Péricles proferindo a sua oração

Péricles proferindo a sua oração fúnebre

ORAÇÃO DE PÉRICLES

 

Oração fúnebre aos mortos do primeiro ano da Guerra, de Péricles, de 430 a. C.

 

 

O discurso de Péricles aqui apresentado é, antes de tudo, o discurso que Túcidides escreveu para a sua História da Guerra do Peloponeso, e que se encontra no Livro II, § 36 a 42. Os discursos das mais variadas personalidades que Tucídides introduziu ao longo da sua obra, são todos, segundo M. I. Finley, obra sua, e mais, todos escritos no mesmo estilo - o do autor. A apresentação destes discursos na narrativa da obra do historiador grego é uma das características mais problemáticas da sua obra, aquele, também, que mais influenciou a narrativa histórica até ao século 18.

Dito isto, o discurso de Péricles, que é um facto histórico, sendo que representa o que Tucídides achava que Péricles devia ter dito na altura, possivelmente transcrevendo algumas passagens do que o dirigente político ateniense disse de facto, é uma defesa extraordinária do regime político ateniense - a Democracia. Assim, como escreveu Adriano Moreira, "o valor fundamental da categoria que o Discurso elabora parece ser o da igualdade, na sua forma de participação, igual para todos os cidadãos."

É, também, num exemplo que frutificou até aos nossos dias, um método político de defesa  de um regime que se afirma moralmente superior ao dos seus inimigos, e pelo qual todos os sacrifícios são bons, porque o que pode vir a seguir, em caso de derrota, é muito pior. De facto, a influência do discurso nota-se em William Pitt, no seu agradecimento público pela vitória de Trafalgar, em Abraham Lincoln, no seu discurso em Gettysburg e em John Kennedy no seu discurso em Berlim Ocidental, apresentados também n'«O Portal da História».

 

«De acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a consideração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a prestar serviços à cidade.»

 

A maioria dos que até este momento pronunciaram discursos neste lugar fez o elogio deste costume antigo de honrar, ante o povo, aqueles soldados que morreram na guerra, mas a mim parece-me que as solenes exéquias que publicamente celebramos hoje são o maior elogio daqueles que, pelo seu heroísmo, as mereceram.

E também me parece que não se deva deixar à palavra de um só homem falar das virtudes e do heroísmo de tão bons soldados, nem tão-pouco acreditar no que se diga, quer seja um bom ou mau orador, pois é difícil expressar-se com justiça e moderar os elogios ao referir coisas das quais se pode ter apenas uma ligeira sombra da verdade.

Porque, se o que ouve foi testemunha dos acontecimentos e quer bem àquele de quem se fala, sempre acredita que o elogio é insuficiente em razão do que ele deseja e do que sabe, ao contrário, ao que o desconhece, impulsionado pela inveja, parece que há exagero no que supera a sua própria natureza.

Os elogios pronunciados em favor de outro podem ser suportados somente na medida em que se crê a si mesmo capaz de realizar das mesmas acções. O que nos supera excita a inveja e, além disso, a desconfiança.

Entretanto, já que os nossos antepassados admitiram e aprovaram este costume, eu devo também submeter-me a ele e tratar de satisfazer da melhor maneira possível os desejos e sentimentos de cada um de vós.

Começarei, pois, a elogiar os nossos antepassados. Pois é justo e equitativo render homenagem à recordação.

Esta região, habitada sem interrupção por gente da mesma raça, passou de mão em mão até hoje, guardando sempre a sua liberdade, graças ao seu esforço. E se aqueles antepassados merecem o nosso elogio, muito mais o merecem os nossos pais. À herança que receberam juntaram, ao preço do seu trabalho e dos seus desvelos, o poder que possuímos, que nos legaram. Nós o aumentamos. E no vigor da idade ainda alargamos esse domínio, abastecendo a cidade de todas as coisas necessárias, tanto na paz como na guerra.

Nada direi das proezas e façanhas guerreiras que nos permitiram alcançar a situação presente, nem da valentia que nós e os nossos antepassados demonstramos defendendo-nos dos ataques dos bárbaros ou dos gregos. Todos as conheceis e por isso não vos vou falar delas. Mas a prudência e arte que nos possibilitaram chegar a esse resultado, a natureza das instituições políticas e os costumes que nos trouxeram este prestígio, é necessário que sejam ressalvados antes de tudo. Depois, continuarei com o elogio aos nossos mortos.

Porque me parece que nas actuais circunstâncias é oportuno trazer â memória estas coisas e que será proveitoso que as ouçam tanto os cidadãos como os forasteiros que se reuniram, hoje, aqui.

A nossa constituição política não segue as leis de outras cidades, antes lhes serve de exemplo. O nosso governo chama-se democracia, porque a administração serve aos interesses da maioria e não de uma minoria.

De acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a consideração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a prestar serviços à cidade.

No que corresponde à República, pois, governamos livremente e, ainda, nas relações que mantemos diariamente com os nossos aliados e vizinhos, não nos irritamos porque ajam à sua maneira, nem consideramos como uma humilhação os seus prazeres e alegrias que, apesar de não nos produzir danos materiais, nos causam pesar e tristeza, ainda que sempre tratemos de dissimulá-los.

Ao mesmo tempo em que não temos receio nas nossas relações particulares, domina-nos o temor de infringir as leis da República; obedecemos aos magistrados e às regras que defendem os oprimidos e mesmo que não estejam editadas, a todas aquelas que atraem sobre quem as viola o desprezo de todos.

Para amenizar o trabalho, procuramos muitos recreios para a alma; instituímos jogos e festas que se sucedem a cada ano; e diversões que diariamente nos proporcionam deleite e diminuem a tristeza. A grandeza e a importância da nossa cidade atraem os tesouros de outras terras, de modo que não só desfrutamos dos nossos produtos como daqueles do universo inteiro.

No que se refere à guerra, somos muito diferentes dos nossos inimigos porque permitimos que a nossa cidade esteja aberta a todas as gentes e nações, sem vedar nem proibir a qualquer pessoa que adquira informes e conhecimentos, ainda que a sua revelação possa ser proveitosa aos nossos adversários; pois confiamos tanto em preparativos e estratégias como no nosso ânimo e vigor na acção.

Outros, no que se refere à educação, acostumam, mediante um treino fatigante desde criança, a sua potência viril; nós, apesar da nossa forma de viver, não somos menos ousados e valentes para afrontar o perigo quando a necessidade o exige. Boa prova disso é que os  lacedemónios [espartanos] jamais se atreveram a entrar na nossa terra sem que estejam acompanhados de todos os aliados; enquanto nós, sem ajuda nenhuma, fizemos incursões no território dos nossos vizinhos e muitas vezes, sem grandes dificuldades, derrotamos em país estrangeiro adversários que defendiam os seus próprios lares.

Nenhum dos nossos inimigos se atreveu a atacar-nos quando reunimos todas as nossas forças, tanto por causa da nossa experiência nas coisas do mar, como pelos muitos destacamentos que temos em diversos lugares do nosso território.

Se por acaso os nossos inimigos derrotam alguma vez um destacamento dos nossos, se jactam de nos haver vencido a todos e se, pelo contrário, os derrota uma parte das nossas tropas, dizem que foram atacados por todo o nosso exército.

E efectivamente preferimos o repouso e o sossego quando não estamos obrigados, por necessidade, ao exercício de trabalhos penosos e, também, ao exercício dos bons costumes, a viver sempre com o temor das leis; de forma que não nos expomos ao perigo quando podemos viver tranquilos e seguros, preferindo a força da lei ao ardor da valentia.

Temos a vantagem de não nos preocupar com as contrariedades futuras. Quando chegam estas, enfrentamo-las com boa têmpera, como os que sempre estiveram acostumados com elas.

Por estas razões e muitas mais ainda, a nossa cidade é digna de admiração. Ao mesmo tempo em que amamos simplesmente a beleza, temos uma forte predilecção pelo estudo. Usamos a riqueza para a acção, mais que como motivo de orgulho, e não nos importa confessar a pobreza, somente considerando vergonhoso não tratar de evitá-la.

Por outro lado, todos nos preocupamos de igual modo com os assuntos privados e públicos da pátria, que se referem ao bem comum ou privado, e gentes de diferentes ofícios se preocupam também com as coisas públicas.

Nós consideramos o cidadão que se mostra estranho ou indiferente à política como um inútil à sociedade e à República.

Decidimos por nós mesmos todos os assuntos sobre os quais fazemos, antes, um estudo exacto: não acreditamos que o discurso entrave a acção; o que nos parece prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela discussão.

Por isto nos distinguimos, porque sabemos empreender as coisas juntando a audácia à reflexão, mais que qualquer outro povo.

Os demais, algumas vezes por ignorância, são mais ousados do que o que requer a razão, e alguns, por querer fundamentar tudo em raciocínios, são lentos na execução.

Seria justo ter por valorosos aqueles que, ainda conhecendo exactamente as dificuldades e vantagens da vida, não recusam o perigo.

No que se refere à generosidade, também somos diferentes dos demais, porque procuramos fazer amigos, dispensando-lhes benefícios ao invés de recebê-los, pois o que faz um favor a outro está em melhor condição do que quem o recebe para conservar a sua amizade e benevolência, enquanto o favorecido sabe que há-de devolver o favor, não como se fizesse um benefício mas como se pagasse uma dívida. Também somos os únicos em usar a magnificência e liberalidade com os nossos amigos e não tanto por cálculo da conveniência como pela confiança que a liberdade dá.

Numa palavra, afirmo que a nossa cidade é, em conjunto, a escola da Grécia, e creio que os cidadãos são capazes de conseguir uma completa personalidade para administrar e dirigir perfeitamente outras gentes, em qualquer aspecto.

E tudo isto não é um exagero retórico, ditado pelas circunstâncias, mas a verdade mesma; o poderio que conquistamos com estas qualidades o demonstra.

Atenas possui mais fama que as demais. É a única cidade que não dá motivos de rancor aos seus inimigos pelos danos que lhes inflige, nem desprezo aos seus súbditos pela indignidade dos seus governantes. Esta grandeza é demonstrada por importantes testemunhos é de uma maneira definitiva para nós e para os nossos descendentes. Eles terão uma grande admiração por nós sem que tenhamos necessidade dos elogios de um Homero, nem de qualquer outro, para adornar os nossos feitos com elogios poéticos, capazes de seduzir mas cuja ficção contradiz a realidade das coisas.

É sabido que, graças ao nosso esforço e ousadia, conseguimos que aterra e o mar por inteiro fossem acessíveis à nossa audácia, deixando em toda a parte monumentos eternos das derrotas infligidas aos nossos inimigos e das nossas vitórias.

Esta é a cidade, pois, que com razão estes homens não quiseram deixar que fosse manchada e pela qual morreram valorosamente no combate; os nossos descendentes estão dispostos a sofrer tudo para assegurar a sua defesa.

Por estas razões me estendi a falar da nossa cidade já que queria demonstrar-lhes que não lutamos pelo mesmo que os outros, mas por algo tão grande que nada o iguala, e também para que o elogio dos homens objecto do nosso discurso fosse claro e veraz. Terminei, já, com a parte principal. A glória da República deve-se ao valor desses soldados e de outros homens semelhantes. Os seus actos estão à altura da sua reputação e existem poucos gregos dos quais se possa dizer o mesmo.

No meu entender, nada demonstra melhor o valor de um homem que este final, que entre os jovens é um indício e uma confirmação entre os velhos.

Com efeito, aqueles que não podem prestar outro serviço à República é justo que se mostrem valorosos na guerra, pois apagaram o mal com o bem e os seus serviços públicos compensaram de sobra os equívocos da sua vida privada. Nenhum deles se deixou seduzir pelas riquezas ao ponto de preferir os defeitos ao seu dever, nem tão-pouco nenhum deixou de se expor ao perigo com a esperança de escapar da pobreza e fazer-se rico, convencidos de que era preciso o castigo do inimigo ao gozo destes bens, e visando este risco como o mais admirável, quiseram afrontá-lo para castigar o inimigo e fazer-se dignos destas honras.

Tiveram confiança neles mesmos no momento da batalha e ao encontrar-se ante o perigo, sustentados pela esperança ante a incerteza do êxito. Preferiram buscar a sua salvação na destruição do inimigo, e antes na morte que no covarde abandono; assim escaparam à desonra e perderam a vida.

No azar de um instante nos deixaram, alcançando o mais alto cume da glória e não a baixa recordação do seu medo.

Dessa forma é que se mostraram filhos dignos da cidade. Os sobreviventes devem fazer todo o possível para conseguir uma melhor sorte, mas devem-se mostrar ao mesmo tempo intrépidos contra os seus inimigos, considerando que não se podem limitar às palavras de um discurso toda a utilidade e proveito.

Também seria ocioso enumerar diante de gente tão perfeitamente informada, como o sois vós, todos os esforços dirigidos à defesa do país. Quanto maior lhes pareça o poder da cidade, mais deveis pensar que existiram homens valorosos, que souberam praticar a audácia como sentimento de um dever e se conduzir com honra durante toda a vida.

E se bem que o sucesso nem sempre tenha correspondido aos seus esforços, não quiseram privar Atenas do seu valor e sacrificaram a sua virtude como o mais nobre tributo, fazendo o sacrifício da sua vida e adquirindo, cada um por sua parte, uma glória imortal que lhes deu a sepultura com honra.

E esta terra onde agora descansam não é tanto como a recordação imortal sempre renovada e enfocada em discursos e comemorações. Os homens eminentes têm por túmulo a terra inteira.

O que atrai a atenção para eles não são somente as inscrições funerárias gravadas na pedra; quer na sua pátria, quer nos países mais longínquos, a sua memória persiste, apesar dos epitáfios, conservada no pensamento e não nos monumentos.

Invejai, pois, a sua sorte, dizei que a liberdade se confunde com a felicidade e o valor com a liberdade e não olheis com desprezo os perigos da guerra. Não penseis que os maus e os covardes, que não têm esperança de melhor sorte, são mais razoáveis em guardar a sua vida que aqueles cuja existência está exposta ao perigo e que se aventurara? a passar da boa à má fortuna e que, se fracassam, verão a sua sorte completamente transformada. Pois para um homem sábio e prudente é mais doloroso a covardia que uma morte enfrentada com valor e animada pela esperança comum.

Assim, não me compadeço pela sorte dos pais que estão presentes, limitar-me-ei a consolá-los. Eles sabem, eles que cresceram entre as vicissitudes da vida, que a ventura só é para os que obtêm, como seus filhos, ó fim o mais glorioso ou, como eles, o luto o mais honroso e para os quais o termo da vida é a medida da felicidade.

Sei muito bem o quanto é difícil persuadir-vos. Ante a felicidade dos demais, felicidade de que haveis gozado, chegareis em muitos momentos a recordar a memória dos vossos desaparecidos. Sofremos menos quando nos privamos de bens dos quais não aproveitamos do que com a perda daqueles aos quais estamos habituados. É preciso, pois, sofrer pacientemente e se consolar com a esperança de ter outros filhos, vós aos quais a idade ainda o permite. Os novos filhos substituirão na família os que não existem mais; e a cidade ganhará uma vantagem dupla: a sua população não diminuirá e a segurança estará garantida, pois os que entregam seus filhos ao perigo pelo bem da República, como o fizeram os que perderam os seus nesta guerra, inspiram mais confiança que os que não fazem.

Agora, cumpre que cada um se retire, uma vez que chorou na hora dos desaparecidos.

Os que não têm esta esperança, recordem a sorte que tiveram gozando de uma vida que na sua maior parte foi feliz; o resto será curto; que a glória dos vossos console a vossa dor; só o amor da glória não envelhece e, com o passar da idade, o prazer não consiste, como pretendem alguns, em amontoar riquezas, mas em inspirar respeito.

E vós, filhos e irmãos destes mortos, pensai a que vos obriga o seu valor e heroísmo. Não há homem que não elogie a virtude e o esforço dos que morreram. A vós, apesar dos vossos méritos, será muito difícil alcançar o seu mesmo nível, e não digamos superá-lo. Porque entre os vivos, o desejo da emulação provoca sempre a inveja, enquanto todos elogiam e honram os que morrem.

Também farei menção às mulheres que ficaram viúvas, expressando o meu pensamento numa breve exortação: toda a sua glória consiste em não mostrar-se inferiores à sua natureza e que se fale delas o menos possível entre as gentes, tanto no seu bem como no seu mal.

Terminarei. Conforme as leis, as minhas palavras expressaram o que me pareceu útil. Quanto às honras reais, foram elas rendidas em parte aos que aqui jazem, mais honrados pelas suas obras do que pelas minhas frases.

Doravante, os seus filhos, se são menores, serão educados até à adolescência, correndo os gastos a cargo da República. Uma coroa é oferecida pela cidade a fim de homenagear as vítimas destas batalhas e seus sobreviventes, pois os povos que recompensam a virtude com magníficos prémios obtêm também os melhores cidadãos.

Fonte:

Adriano Moreira, "Ideal Democrático, O Discurso de Péricles", Legado Político do Ocidente (O Homem e o Estado), 3.ª ed., Estratégia, vol. VIII, 1995, págs. 15-31.

 

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