D. João V

D. João V, numa gravura do século XVIII

 

 

DISCURSO DE MANUEL CAETANO DE SOUSA.

 

Proposição da Academia da História Eclesiástica de Portugal, que por ordem de S. Majestade se abriu no Paço da Casa de Bragança em 8 de Dezembro de 1720. Disse-o por ordem del-rei nosso senhor o Padre D. Manuel Caetano de Sousa, clérigo regular, lente do Sagrado Teológico, examinador das Três Ordens Militares e do Priorado do Crato, deputado da Junta da Bula da Santa Cruzada.

 

 

Discurso de Manuel Caetano de Sousa, monge  teatino, apresentando perante uma assembleia convocada por ordem do rei D. João V a nova Academia de História Eclesiástica, que se transformaria no ano seguinte na Academia Real de História Portuguesa.

A necessidade de criar uma academia, composta de clérigos mas sobretudo de aristocratas, para se escrever uma obra que se chamaria Lusitania Sacra, não é mais uma obra religiosa de um rei beato, mas uma decisão ponderada de um governo que tentava conseguir a paridade com as grandes potências, ao nível das relações internacionais, numa Europa cristã em que a hierarquia diplomática ainda se determinavam por meio da titulatura de tipo religioso. Portugal tinha a nível internacional uma posição subalterna que não era considerada a correcta para o país, detentor de um vasto império colonial. Esta obra fazia parte da promoção de tal objectivo.

Este foi sendo conseguido progressivamente no reinado de D. João V, tendo sido  concedido sucessivamente (1) o título de Fidelíssimo para o rei de Portugal, equiparável aos títulos de Cristianíssimo dos reis de França, e de Católico dos reis de Espanha; (2) a subida do arcebispado de Lisboa a patriarcado, com entrega do chapéu cardinalício ao seu detentor, e (3) a nomeação do núncio apostólico para o colégio cardinalício, após a sua missão em Lisboa. Estas concessões, para além de muitas outras vitórias em questões de protocolo entre estados que o governo de D. João V conseguiu ir impondo também às potências europeias, estabeleceram entre Portugal e os principais países europeus uma relação de igualdade, que foi conseguida com a França de Luís XV em 1742.

 

«havendo de resultar da Lusitania Sacra, e da Academia em que ela se escreve muitas utilidades à Monarquia, é sem dúvida, que são argumentos da Real beneficência, todas as cláusulas que conduzem para a perfeição de uma, e perpetuidade da outra.»

 

«Mandou-me Sua Majestade, que Deus Guarde que expusesse a este eruditíssimo Congresso o alto fim, para o qual por sua Real ordem foi instituída a Academia da História Eclesiástica de Portugal cujas Conferências é servido que tenham hoje glorioso princípio neste Palácio.

Conhecendo a vastíssima compreensão de Sua Majestade, que a pouca notícia, que o mundo tem das Histórias de Portugal, nasce não sé de não se acharem escritas na Língua Latina, mas também de não estarem todas impressas na Portuguesa. E que este dano só se podia remediar, mandando que se escrevesse em Latim um Corpo de toda a História deste Reino, o qual se dividisse em duas partes, uma Eclesiástica e outra secular; foi servido ordenar-me em quatro do mês passado, que lhe apontasse os meios, que me parecessem úteis, para que exacta, e prontamente se pudesse escrever uma, e outra História; mas primeiro a Eclesiástica, fazendo-se uma obra, que tivesse o título Lusitania Sacra. Em sete do mesmo mês ofereci a Sua Majestade um largo papel, no qual expus todos os meios, que me pareciam mais proporcionados para se conseguir brevemente este fim; os quais todos se reduziram a dois, que são ajuntar manuscritos, e convocar escritores. Acrescentaria eu que para uma, e outra coisa era necessário o Poder Real, porque sem ele não se abrem os Arquivos, nem se descobre o que neles está não só recolhido, mas sepultado. E sem o impulso soberano não se podem unir muitos engenhos a compor uma só obra, e que para isto se puder conseguir era necessário formar-se uma Academia.

É tão grande a Real clemência de Sua Majestade, que mostrou não lhe desagradava o arbítrio, que a mim me ocorria. E logo resolveu mandar descobrir os manuscritos, como nos declara no seu real Decreto, que agora leu o excelentíssimo Senhor Conde de Vilar Maior.

E para a formação da Academia me ordenou, que tratasse particularmente com algumas pessoas, de cuja erudição e zelo do Real serviço tem Sua Majestade total conhecimento, e larga experiência. E todas concordarão em que a Academia seria utilíssima para se compor prontamente aquela História; apontando as qualidades que deviam ter as Pessoas, de que se havia de compor aquele Corpo. Do que logo dei conta a Sua Majestade, que foi servido aprovar o que se lhe propunha.

Animados nós com a Real aprovação comunicámos a mais algumas pessoas o desígnio, e todos acrescentámos algumas observações necessárias para se lograr o fim pretendido, as quais também foram aprovadas por Sua Majestade.

Não cabia na brevidade do tempo, com que todos desejávamos executar a ordem de Sua Majestade, o comunicar esta matéria a todos aqueles, que conhecemos serem mais úteis para esta empresa; porém de tudo quanto se apontou fui dando sucessivamente conta a Sua Majestade, e sempre o zelo, com que todos desejamos servi-lo, logrou o inestimável prémio de sua Real aprovação; e facilitou-nos muito o merece-la, o termos conseguido, que todas as vezes que eu dava conta a Sua Majestade, saía dos seus Reais Pés com novas luzes, que nos conduziam a todos ao maior acerto.

Finalmente tendo resolvido Sua Majestade, que no dia de hoje tivesse princípio a Academia, foi servido ordenar que eu expusesse a este Congresso a Real intenção.

Ouvidas as disposições Reais, entenderam as pessoas consultadas sobre estas matérias, que convinha que houvesse um Director da Academia, e quatro Censores, que durassem naquele exercício por um ano; porém de tal sorte, que destes cinco cada um fosse Director numa Conferencia, sucedendo-se uns a outros pela ordem da sua eleição, até se acabar a ano, no fim do qual se dará conta a Sua Majestade para se fazer nova eleição, se assim for do seu Real Serviço.

Também pareceu que seria conveniente, que para o Acto deste dia ter a devida ordem se deputassem logo Director, Censores, e Secretário. E esquecendo-se da minha indignidade, atendendo só a ter Sua Majestade mandado, que fosse o que fizesse esta proposição da Academia, me nomearam a mim para Director. Para Censores escolheram prudentíssima e justíssimamente ao Excelentíssimo Senhor Marquês de Fronteira, ao Excelentíssimo Senhor Marquês de Abrantes, ao Excelentíssimo Senhor Marquês de Alegrete, e ao Excelentíssimo Conde da Ericeira; e para Secretário ao Excelentíssimo Senhor Conde de Vilar Maior.

Logo dei conta deste parecer a Sua Majestade, que também foi servido aprová-lo e mandar que se avisassem para esta tarde as Pessoas, a que até aqui se tinha falado, para darem princípio à Academia; e me ordenou a mim que declarasse nela que é do seu Real agrado, que sejam muitos os que logrem esta honra, havendo muitos digníssimos de merecê-lo com se empregar cuidadosamente em promover a desejada obra Lusitania Sacra. E assim quer que cada um dos que aqui se acham já Académicos aponte as Pessoas, que lhe parecerem úteis para este exercício, as quais serão recebidas pela maior parte dos votos de toda a Academia.

Ainda que a Academia, como manda Sua Majestade no seu Decreto, há-de fazer estatutos, devo antes de tudo declarar, que Sua Majestade é servido, que os Congressos dela se façam de quinze em quinze dias.

E que o Director e Censores, além dos Congressos ordinários, se juntem extraordinariamente quando, e aonde lhes parecer.

E que tudo o que se conferir, assim nos Congressos ordinários, como nas Juntas extraordinárias, se dará logo exacta conta a Sua Majestade para ele ter notícias do calor com que se trabalha nesta obra, e do progresso que se faz nela.

Tendo obedecido ao honroso preceito de Sua Majestade, expondo a este eruditíssimo Congresso as suas Reais ordens, e todas as que nesta tarde se ouvirão devem ser adoradas pelos que temos a incomparável felicidade de ser seus Vassalos; porque todas estão respirando devoção para com a Virgem Senhora nossa, beneficência para toda a Monarquia,  benignidade para esta Academia.

Não é a obra da Lusitania Sacra outra coisa senão uma ilustração histórica de todas as Igrejas de Portugal; e é glória da Senhora que esta ilustração se principie, em que dela de canta: Cunctas illustrar Ecclesias. Será o empenho da Lusitania Sacra ilustrar as Igrejas Catedrais deste Reino, mas tudo redunda em glória da mesma Senhora, a quem todas elas são dedicadas.

Que outra coisa é instituir El-Rei nosso Senhor em dia da Conceição da Virgem Santíssima1, e à sombra da sua imagem uma Academia para se escrever a Lusitania Sacra, senão o protestar que tem consagrado o Reino de Portugal à Rainha dos Anjos à imitação do seu décimo sexto Avô o Senhor Rei D. Afonso Henriques?

Mandar que em dia da Conceição se principiem a imortalizar por meio da História as Igrejas Catedrais de Portugal é agradecer-lhe a piedade, com que todas elas seguindo a Metropolitana de Lisboa juraram no ano de 1646 a Conceição imaculada, como tinha feito no mesmo ano o Senhor Rei D. João IV segundo escreve o discretíssimo Padre Sebastião de Novais no seu Lilium inter spinas, dizendo: Omnes denique Lusitaniae Cathedrales, praegunte Metropolitana Ullyssiponensi, Regio subscriptere diplomati de eligenda pro Regni Praeside Sanctissima è Conceptione Virgina, illius que propugnanda libertate à naevo originali.

Fez o Senhor Rei D. João o IV. aquele juramento da Conceição imaculada em obséquio da Senhora, para lhe agradecer o benefício da Aclamação, que lhe deu a posse da Coroa deste Reino, do qual foi jurado Rei pelos Três Estados dele, e manda Sua Majestade dar princípio à História deste Reino em dia da Conceição, para que nela dure imortal aquele agradecimento.

E para avivar mais a memória daquele benefício quer El-Rei nosso Senhor, que os eruditos Congressos, em que se há de dispor aquela obra, se façam neste Palácio2, por ser o mesmo lugar, em que há oitenta anos se faziam os Congressos em que os quarenta Fidalgos zelosos da liberdade Portuguesa dispuseram, que se restituísse a Coroa à Sereníssima Casa de Bragança, como felizmente se executou no faustíssimo dia primeiro de Dezembro do sempre famoso ano de 1640. esta Real determinação de Sua Majestade, de que a História Eclesiástica de Portugal se disponha no mesmo lugar, em que se dispôs a Aclamação do Sereníssimo Rei D. João o IV. é muito conforme, ao que a Eterna Providência ordenou, que sucedesse naquele glorioso dia decretando, que o Senhor Arcebispo de Lisboa D. Rodrigo da Cunha, sendo o maior Autor da História Eclesiástica que teve este Reino, como provam os livros que escreveu dos Prelados do Porto, Braga e Lisboa, lograsse a singularíssima glória de no acto da Aclamação ser a primeira pessoa, de cujo conselho, e direcção se valeram por sua autoridade, como testemunho o Senhor Rei D. Pedro II. de gloriosa memória numa doação que fez, sendo ainda Príncipe Regente, em 22 de Fevereiro de 1673.

E se me fora lícito discorrer sobre os incrustáveis segredos da Providência Divina, dissera eu que a causa desta misteriosa união da História Eclesiástica coma a Aclamação do Senhor Rei Dom João IV. era o serem uma, e outra o desempenho dos oráculos do Campo de Ourique; porque na História Eclesiástica, que descreve a Santidade, a Fé, e a Piedade do nosso Reino, e as vidas dos Prelados que nele plantaram, cultivaram, e propagaram a Fé; e que com a santidade da vida, e verdade da doutrina ensinaram a piedade, se mostra satisfeita a promessa de Cristo ao Senhor Rei D. Afonso Henriques fundador do nosso Império: Erit mihi regnum sanctificatum, fide ourum, e pietate dilectum. E na Aclamação do Senhor Rei D. João o IV. se viu o desempanho da palavra do mesmo Senhor: Volo in te, e in semine tuo Imperium mihi stabilire. Pondo Cristo os olhos na décima sexta geração atenuada, como ao mesmo Rei tinha vaticinado o Eremita.

A beneficência para com toda a Monarquia mostra Sua Majestade em querer ressuscitar as suas insignes memórias, que o descuido de muitos séculos tinha não só amortecidas, mas profundamente sepultadas.

Na Lusitania Sacra terão nova vida muitos prelados, que se não conheciam, muitos Santos, e Varões ilustres, que se ignoravam. Descobrir se hão Fundadores de Templos, de Mosteiros, e de lugares Pios. E se o Senhor Rei D. João III. mereceu eternos louvores por escrever uma carta a um Bispo, encomendando-lhe muito o descobrir as memórias dos Santos Portugueses, para mandá-las a Surio3, que naquele tempo escrevia as vidas dos Santos na Alemanha, de que  elogios se não faz credor El-rei D. João o V, nosso senhor quando escreve cartas a todos os Bispos, e cabidos dos Reinos, e suas Conquistas, para que remetam a esta Academia todas as memórias Eclesiásticas, que acharem  nos seus Arquivos?

Quanta glória resvalará da Lusitania Sacra às Cidades Episcopais, que nela hão de ir descritas, e a todas as que forem pátrias dos Santos, dos Prelados e de outros Varões ilustres?

As famílias também receberão muita utilidade desta obra; porque de quase todas se acharão nela Prelados insignes, e ilustres Varões. O quanto a Lusitania Sacra contribuirá para a glória das famílias se pode entender, sabendo-se que um dos motivos, que animou ao Abade Fernando Ughello4 a escrever a sua grande obra Italia Sacra, foi o desejo de ilustrar as famílias italianas, como ele diz no Prólogo do primeiro dos nove tomos daquela obra: Addidit deinde mihi scribendi animos de innumeris propemodum Italicis familiis benemererai nobilis cupidu.

E havendo de resultar da Lusitania Sacra, e da Academia em que ela se escreve, todas estas, e outras muitas utilidades à Monarquia, é sem dúvida, que são argumentos da Real beneficência, todas as cláusulas que conduzem para a perfeição de uma, e perpetuidade da outra.

Porém excede a tudo a benignidade, com que El-rei nosso  Senhor favorece a Academia, dando-lhe os mais eficazes meios de conseguir a incomparável fortuna de exercitar com acerto a sua obediência, elevando-se à mais sublime honra, ao mesmo tempo que a perpetua com a sua Real protecção, a qual põe a toda a Academia na gostosa obrigação de um eterno agradecimento. E eu em nome de toda a Academia acabo este discurso com as mesmas palavras, com que Ausonio5 principiou o Panegírico, em que deu as graças ao seu soberano: 

«Ago tibi gratias, Imperator Auguste; si possemetiam referrem. Sed nec tua fortuna desiderat remuner andi vicem, nec nostra suggerit restituendi facultatem.»

Disse.

 


Notas:

1. A festa da Imaculada Conceição foi adoptada oficialmente pela Igreja latina em 28 de Fevereiro de 1476 pelo Papa Sixto IV. Em 1497 a Universidade de Paris decretou que ninguém poderia ser admitido na instituição se não defendesse a Imaculada Concepção de Maria, exemplo que foi seguido por outras universidades como a de Coimbra e de Évora. Em 1617 o Papa Paulo V proibiu que se afirmasse que Maria tivesse nascido com o pecado original, e em 1622 Gregório V impôs silêncio absoluto aos que se opunham à doutrina. Foi em 8 de Dezembro de 1661 que Alexandre VII promulgou a Constituição apostólica Sollicitudo omnium Ecclesiarum em que definia o sentido da palavra conceptio, proibindo qualquer discussão sobre o assunto. O dogma foi promulgado em 8 de Dezembro de 1854 pelo Papa Pio IX.

2. O Palácio dos Duques de Bragança ficava, em Lisboa, na confluência das actuais ruas António Maria Cardoso, Vítor Cordon e Duques de Bragança até ao largo do Picadeiro (do antigo palácio), na zona do Chiado, tendo desaparecido no Terramoto de 1755.   

3. Laurentius Surius (1522-1578) hagiógrafo alemão nascido em Lubeque, escreveu De probatis Sanctorum historiis ab Al. Lipomano olim conscriptis nunc primum a Laur. Surio emendatis et auctis, cuja primeira edição em seis volumes foi publicada em Colónia entre 1570 e 1577.

4. Ferdinando Ughelli (1595-1670) historiador italiano nascido em Florença, escreveu Italia sacra sive de episcopis Italae, que saiu em 9 volumes, publicados em Roma de 1643 a 1662. Uma segunda edição abreviada tinha saído em Roma em 1704, e uma terceira edição estava a ser publicada em Veneza desde 1717, sendo concluída em 1722.

5. Decimus Magnus Ausonius (c.310 - c.394), professor e poeta romano nascido em Bordéus, ensinou o futuro imperador Graciano, em Tréves, chamado pelo imperador Valenciano, tendo escrito Gratiarum actio dicta domino Gratiano Augusto, obra lida em 379.

 

Fonte :

Collecçam dos Documentos, Estatutos, e Memórias da Academia Real da História Portuguesa, que neste anno de 1721, se compuzerão, e se imprimirão por Ordem dos seus Censores, dedicada a ElRey Nosso Senhor, seu Augustíssimo Protector, e Ordenada pelo Conde de Villar Mayor, Secretário da mesma Academia, Lisboa Occidental, Na Oficina de Pascoal da Sylva, Impressor de S. Magestade e da Academia Real, M.DCCXXI [1721]. Sem paginação

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