D. João Peculiar
D. João Peculiar, estátua de Raul Xavier

D. João Peculiar (1100? - Braga, 3 de Dezembro de 1175)

 


 Ver o currículo do Autor João Silva de Sousa  

 

“De facto, a observância no claustro de Santa Cruz ia de horizonte a horizonte. […] Era a casa-mãe da ordem mais vasta e privilegiada do Reino. Claustro de fama, era ao mesmo tempo a aposentadoria real”

Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa

2. Organizando pari passu

 

A Canónica de Santa Cruz de Coimbra, fundada nos anos 30 do século XII, contou com a estreita colaboração e empenho daquele que viria a tornar-se arcebispo de Braga.

Duarte Galvão, na Crónica de D. Afonso Henriques - que D. Manuel I convidou a escrever sobre os seus feitos de grande louvor, sendo de considerar que “pêra obrar uirtudes, por mujto que naça com a pessoa, nam pode ser comprida nem auer perfeiçam senam per ajuda e graça diuinall” - contrapôs a perfeição nos feitos de D. João, pelo facto de ter cumprido e preparado tarefas ao seu rei, diminuindo a perfeição que se impunha realçar ao monarca. A História Seiscentista teria de envolver o Arcebispo em pecados horrendos que lhe tirassem força e poder, não igualando os do seu Senhor. Só que a História voltou a colocar no seu devido lugar a referida personagem – por factos difíceis de aceitar - quando, acusada de “actos de heresia”, a pôs na sua missão, completamente alheia aos ditos actos e às suas inevitáveis consequências. Assim a veremos. Assim a julgaremos.

Aquando da triste e irreflectida cavalgada contra o Castelo de Badajoz, não sabemos em que estado ficou realmente a perna de Afonso Henriques, que tipo de encontro se deu, nem qual o trato que os dois reis fizeram entre si. Apenas temos notícias mais concludentes de que o soberano português fora preso e libertado nessa luta nas caldas de Lafões, tendo aí permanecido entre Setembro e Dezembro desse mesmo ano. Foi, então, que exarou documentos vários, durante a sua recuperação física, apondo-se um sinal rodado com que a chancelaria régia autentica os documentos de Afonso Henriques, passando a incorporar o nome Sancho, com o epíteto de rei, ao mesmo tempo que secundariza ou omite os nomes dos restantes irmãos.  

Selo

3. Insistindo na Resolução. Notas de fecho.

 

A vida política de D. Afonso Henriques tal como a de D. João Peculiar começam e acabam nas caldas de Lafões.

O autor, Pensamentos

 

 

Recapitulemos, precisando melhor, se possível, alguns dos motivos que levaram D. João Peculiar a certo tipo de atitudes e decisões políticas, agora, tão-só centrais.

Sendo assim, pode pôr-se a hipótese de a decisão de Afonso Henriques casar com uma filha de Amadeu III, conde de Sabóia e de Maurienne, ter ficado a dever-se a uma inspiração de reforço político por parte do inteligente Arcebispo, por alargamento de contactos com poderosos europeus e por quem está junto da Santa Sé, embora a justificação “oficial” que corria em Santa Cruz no fim do século XII fosse aquela que já apontámos. De qualquer maneira, a ligação matrimonial do rei de Portugal com uma sobrinha do rei de França (Luís VI) e filha de um vassalo do imperador romano-germânico distanciava-o do imperador hispânico, seu rival pelo uso de título idêntico. Mas mais importante ainda – repetimos – seriam as relações entre a Casa de Sabóia e a Santa Sé, pelo que, D. João Peculiar via, por certo, através deste matrimónio, abrirem-se as portas a mais fáceis e eficazes ligações diplomáticas entre Portugal e o Papado. De novo, D. João Peculiar ficara encarregado do contrato de casamento dos Infantes e de trazer Mafalda à Corte de Portugal.

Somos também sabedores de que as viagens feitas pelo Arcebispo de Portugal o puseram em contacto com muita gente e com personalidades bem colocadas nos centros europeus de poder. A respeito da vinda de D. Mafalda para o nosso Reino, tem-se-lhe atribuído, sempre ao nível da hipótese, pois não há documento que elucide verdadeiramente a questão, um papel de relevo na condução da Infanta junto de D. Afonso Henriques. A Infanta faleceu, pouco depois da tomada de Alcácer, a 3 de Dezembro de 1158, ficando-lhe dela um filho e três filhas: Sancho, Mafalda, Teresa e Urraca, todos ainda na infância, além dos quais tivera outra filha, D. Sancha, como alguns pretendem e dois rapazes, Henrique e João, falecidos ainda de tenra idade. Ao todo sete filhos, em 12 anos de casamento.

Como o papa Eugénio III [1145-1153] deliberasse celebrar concílio em Reims, em 1148, para nele se condenarem vários erros que começavam a ser noticiados, enviou a Portugal um delegado com o encargo de convocar os prelados. D. João Peculiar, arcebispo de Braga, reuniu na cidade um sínodo, para que os bispos tomassem conhecimento das resoluções do Papa; a ele assistiram o embaixador pontifício e seus oficiais mais notáveis.

Foi assim que o soubemos ter-se deslocado a Toledo – como acima dissemos -, com o pequeno infante Henrique [1147-?], porque, então, sucessor de seu pai, como o Arcebispo pretenderia mostrar para que começasse a hereditariedade a ser considerada, talvez também por tomar parte no Concílio de Toledo, de 16 de Maio de 1150. Aliás, a linha havia sido definida anteriormente: A D. Henrique sucedeu D. Teresa, em 1112, porque os hipotéticos herdeiros eram menores (recorde-se que D. Afonso Henriques tinha 3 anos, ou para lá ainda caminhava) e, em 1128, este retirou o poder das mãos da mãe para governar. Por motivos vários, dependentes da interpretação de cada autor. Mas também, é inegável, porque o Infante, neto de Afonso VI, tinha, à altura, 18 anos para dezanove, e a ele deveria ter já passado o governo da Terra, da parte da Regente, sua mãe. O infante tinha Casa e ministros que o ajudariam na governação, como, aliás, se provou e uma das suas primeiras manifestações de poder interino mais significativo desta vertente terá sido o de mover os restos mortais do Cônsul seu pai de Astorga, “damdo hordem como o corpo de seu pay fosse muy homrradamente leuado a Samta Maria de Bragaa, homde sse mamdara lamçar”.

Em 1151, o Arcebispo empreende nova viagem a Roma. Foi junto do Sumo Pontífice sete vezes, a fim de defender os direitos da sua diocese e de Portugal, cuja independência ajudou a garantir, lutando contra os desideratos dos arcebispos de Santiago e Toledo, os quais, apoiados por Afonso VII, representavam a hegemonia castelhana.

Como atrás referimos, depois de Badajoz (1169), D. Afonso Henriques ficou em Lafões, em banhos em S. Pedro do Sul, desde Setembro, e aí deve ter reunido a sua cúria como parece demonstrar o documento de 13 de Novembro daquele ano, subscrito por todos os grandes do Reino, nobres e eclesiásticos. João Peculiar também aí esteve? E a 15 de Agosto de 1170, quando D. Sancho [1154-1211] foi armado cavaleiro em Santa Cruz de Coimbra? É possível que sim: o arcebispo de Braga estaria na cerimónia de Coimbra, juntamente com todos os homens que ligados à guerra por ofício do Reino não poderiam faltar, e em S. Pedro do Sul também.

A longa e corajosa luta travada com os arcebispos de Compostela e de Toledo na defesa dos bispados sufragâneos e da independência da sua metrópole era o meio mais eficaz para se obter a independência nacional, por aqueles terem o apoio de Afonso VII e representarem a hegemonia castelhana.

A documentação hoje existente a respeito da maioria destes factos permite, umas vezes, verificar a efectiva intervenção do principal conselheiro de Afonso Henriques; outras, ajuda apenas a formular hipóteses mais verosímeis, mas sem provas documentais explícitas, acerca do papel que o arcebispo de Braga decerto desempenhara constantemente. Em 1161, D. Afonso Henriques voltou a privilegiar os Cistercienses de Lafões, entre outros 19, anos antes e depois.

O acto de homenagem a Afonso VII, em 1139, foi testemunhado por Paio Mendes, arcebispo de Braga, João Peculiar, bispo do Porto, Pedro, bispo de Segóvia, Paio, bispo de Tui e Marinho, bispo de Orense.

O regresso vitorioso de D. Afonso Henriques em 1139 sucedeu pouco depois de D. João Peculiar voltar da 2.ª viagem à Itália. O fundador de Santa Cruz de Coimbra regressava à cidade onde vivera momentos de grande intensidade, juntamente com o prior D. Teotónio, mas agora investido no mais importante cargo eclesiástico de Portugal. Tinha sobre os seus ombros a responsabilidade não só de colaborar com as actividades religiosas de uma ordem nova, mais empenhada em responder às necessidades concretas dos homens, mas de dirigir toda a vida da Igreja no seu País. A responsabilidade temporal cabia ao príncipe que tinha apoiado, com tanto interesse, os primeiros passos da fundação que pretendia restaurar a “vida apostólica”, professada pelos primeiros cristãos em Jerusalém. O príncipe mostrava-se agora digno das esperanças que nele tinham posto os fundadores de Santa Cruz: o Arcebispo, D. Telo e D. Teotónio. A generosidade com que apoiara as novas correntes de vida religiosa, a coragem e capacidade de chefia que demonstrara na guerra contra os infiéis, a prudência com que organizara a sua corte, distribuindo as funções daqueles que o representavam e escolhendo os seus auxiliares, o equilíbrio que conseguira guardar entre as concessões feitas aos cavaleiros-vilãos dos concelhos e a adequada compensação dos membros da nobreza, tanto que fora e mostrava que o Príncipe seria capaz de conduzir o novo Reino como uma parcela privilegiada do povo de Deus em marcha para a realização da justiça, da prosperidade e da paz.

Tudo isto se apresenta decerto ao espírito de D. João Peculiar, não só porque parecia conjugar-se, na perfeição, com o ideal de pátria em que exercia tão grandes responsabilidades; mas também – e talvez sobretudo -, pois que regressava do próprio centro da Cristandade, onde o Papa representava o poder e a vontade de Deus, e, ao contacto com o qual, tivera o privilégio de participar em acontecimentos não menos representativos do que aqueles a que assistia ao regressar a Coimbra. Em Roma, no palácio de Latrão, juntamente com centenas de bispos de toda a Cristandade, assistira à solene proclamação da vitória do Papa Inocêncio II sobre o cisma que dividira a Igreja, contrapondo o partido das famílias romanas, dos Normandos sicilianos e dos sectores mais conservadores da Igreja ao sector que mostrava ser o preferido de Deus por ter do seu lado o imperador, o carismático abade de Claraval e as novas ordens dos Cistercienses, dos cónegos regulares, dos eremitas e das ordens militares. Os representantes do movimento renovador português tinham conseguido a benevolência e a protecção dos cardeais romanos, especialmente de Guido de Vico; tinham merecido a protecção do próprio Papa e haviam por certo chamado a atenção de São Bernardo. Por estes factos, estariam confiantes na protecção dispensada por Deus.

A surpreendente vitória do jovem Rei sobre o grande exército sarraceno e a quantidade de despojos que ele trouxera de Ourique (Vila Chã de Ourique, nos termos de Santarém?), como se fossem penhor da abundância prometida aos defensores da fé, eram uma espécie de milagre que se apresentava aos olhos de toda a multidão, participando, em uníssono, na celebração do triunfo, a chuva de bênçãos com que Deus cobria o seu novo povo, o Povo que o escolhera para Rei e sobre quem Deus outorgara o novo título pela dispensatio coelestis que lhe assistia. Mais o gérmen de um novo imperium no Mundo conhecido e desconhecido. Não fosse assim, César D. Manuel, como lhe chamou Duarte Pacheco Pereira, não pediria a redacção da Crónica do 1.º Rei de Portugal, com toda a auctoritas, para vir a legitimar a sua. Não fosse assim, as lendas que se transmitiram até hoje, não invocavam a acção da Virgem e de Jesus em Carquere e Ourique. Não fosse assim, não teriam pensado, fosse a que custo fosse, na reunião de umas Cortes em Lamego para, no século XVII, legitimarem os Bragança no trono de Portugal e a linha sucessória directa que D. João IV representava, perante o afastamento compulsivo de Filipe IV de Espanha do governo do nosso País.

A Lenda de Ourique por Domingos Sequeira

© Musée Louis-Philippe du château d'Eu

  A Lenda de Ourique por Domingos Sequeira

Não é difícil imaginar a intensidade com que D. João Peculiar decerto viveu aqueles meses, com a consciência de também celebrar uma grande vitória, por ter atingido a dignidade de Arcebispo, por receber o pálio das mãos do papa, ao trazer consigo as bulas de reconhecimento dos direitos metropolitanos de Braga, em concorrência com Compostela, por tomar parte no concílio ecuménico de Latrão, pela solene proclamação do triunfo.

Em 1139, D. Afonso Henriques concedeu carta de couto a S. Cristóvão de Lafões, usando de uma política de favorecimento do local onde vivera grandes momentos de muita intensidade com o presbítero Telo e o prior Teotónio, até então muito pobres e errando pelo território, nas suas missões evangélicas. Recordando tempos difíceis para aqueles que, até então, se haviam desembaraçado de propagar a união das gentes através dos exemplos de Cristo, no conjunto de instituições cistercienses, D. Afonso Henriques outorgou benesses a eremitas, em número de 10; aos mosteiros beneditinos, 34; aos cónegos regrantes 30, aos cistercienses 19, às ordens militares 15, a outros 5 e às dioceses 32. A protecção deferida a eremitérios fora requerida, muito especialmente, por D. João Peculiar.

Não é de todo inverosímil que o contacto do Arcebispo e D. Telo com S. Bernardo no Concílio de Pisa tivesse inspirado a São Bernardo a decisão de enviar a Portugal o grupo de oito monges de Claraval que o texto semilendário intitulado Exórdio do Mosteiro de S. João de Tarouca menciona e que teria sido orientado e apoiado por João Cirita na escolha do lugar onde, havia pouco, se fundara o referido Mosteiro.

A consolidação da vida regrante em Coimbra não foi fácil. Segundo Pedro Alofardek, em breve, surgiram as rivalidades com o bispo Bernardo e o cabido. Para escaparem às suas manobras, os regrantes trataram de defender-se, enviando à cúria romana uma delegação chefiada por Telo e João Peculiar, para pedir a protecção do Papa, adoptando um estatuto que, nessa época, se tornou frequente. Mostravam, assim, o seu carácter decidido e empeendedor. Não hesitaram em fazer uso dos meios materiais que tinham já conseguido reunir para poderem dominar a situação criada pela rivalidade com o Arcebispo, adoptando uma situação dispendiosa, mas eficaz. Agiam com a plena consciência de que faziam parte da igreja universal. Os seus problemas ligavam-nos a movimentos e transformações em pleno desenvolvimento, e que agitavam os sectores mais activos da Europa de então. Não se sentiam na periferia do mundo cristão. As viagens que faziam à cúria romana e a Avinhão, as frequentes visitas de legados papais à Hispânia, as não menos frequentes reuniões de concílios nos vários reinos peninsulares, as vastas assembleias de bispos promovidas pelos papas desde a segunda metade do século XI, a publicidade concedida às bulas e instruções pontifícias, enfim, as peregrinações a Roma, a Santiago e a outros santuários – tudo isto criava um ambiente de comunicação activa, encorajava as iniciativas e dinamizava toda a Cristandade. Telo e Peculiar foram bem homens do seu tempo.

Inocêncio II estava, então, em Pisa e impedido de regressar a Roma pelo cisma de Anacleto [1131-1138]. Foi lá que os dois portugueses, depois de uma longa viagem, encontraram a cúria papal. Dirigiram-se a Guido de Vico, cardeal de São Cosme e São Damião, que conhecia os assuntos da Península. No ano anterior, tinha estado em Compostela, desempenhando funções de legado, e voltaria à Hispânia no seguinte, em Outubro, para reunir um concílio em Burgos. Tendo suscitado a sua simpatia, os regrantes obtiveram o que pretendiam. Por isso, passaram a considerar o cardeal como um dos grandes benfeitores do mosteiro. A relação assim estabelecida foi muito importante, porque Guido de Vico se tornou, desde então, um verdadeiro especialista dos assuntos peninsulares e portugueses, como parte da Hispânia. Em 13 de Dezembro de 1143, o Arcebispo subscreveu o acto em que Afonso Henriques registou a vassalagem que fizera ao papa Inocêncio II por meio do Cardeal Guido. Foi portador da carta oblationis à cúria pontifícia, de onde já tinha regressado em Setembro de 1144, com a resposta de Lúcio II, exarada a 1 de Maio, além da renovação dos privilégios da sua igreja, por letra papal, datada de 30 de Abril. Bem poderia ter aproveitado esta deslocação para sujeitar o Conde de Sabóia à proposta (ou a resposta) do casamento de D. Afonso Henriques.

O resultado concreto da viagem de Telo e de Peculiar foi a concessão das bulas em que o papa recomendou os cónegos regrantes de Coimbra ao príncipe D. Afonso e ao bispo da diocese, em 20 de Maio de 1135. Logo a seguir, em 26 de Maio, concedeu-lhes a protecção papal e a isenção canónica, nos termos que viriam depois a ser mais bem definidos pelo desenvolvimento das práticas institucionais, sobretudo a partir do pontificado de Alexandre III.

Dias depois, a 30 de Maio, o papa presidia à abertura solene de um importante concílio em Pisa, a que assistiram mais de cem bispos e muitos abades, entre eles, São Bernardo. Além de confirmar os decretos acerca de algumas questões institucionais adquiridas pela reforma da Igreja, pretendia fazer daquela reunião uma demonstração de força, de forma a desautorizar o antipapa. É muito provável que Telo e João Peculiar, que estavam de facto naquela cidade, tenham também participado no concílio, iniciando-se, então, porventura, as relações dos cónegos crúzios com o fogoso abade de Claraval, de que fala a Vida de S. Teotónio. Talvez Bernardo não se esquecesse do relato que Hugo de Payns tinha decerto feito, seis anos antes, no Concílio de Troyes, acerca da recepção feita a si próprio e aos seus colaboradores na França e na Hispânia, e mencionasse os principais dons recebidos pelos Templários, entre os quais tomaria relevo a doação de D. Teresa. Quiçá, não datará também do possível encontro de São Bernardo com Telo e João Peculiar em Pisa o eventual conhecimento que o abade de Claraval teve das experiências eremíticas no vale do Douro, em que João Peculiar havia intervindo pessoalmente, e que este conhecimento abrisse o caminho ao envio dos primeiros cistercienses franceses a Portugal. Na verdade, encontram-se em Tarouca poucos anos depois, em 1140, e foram depois recebendo a sua ordem outros eremitérios durienses.

Interessado como estava na renovação da vida religiosa na Igreja, São Bernardo de Claraval não deixaria de ouvir com atenção o relato do que a esse respeito se passava no longínquo extremo da Península, no finisterra, lá para os lados do túmulo do apóstolo São Tiago, em lugares expostos à crueldade dos cavaleiros almorávidas.

O exemplo de Santa Cruz de Coimbra transmitia-se a outras comunidades monásticas já existentes no Condado Portucalense. Em 1134, João Peculiar, a pedido, decerto, dos religiosos, passou a observar a Regra de Santo Agostinho. Foi o primeiro de uma longa série de mosteiros de Entre Douro E Minho que, nos anos seguintes, lhe seguiram o exemplo. Eram, geralmente, mosteiros que, na remodelação da vida religiosa dos anos 1080 a 1120, não tinham querido receber os usos cluniacenses, e que dependiam do patronato de uma nobreza média ou mesmo inferior.

Em 1139, o chanceler arcebispo de Braga, D. Paio Mendes é substituído por D. João Peculiar, um conimbricense de formação francesa e um bom conhecedor das concepções impessoais do exercício do poder eclesiástico e civil que, por essa altura, começavam a inspirar a prática da cúria papal. O primeiro era, decerto, um aliado da aristocracia nortenha; não pode dizer-se o mesmo de D. João Peculiar que, com toda a probabilidade, procedia de uma família secundária e que defendeu mais fortemente a independência política do rei do que a sua submissão ao partido feudal.

D. João Peculiar, quando foi mestre-escola da Catedral de Coimbra, procurou os meios necessários para instalar os primeiros adeptos da sua obra, ao se proporcionar a ocasião de obter a ajuda de Afonso Henriques.

Mapa da Europa no início do século XIII

© Euratlas

Roteiros de D. João Peculiar: ligação de Portugal à Península Itálica, passando pela Hispânia e pelo reino dos Francos

Os dois fundadores de Santa Cruz não esqueciam, porém, a sua condição de cónegos regrantes e a sua profissão sob a Regra de Santo Agostinho. Por isso, na viagem de regresso, procuraram visitar Pavia, onde, então, se venerava o corpo do seu santo patrono, na esperança de conseguirem trazer alguma relíquia para o seu mosteiro. Não puderam realizar o seu intento, por terem sido roubados por salteadores e serem obrigados a tomar um itinerário mais directo. Dirigiram-se, então, a Avinhão, que ficava no caminho de regresso, e permaneceram no Mosteiro de São Rufo o tempo suficiente para obterem uma cópia do costumeiro de Letberto, onde se prescreviam observâncias muito mais pormenorizadas como é óbvio, do que a Regra de Santo Agostinho. Viria a ser esta a norma canónica coimbrã até ao fim da Idade Média, embora com algumas modificações e adaptações. Entre estas, salientam-se as que resultaram de uma clara e significativa influência dos usos cistercienses, nas suas versões mais antigas, como mostrou há pouco Agostinho Frias. De regresso a Coimbra, Telo, então, com uns 60 anos de idade, debilitado, talvez, por esta longa viagem, pouco tempo resistiu a um tumor que nessa altura lhe apareceu, tendo morrido no dia 9 de Setembro de 1136.

A primeira recolha dos costumes rufianos foi feita por dois companheiros de Telo e de Peculiar que com eles viajaram, Domingos e João. Mas o contacto directo dos dois fundadores, com os seus confrades franceses mostrou-lhes que necessitavam de mais elementos para conseguirem organizar, com verdadeiro rigor, a vida religiosa de Santa Cruz. Para completar o trabalho de Domingos e João, Teotónio, pouco depois da morte de Telo, mandou a São Rufo outro cónego, Pedro Salomão, o qual permaneceu em Avinhão desde Novembro de 1136 até Março de 1137. Regressou a Portugal com o seu manuscrito a 24 de Junho, na mesma ocasião em que João Peculiar , eleito bispo do Porto, recebeu a ordenação episcopal. Não contente com a cópia completa que ele levou para Coimbra, Teotónio aproveitou a nova viagem que Peculiar fez a Roma para aí receber das mãos do Papa o palio a que tinha direito por ter, entretanto, sido eleito arcebispo de Braga, para mandar com ele o mesmo Pedro Salomão com outro copista conimbricense. Os dois crúzios permaneceram em São Rufo de Avinhão quase um ano, a partir de Abril de 1139, e regressaram a Coimbra carregados de livros. Trouxeram com eles não só as cópias dos textos necessários para as celebrações litúrgicas, mas também de obras de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio, de São Gregório Magno e de Beda, o Venerável. Assim, o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que, desde então, começou a tornar-se mais bem equipado, do ponto de vista intelectual, do que qualquer outra instituição portuguesa da mesma época, poderia, alguns anos mais tarde, assegurar a formação de um dos mais célebres pregadores medievais, o futuro franciscano Santo António de Lisboa.

D. João Peculiar, mestre escola da Sé de Coimbra, e habitando a sua família em Lafões, depois em Coimbra ou na região do Vouga, deve ter feito em França estudos suficientes para vir depois a encarregar-se do ensino na catedral. Todavia, não desempenhara, exclusivamente, funções intelectuais; colaborou, eficazmente, com as formas mais radicais da vida religiosa. Fundou em S. João de Lafões, em terras de que era proprietário, uma comunidade eremítica nessa altura dirigida por João Cirita, que viera, pouco depois, a adoptar os costumes cistercienses. Por volta de 1154 ou 1155, o bispo de Coimbra, D. João Anaia, escreveu um violento libelo contra D. João Peculiar, onde o acusava de ter tomado o hábito monacal sob a direcção de João Cirita e de o ter depois abandonado, infringindo, assim, os seus votos. Não sabemos o que há nisto de verdade, mas a sua relação com os movimentos eremíticos é indubitável e manteve-se mesmo depois de se tornar arcebispo.

De qualquer maneira, compreende-se a sua associação a D. Telo. Estavam ambos seduzidos pela “vida apostólica” e pelas experiências de vida pobre e despojada de bens materiais. Telo contactara com ela em Jerusalém. João Peculiar devia tê-la conhecido no Sul da França. Talvez tivesse estado em São Rufo de Avinhão e encontrado aí o abade Letberto. Telo também podia ter visitado este importante mosteiro quando regressou de Bizâncio e passou por Montpellier. Resolveram ambos criar uma comunidade do mesmo género em Coimbra. Uma vez adquiridos os banhos régios, alargaram a sua área, comprando ao bispo e ao cabido, seus proprietários, um horto contíguo, onde havia também uma nascente de água, e começaram as obras pela construção de um claustro. Associou-se a eles um bom grupo de colaboradores, alguns dos quais membros do clero da diocese. Um deles foi Teotónio, o primeiro prior da comunidade.

Lançaram a primeira pedra da igreja no dia 28 de Junho de 1131, na vigília da festa litúrgica dos santos apóstolos Pedro e Paulo, os patronos por excelência da vida apostólica. Afonso Henriques participou das suas celebrações,

O que sabemos da luta entre D. João Peculiar e o papado para ver reconhecidos os seus direitos sobre algumas dioceses portuguesas da antiga Lusitânia torna verosímil uma fricção séria entre o rei e os enviados da Santa Sé. Estava chegada a hora de começar a voltar a insistir na questão de reconhecimento de Portugal e do rei em Roma, a qual fora, como nos pareceu, praticamente abandonada desde a data da última deslocação de D. João Peculiar a Roma, em 1163.

Uma vez libertado pelo genro, após o desastre de Badajoz, D. Afonso Henriques foi para Lafões ou, mais exactamente, para as terras de S. Pedro do Sul, onde permaneceu convalescente durante alguns meses, pelo menos entre Setembro e 13 de Novembro de 1169. Em Março de 1170, está, de novo, em Coimbra.

Vejamos:

 

Começam a desaparecer os mais fiéis auxiliares de Afonso Henriques, a saber:

S. Teotónio tinha morrido em 1162;

D. Gonçalo Mendes de Sousa, mordomo-mor, faleceu em 1167;

Mestre Alberto, o fiel chanceler-mor, redige o último documento assinado por ele em Setembro de 1169, quando o rei ainda continuava em Lafões;

D. João Peculiar, o grande inspirador das orientações diplomáticas e das relações como o Papa, deixou este mundo em 1175, considerado um dos maiores prelados bracarenses de todos os tempos e um dos heróis fundadores da “nacionalidade”.

 

Com o tempo, Afonso Henriques deixa o Norte entregue a si próprio e volta-se para o Sul. Entre 1169 e 1176, os protagonistas desta política mudam, mas a orientação mantém-se, e talvez se acentue. Cremos mesmo encontrar indícios de esta orientação ter sido conscientemente assumida em Lafões durante os meses de convalescença do rei. Na nossa opinião foi esse o motivo que presidiu à escolha de novos oficiais para a cúria.

Mas todos os documentos assinados em Lafões são confirmados pelo rei, o que significa que pai e filho estiveram aí juntos.

Num processo canónico acerca da relação de dependência do arcebispo de Braga para com o de Toledo, em Junho de 1217, uma testemunha afirmava que, durante os últimos dez anos de vida, Peculiar permaneceu doente e incapacitado de viajar para fora da sua arquidiocese. Todavia, temos provas de que, em 1169, continuava com energia suficiente para o fazer. Com efeito, presidiu, em 18 de Maio desse ano, à solene consagração da igreja abacial de Tarouca, na qual também participaram os bispos Pedro, do Porto, Mendo, de Lamego, e Gonçalo, de Viseu, como consta da inscrição lapidar que perpetuou o facto. Depois, desde Setembro até Novembro de 1169, confirmou todos os documentos de Afonso Henriques outorgados em Lafões, o que quer dizer que acompanhou a corte nesse período crucial de reorganização da autoridade régia e de revisão da política nacional.

 

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