso V, tinha seis anos.

 

Voltávamos a cenários semelhantes aos da crise dinástica de 1383-1385. Formaram-se dois partidos, à morte do rei: um apoiava a rainha e era chefiado por D. Afonso, 8.º Conde de Barcelos que reuniu à sua volta o que havia de melhor entre a alta nobreza e o alto clero. E D. Pedro, duque de Coimbra que, como filho legítimo de D. João I e irmão mais velho do falecido rei, se opôs, preteriu a vontade da rainha que para mais era estrangeira (D. Leonor de Aragão) e propôs-se para a regência do Reino. Ganhou D. Pedro e governou até 1448, ultrapassando o tempo oficial em dois anos, a pedido do próprio sobrinho-rei que lho pedira porque, em 1446, se achava ainda impreparado. Tomou lugar uma guerra civil que opôs o rei a seu tio o Regente, urdida pela facção oposta e que terminou em Alfarrobeira com a morte de D. Pedro, duque de Coimbra, sogro do rei. Digamos que, neste caso, metade dos principais do Reino exilaram-se em Castela ou noutros países da Europa, e só regressaram, os que assim o desejaram, cinco anos depois, aquando do perdão-geral. Digamos que, até aqui, não fora necessário alçar punhais e espetá-los nas costas dos opositores, nem espingardeiros ou besteiros eliminarem os opositores. O primeiro a fazê-lo foi D. João II e outros a mando deste.

 

Até 1908, a experiência política revoltosa do rei ou dos seus opositores não havia ainda dado sinais de métodos incivilizados de afastar alguém do poder. Uma guerra civil com Afonso V e uma acção um tanto precipitada de D. João II foram casos excepcionais que nada tinham a ver com as experiências inglesa e francesa de pôr, bárbara e demoradamente, um fim a sistemas contrários.

 

Empenhados nos inventos e na arte de navegar, na prática dos ensinamentos da nova ciência náutica, recentes e múltiplos conhecimentos geográficos, o conhecimento da Ásia e a busca do lendário Preste João das Índias, a mão-de-obra cada vez mais especializada, o ouro aportado ao Continente e a solução dos problemas, o espírito de cruzada convenientemente anunciado à Santa Sé, os novos locais de interesse… deixavam o rei, os senhores, os artesãos, a clerezia, os marinheiros… demasiado entretidos na resolução de novos actos de bravura e de diferentes cometimentos que, pela primeira vez, diziam respeito a todos, ou seja, a todo o Povo.

 


 

Notas

 

1. Ver Fernão Lopes, Crónica de D. João I, 1.ª parte relativa à vida de D. João até à Crise Dinástica; 2.ª parte, como rei de Portugal. A Crónica da tomada de Ceuta é, geralmente, tida como a 3.ª parte, embora de autor diferente.

2. Ver Maria Ângela Beirante, Estruturas Sociais em Fernão Lopes , Lisboa, Livros Horizonte, 1984.

3. Crónica de D. João I, parte 1.ª, cap. 50.  

 

 

 

 

 

De 910 a 1910

 

Da génese da Monarquia Portuguesa ao início da República

 

 

Artigos

 

| Página Principal |
| A Imagem da Semana | O Discurso do Mês | Almanaque | Turismo histórico | Estudo da história |
| Agenda | Directório | Pontos de vista | Perguntas mais frequentes | Histórias pessoais | Biografias |
| Novidades | O Liberalismo | As Invasões Francesas | Portugal Barroco | Portugal na Grande Guerra |
| A Guerra de África | Temas de História de Portugal | A Grande Fome na IrlandaAs Cruzadas |
| A Segunda Guerra Mundial | Think Small - Pense pequeno ! | Teoria Política |

Escreva ao Portal da História

© João Silva de Sousa e Manuel Amaral, 2015