D. João III

D. João III

 

 

Discurso de Lopo Vaz

 

Oração proferida, em 1 de abril de 1544, por Lopo Vaz, procurador de Lisboa às Cortes de Almeirim, em resposta à oração da Coroa.  

 

 

Lopo Vaz, desembargador da Casa da Suplicação, professor de jurisprudência e de retórica, procurador de Lisboa às Cortes de Almeirim, responde à oração inicial da Coroa, proferida por D. Sancho de Noronha, mordomo-mor da rainha D. Catarina de Áustria, futuro bispo eleito de Leiria, discurso inaugural que era sempre comunicado a quem teria o encargo de responder. A resposta nunca mencionava diretamente a agenda, que era definida oficialmente pelo rei, e que era "que queria de seu Reino que o servissem por suas muitas necessidades e dividas que tinha".

Para além da frase memorável que se encontra referenciado no início do discurso, a oração nada tem de notável, para além do seu valor histórico, sendo que mostra os alvores do discurso de circunstância e o nascimento da terminologia e das fórmulas que se tornarão regra ao longo dos séculos 16 e 17. Discursos que, naturalmente, se baseavam na Bíblia e que, exatamente como um sermão proferido no púlpito, serviam para explicarem o que se estava a realizar.

 

 

«Lhe lembrarei que é senhor dos mais limpos, leais, fiéis, verdadeiros, desenganados e obedientes vassalos que debaixo do céu em toda a redondeza do mundo se podem achar»

 

 

Considerando o alto estado de vossa sacra real majestade, e seu muito grande poderio, muito alto e muito excelente Rei e senhor, me poem em muito temor e cobardia de perante ele abrir a boca mormente em coisas tão importantes e de tanto peso que se me eu quisesse mostrar desenvolto, e despejado e solto na língua, e mais logo desta primeira vez que perante vossa sacratíssima Real Alteza me presentei pareceria mais desacatamento que cumprir com o que para fui enviado; e porém uma só razão me fica que me dá licença para tomar alguma ousadia e é lembrar-me [de] sua muito grande clemência e benignidade na qual tenho esperança que me fará mercê de me relevar e perdoar [o] meu atrevimento que confio que com [a] sua muito clementíssima humanidade me sofrerá qualquer desconcerto, que houver na minha desconcertada oratória; e invocando a divina ajuda sem a qual nada se pode obrar como Nosso Senhor diz por S. João no capítulo XVI “sine me nihil potestis facere1, e no capítulo I, “sine ipso factum est nihil2, por que todo o bem precede dele segundo São Tiago no capítulo I: “Omne datum optimum et omne donum perfectum desursum est descendens a Patre luminum3. E S. Paulo ad Philip. II, “Deus est enim qui operatur in vobis et velle et perficere pro bona voluntate4.

Referirei aquelas palavras piedosas da Rainha Ester no capítulo XIV: “Recordare mei domine omni pontentatui dominans et da sermonem rectum in os meum ut placeant verba mea in conspectu principis5. Lembrarei a V. R. A. que é pastor de Deus, e que seus povos súbditos e leais vassalos são suas ovelhas; por ser quando Cristo disse a S. Pedro, Joannis último, “Petre amas me, pasce oves meas6, em pessoa de S. Pedro falou com todos os monarcas, e príncipes do mundo cujos corações ele tem em sua mão, e por ele todos reinam, regem e governam que não há hi poderio debaixo do céu, que que seja da sua mão, como ele diz por S. João no Capítulo XVIII naquele passo da sua sagrada paixão estando ante Pilatos: “Non haberes potestatem adversus me ullam, nisi tibi esset datum de super7. E S. Paulo ad Rom.,Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit non est enim potestas nisi a Deo8, do qual nome excelente de bom pastor Vossa Alteza como muito cristianíssimo, e muito católico que é se preza muito, lembrando-lhe que o mesmo Senhor e Deus da verdade Rei dos Reis, e Senhor dos Senhores se não desprezou de tomar a tal alcunha quando por sua sacratíssima boca disse Joannis X: “Ego sum pastor bonus9: E porque a condição do bom pastor é apascentar suas ovelhas com muito amor estando aparelhado para se oferecer por elas se cumprir livrá-las e defende-las, dos lobos que as não derramem nem maltratem, o que de Vossa Sereníssima Real Alteza com muito conhecido amor muito inteiramente sempre fez e cumpriu, espera-se dele que daqui em diante o não faça menos, e que assim o deixe por bênção, a seus sucessores.

Também lhe lembrarei que é senhor dos mais limpos, leais fiéis, verdadeiros, desenganados e obedientes vassalos que debaixo do céu em toda a redondeza do mundo se podem achar, e ele o tem muito bem experimentado, em seus muito bons e muito verdadeiros e desenganados serviços, que sempre lhe fizeram e fazem porque são vassalos no temor, na obediência e leal serviço e são filhos no verdadeiro e desenganado amor; e com esta fé, e muito fina lealdade estão sempre muito prestes e aparelhados com seus desejos muito prontos para cada e quando cumprir a seu Real estado não somente oferecerem suas pessoas, vidas e fazendas, e as de suas mulheres e filhos a todo risco, e perigo de morte por seu serviço, e haverem-se ainda nisto por muito ditosos e bem-aventurados. E pois vossa sacratíssima Real Alteza deles tem conhecido tão leal fiel verdadeiro amor deve ter deles muita lembrança para que sempre os favoreça e ampare; e como seu muito excelente e amoroso pastor que é se deve compadecer de suas misérias e necessidades quando as nele conhecer e usar com eles daquela clemência e piedade que é muito devida e natural aos Príncipes: e quando Nosso Senhor vir que Vossa Real Alteza se parece com ele na clemência, e piedade como nas outras virtudes todas, que em ele como num grande luzeiro; e resplendor destes Reinos sobre todos resplandecem, lhe acrescentará seu Real estado com vida e descanso de muitos infindos anos e lhe mostrará muito grandes e muito acabados prazeres do Sereníssimo e muito excelente Príncipe Dom João10 nosso Senhor seu muito amado e muito prezado filho e lhe deixará dele vier filhos e filhos de seus filhos, e lhe perpetuará enquanto o mundo durar sua linha direita legitima e descendente que será uma eterna paz e uma muito gloriosa bem-aventurança para estes Reinos; e quando por derradeiro vossa sacratíssima Real Alteza for já tão antigo na vida que o Senhor' Deus o queira tresladar deste mundo para o outro que será quando ele for servido, lhe dará aquela glória e bem-aventurança para que foi criado que é um Reino eterno que para sempre dos sempre há-de durar sem fim. E praza a ele por sua infinda misericórdia e piedade e pelos merecimentos de sua santíssima morte e paixão que tanta parte de glória e bem-aventurança lhe dê nos céus, quanta de poderio, estado e senhorio lhe coube na terra.

Amen



1. “Sem Mim não podeis fazer nada”, Evangelho segundo São João, capítulo 15 (e não 16), versículo 5, Bíblia Sagrada, Edição pastoral, 4.ª ed., Apelação, Paulus, 2000, pág. 1461.

2. “Sem [a Palavra] nada foi feito”, Evangelho segundo São João, capítulo 1, versículo 3 (pág. 1436).

3. “Qualquer dom precioso e qualquer dádiva perfeita vêm do alto, descem do Pai das luzes”, Epístola de São Tiago, versículo 17 (pág. 1647).

4. “É Deus que desperta em vós a vontade e a ação, conforme a sua benevolência”, Segunda Epístola aos Filipenses, versículo 13:  (pág. 1596).

5. “Lembrai-vos de nós, Senhor! Manifestai-vos no dia da tribulação! Dai-nos coragem, Senhor, rei dos deuses e dominador de todo principado! Colocai em seus lábios palavras prudentes”, Livro de Ester, capítulo 14, versículos 12 e 13, Bíblia Ave-Maria. O Livro de Ester tem na Bíblia católica 10 capítulos e nas Bíblias protestantes 14. A Vulgata antes da edição de 1532 incluía os capítulos atualmente inexistentes.

6. “Simão, filho de João, tu amas-Me? … Cuida das minhas ovelhas”, Evangelho segundo São João, capítulo 21, versículos 16 ou 17 (pág. 1471).

7. ” Não terias nenhuma autoridade sobre Mim se ela não te fosse dada por Deus”, Evangelho segundo São João, capítulo 19 (e não 18), versículo 11 (pág. 1467).

8. “Não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram instituídas por Deus”, Epístola de São Paulo aos Romanos, capítulo 13, versículo 1 (pág. 1537).

9. “Eu sou o bom pastor”, Evangelho segundo São João, capítulo 10, versículos 11 ou 14 (pág. 1453).

10. O príncipe D. João morreria em 2 de janeiro de 1554, com dezasseis anos e meio de idade, quase três semanas antes do nascimento do seu filho, o futuro rei D. Sebastião, que aconteceu a 20 de janeiro. Tinha sido jurado herdeiro da coroa nestas Cortes, no dia anterior, 30 de março de 1544.

 

Fonte:

Vasco Pinto de Sousa Coutinho, Memórias sobre algumas antigas cortes portuguesas extraídas fielmente de manuscritos autênticos da Biblioteca Real de Paris..., Paris, 1832, págs.30-33.

 

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