Cunha Leal em 1927

Francisco Pinto da Cunha Leal

DISCURSO DE CUNHA LEAL.

Discurso de Cunha Leal que devia ter sido pronunciado em 1 de Dezembro de 1927 na Sociedade de Geografia de Lisboa.

 

Este discurso que devia ter sido proferido no dia 1 de Dezembro de 1927 na Sociedade de Geografia de Lisboa, foi proibido pelo Governo de Óscar Carmona, saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926. 

A manifestação de estudantes, realizada nesse mesmo dia, no Largo de São Domingos, perto do local onde se iria realizar a Conferência, e onde se gritaram palavras de ordem contra o governo, tendo mesmo cercado o carro do presidente do governo, levou à intervenção policial e à prisão de vários intervenientes, não permitiu que a conferência se realizasse.

O discurso mostra bem o que Cunha Leal não apreciava a demora, mais de 18 meses, em se regressar à normalidade política, propondo que se começasse a preparar a redacção de uma nova Constituição. 

Este discurso é, do ponto de vista ideológico, um ataque contra o Integralismo Lusitano, grupo que Cunha Leal via como a principal influência por detrás do governo da época, dando-lhe uma feição anti-democrática, senão mesmo anti-republicana. De facto para o dirigente «popular»:

«Nós, os neo-democratas, havíamos preparado a vitória; eles escamotearam-na. Nós queríamos colaborar na adaptação da Democracia ao novo condicionalismo social; eles, partidários do tudo ou nada, cavaram um abismo entre a Situação e muitos dos que estavam dispostos a auxiliá-la no campo republicano.».

De facto, para a Direita republicana, que tinha apoiado o golpe militar do 28 de Maio a ditadura devia servir para solucionar os problemas fundamentais do regime, e não para o transformar radicalmente, e muito menos para por em causa a democracia.

 

«NACIONALISMO»

 

Minhas Senhoras, ilustres Ministros, meus Senhores:

Agradeço à Comissão promotora desta Conferência o ensejo que me proporcionou de afirmar alguns princípios que reputo salutares, neste dia tão prenhe de gloriosas evo­cações para todos os portugueses que ainda não tenham perdido a noção do sentimento pátrio. Não se arrependerão da sua iniciativa visto que não ouvirão aqui palavras inte­resseiras e vis. Amando a verdade, proclamei-a sempre sem receios; hoje procuro mesmo servi‑Ia sem paixões, que tantas vezes conduzem ao exagero.

Agradeço, igualmente, ao Governo do meu País o ter-se feito representar nesta sessão, segundo as sugestões feitas pela Comissão promotora. A sua presença aqui prova que, passados os fumos da vitória e os exageros da primeira hora, os homens de Estado que O 28 de Maio improvisou, estarão dispostos a não cerrar ouvidos às manifestações sinceras da opinião pública. Preside ao Governo alguém que muito respeito e que, não me conhecendo profundamente, alguma coisa não ignora de mim. Ele sabe que o temor até hoje não me tem entibiado o ânimo e paralisado a acção. Ele sabe que, se a Ditadura se não implantou três anos mais cedo, não foi por minha culpa, com toda a certeza. Ele ouviu‑me proclamando os sãos princípios no julgamento dos vencidos de 18 de Abril de 1925. Ele faz‑me, sem dúvida, a justiça de crer que a circunstância de não ter combatido a Ditadura pela palavra ou pelas armas se não pode atribuir a um receio que seria vil, mas de que repito sou incapaz. A minha folha de serviços d causa da libertação do Povo português do jugo férreo que sobre ele pesava não oferece comparações com a de tantos que farandolam à volta da Situação, na ânsia de conseguirem que pela sua gritaria descompassada se aquilate da sua fé.

O Governo, virado aqui para ouvir que não para aderir, presta justiça às intenções dum homem; e, embora no fim, cada um de nós - Governo, ouvintes e conferente - possa ficar nas mesmas posições em que, anteriormente, estava, nem por isso a deferência, representada por essa comparência, deixa de ser grata a quem, tendo feito o que fez pela eclosão de O 28 de Maio e tendo, depois desse Movimento, ouvido quase apenas a barulheira hostil das rãs a coaxarem num charco, se limitou, nas horas das mais furiosas invectivas, a sacudir quem o atacava, sem, como seria natural, se deixar arrastar para a guerra, para onde, aliás, desejavam empurrá-lo certos amigos e certos adversários da Situação.

 A todos os que, convidados, compareceram a esta reunião, igualmente, agradeço a sua presença quer os tenha trazido aqui a simpatia, a simples curiosidade ou até mesmo o desejo de, ouvindo-me, encontrarem nas minhas palavras razões para me combaterem. Nos tempos que vão correndo, não é licito aos homens públicos ocultarem o que pensam, nem é justo que eles esperem irradiar em torno de si uma simpatia e força de convicção tais que consigam converter a integralidade dos seus adversários. Estou, pois, seguro de que não convencerei toda a gente, mas tenho também a certeza de que, se quiserem ser justos, hão-de reconhecer a sinceridade das rainhas intenções.

*

Meus Senhores:

Há 287 anos, uns tantos portugueses, muito poucos, vendo a sua Pátria envilecida e oprimida pelo jugo do estrangeiro, resolveram abalançar-se à empresa magnífica de a libertarem. Dias antes, em 28 de Novembro, os conjurados haviam-se reunido para concertarem os últimos detalhes da aventura, e uni deles, o mais novo talvez, João da Costa, fizera ouvir a linguagem fria da razão. Que lhes disse esse moço, aliás valente e leal português, que, pela primeira vez, assistia às reuniões dos conjurados?

Afirmou-lhes que os conspiradores não passavam de quarenta fidalgos, que, com os seus criados, escravos e familiares, chegariam, quando muito a duzentos; que era incerta a adesão do Povo; que, em contraposição, o poder de Castela era enorme em toda a parte, sendo-o até mesmo em Lisboa, aonde havia nas casernas do Castelo e das Torres e nos navios surtos no Tejo mais de 1500 homens armados, sem contar com os partidários não arregimentados, do domínio espanhol; que, supondo, apesar de tudo, triunfante a revolução em Lisboa, Castela podia esmagar-nos, logo a seguir, pois nem sequer contávamos, como a Catalunha, com a amizade de Richelieu; que o Duque de Bragança não tinha capacidade para ser um rei guerreiro; que os espanhóis, pará nos reduzirem a Província, nos haviam tirado homens, dinheiro, armas e cavalos e que, assim empobrecidos, era difícil triunfar na luta que se seguiria.

João da Costa, aparentemente, tinha carradas de razão. Detalhemos, de facto, mais minuciosamente do que os historiadores nos contam que ele o fez, as circunstâncias em que se encontrava o Portugal de 1640.

Antes de Filipe II ter ajuntado aos seus títulos o de Rei de Portugal, o nosso País encontrava-se em paz com a Europa, à qual fornecia os produtos arrancados aos seus vastos domínios coloniais. A partir de 1580, os inimigos de Castela passaram, porém, a ser também inimigos nossos. Franceses, ingleses e holandeses viram, de repente, interrompidas as suas pacíficas relações comerciais connosco. O instinto natural de conservação e progresso levou-os a irem procurar, directamente, nesses domínios aquilo que não podiam obter por outros meios. O nosso Império colonial começou a ser esfarrapado, caindo aos pedaços noutras mãos. A Marinha portuguesa foi decaindo, lentamente. O desastre da Invencível Armada, era que tantas das Unidades nacionais iam incorporadas, o naufrágio era 1626 da Esquadra de D. Manuel de Menezes, o desastre do Canal de 1639, a destruição da Armada do Conde da Torre, em 1640, reduziram a pouco menos do que nada a nossa Marinha. A medida que os navios desapareciam na voragem, despovoavam-se os Arsenais, cessava a formação dos Capitães e das tripulações. Mais de 7000 bocas de fogo nos levara Castela. As próprias barcaças da pirataria moura se afoitavam a penetrar nas nossas praias.

Enquanto, pois, o nosso comércio decaía e as nossas alfândegas se mostravam improdutivas, crescia o comércio dos Povos rivais.

Em 1581, nas Cortes de Tomar, Filipe II, político astuto, na sua patente de graças e mercês, outorgara ao País aqueles mesmos privilégios e imunidades que D. Manuel I jurara em assembleia similar. Mas essas promessas não foram mantidas pelos seus sucessores e todos os actos de Olivares, o poderoso valido de Filipe IV, visavam a reduzir-nos d misérrima condição de Província espanhola. Exacções fiscais exercidas contra todas as classes - Povo, Clero e Nobreza - provocavam a ruína colectiva. Os homens válidos eram arrancados, violentamente, aos seus lares, não para defenderem as nossas Conquistas, ruas, sim, os domínios espanhóis.

Em 1580, os partidários da união das duas Coroas haviam visionado progressos e grandezas. A realidade dava-nos, porém, revezes e desesperanças: o nosso poder marítimo e comercial arruinado, as nossas Conquistas invadidas e a decadência precipitando-se em furiosa cavalgada.

Apesar de tudo isso, Portugal conseguiu firmar, de novo, a sua independência, ao passo que a Catalunha, melhor favorecida pelo condicionalismo material, fracassou em idêntica empresa. Por quê?

É que os factores morais tiveram no caso uma influência enorme, e com ela não haviam contado João da Costa e todos os pessimistas. Caídas por terra antigas ilusões, Portugal verificara que, sozinho, podia mais do que encostado d poderosa monarquia espanhola. O absolutismo castelhano propusera-se arruinar as nossas instalações locais e as classes que formavam o sólido arcabouço da Nação. Atacada nos seus próprios fundamentos, enfraquecida e humilhada, vendo-se prestes a ser convertida em Província hispânica, a Nação Portuguesa reagiu e a fé de alguns salvou-a, por isso que essa era a veemente aspiração de todos. A partir desse momento, Clero, Nobreza e Povo foram unânimes no seu desejo de vencer ou morrer.

Esse movimento de reacção era tão nacional que, até quase à última hora, os conjurados não tiveram nem Chefe, nem Rei. Induzido pela sua habitual astúcia, o Duque de Bragança não queria comprometer-se e só se decidiu a intervir na conspiração salvadora quando recebeu ordens para marchar contra a insurreição catalã, pretexto de que Olivares se servia para o afastar de Portugal e talvez para o prender. Por várias vezes, antes disso, os conjurados chegaram a alvitrar a hipótese da proclamação da República no País.

Foi só em fins de Outubro que o Duque de Bragança deu a sua adesão aos preparativos do Movimento. Conta-se, que antes de tornar, em definitivo, essa atitude, resolvera consultar António Pais Viegas, seu Secretário. Ter-lhe-ia este perguntado «que partido seria seguido por D. João no caso de o Reino se constituir em República - se o do País, se o dos castelhanos». D. João teria respondido que «em qualquer acontecimento havia de acostar-se ao que seguisse o comum do Reino». Então - segundo o conselho do consultado - «mais valeria arriscar tudo para ser Rei do que arriscar tudo para ficar Vassalo».

Eis como Portugal conseguiu fabricar um Rei. A Restauração foi, pois, obra duma Nação que reage como um organismo vivo, espontaneamente, apesar de desajudada por aquele que, mais tarde, veio a ser o seu Monarca. Em suma, não foi um Rei quem salvou a Nação, foi esta que se salvou a si própria e improvisou aquele.

1640 é o triunfo do nacionalismo português.

*

Esta palavra nacionalismo anda muito em voga. Agitando-a como uma bandeira, certos políticos como que pretendem situar os seus adversários no campo do internacionalismo.

Os neo-nacionalistas proclamam que querem modificar as características do Estado português, transformando-o num Estado nacional. Para abrangermos bem o significado destas duas palavras, arrancaremos do livro do Sr. Martinho Nobre de Melo Para Além da Revolução algumas considerações esclarecedoras:

«Tem o Estado de promover o bem comum? Não deve restringir-se o papel, que lhe toca, à conservação da ordem, que implica a aplicação da justiça nos tribunais, e é tudo? Por certo que a missão do Estado é bem mais larga ...  

O liberalismo, colhendo o argumento dos factos, logo nos propõe o tipo ideal do Estado-gendarme. O Estado-gendarme não basta. Fez-se necessária uma concepção mais vasta e prática, mais sugestiva e propulsionadora: a do Estado-nacional. A abstenção absoluta dos poderes públicos é uma concepção ideológica à qual nunca a realidade se adequou, nem se adaptará jamais ...

A missão do Estado-nacional tem que efectuar-se por variados meios e processos que interessara à economia integral do grupo e, portanto, à sua fisiologia e morfologia, pelo que vão desde os estruturais e estáticos aos funcionais, dinâmicos e espirituais. Podemos visioná-los e escorçá-los pela forma seguinte:

1.º) Promover e realizar as condições económicas e sociais propícias, em que os indivíduos, as famílias e os grupos possam exercer e desenvolver as suas actividades próprias para o seu bem particular e para a geral prosperidade da Nação, e, portanto: a) criar, conservar, desenvolver, directa ou indirectamente, vias de comunicação e transporte - estradas, caminhos de ferro, transportes e canais; b) contribuir para o progresso do comércio e da indústria por meio de convenções comerciais e dirigir, por meio das tarifas aduaneiras e pelo regulamento da posição cambial, o movimento da importação e da exportação; c) estimular a produção nacional pela criação de instituições destinadas à propaganda e difusão de conhecimentos técnicos, nos diferentes ramos da indústria, pela atribuição de recompensas, alívio de colectas, concessão de prémios; d) criar mercados novos pela colonização ou acordos.

2.º) Editar todas as medidas e avigorar as instituições que tendam à conservação e reprodução da espécie, como o instituto da família, e a gerar e manter uma ordem natural e estável, como as corporações profissionais.

3.º) Manter e preservar de influências deletérias a linguagem, a religião, os móbeis e sanções morais e os mitos patrióticos, que são produto fisiológico da raça, adaptações nacionais da Verdade ou invenções do instinto de conservação do grupo.

4.º) Alimentar o espírito nacional pelo culto das tradições e glórias do passado, pela audaciosa esperança de engrandecimento da Pátria no futuro, enfim pela concepção heróica do Estado-nacional, que implica um sem-número de ideias e instituições, afloradas no presente ensaio.»

Magister dixit. Perdeu muitas palavras para nos dizer uma coisa que todos sabemos, ou seja que a concepção do Estado-gendarme é mera utopia. Como veremos, todas as forças humanas empurram o Estado para tendências opostas. O fim do Estado-nacional, como o concebem os neo-nacionalistas, é o engrandecimento da Pátria. Este é o objectivo de todos os Estados, cuja acção se faz sentir «por variados meios e processos, que interessam à economia integral do grupo.»

Aonde está, pois, a diferença entre os velhos nacionalistas e os neo-nacionalistas? Vamos a arrancá-la a algumas frases de Paul Bourget no Outre-Mer, T. II:

«Devemos procurar o que resta da velha França e ligar-nos a isso apor meio de todas as nossas fibras, reencontrar a unidade natural e hereditária da Província sob o Departamento artificial e morto, reconstituir a família, agarrada à terra pela liberdade de testar, proteger o trabalho pelo restabelecimento das Corporações, dar à vida religiosa o seu vigor e a sua dignidade pela supressão do orçamento dos cultos e o direito de possuir livremente assegurado às associações religiosas, numa palavra, neste ponto como nos outros, desfazer, sistemàticamente, a obra assassina da Revolução Francesa.»  

Eis, em poucas palavras, a concepção final dos nossos neo-nacionalistas: destruir a obra soi-disant assassina da Revolução Francesa. Tão servis somos agora como quando a copiámos.  

*  

Enunciado assim, não será isto, pura e simplesmente, um disparate?  

Para melhor compreensão das conclusões a que vou chegar, vejamos como é que se explica, nas nacionalidades surgidas após a queda do Império Romano do Ocidente, a formação duna vida regional intensa e fecunda.  

Essas nacionalidades constituíram-se, através de lutas ingentes, em Países desprovidos, em absoluto, de meios de comunicação. Corno arregimentar homens, conto realizar o milagre de levantar urna grei inteira a não ser pela fragmentação e divisão do território nacional essa parcelas cada uma delas sujeita a uma espécie de suzerania decorrente da própria delegação da autoridade régia? Os Suzeranos locais foram, naturalmente, escolhidos dentre aqueles companheiros de arretas do Rei que mais se haviam distinguido nos campos de batalha. Formou-se assim uma nobreza guerreira, ciosa dos privilégios conquistados no fragor dos combates.  

Por outro lado, enfraquecida, gradual e progressivamente, a autoridade do Império Romano, nas novas nacionalidades improvisadas sobre os seus escombros começaram a aumentar paralelamente, em importância, certas instituições locais de carácter popular, como, por exemplo, os municípios.

O regionalismo teve, pois, de início, como base, a fragmentação dos Estados em zonas sujeitas a uma suzerania privativa, delegação da autoridade régia, e a sobrevivência das instituições municipais à derrocada da construção imperial de Roma.  

A improvisação de certo número de Estados dentro dum Estado único imprimiu à economia da Nação unia fisionomia particular. Cada um desses órgãos parcelares começou a proteger-se por uma complicada teia de barreiras fiscais; e, pelo exagero deste proteccionismo, chegou-se, instintivamente, à concepção autárquica de que cada um desses sectores deveria bastar-se, a si próprio, criando para tanto, indústrias locais, que, de certo modo, fossem susceptíveis de satisfazer as necessidades regionais. O intercâmbio económico irão estava - é certo - proibido, ruas, por vezes, era reais dificultado do que o são, hoje em dia, as trocas internacionais.  

A formação duma burguesia, cujo poder se ia consolidando lentamente, foi o produto duma ascensão capilar de elementos do Terceiro Estado. Assim como a nobreza - classe fechada - se defendia da invasão da classe popular, reproduzia-se nesta, instintivamente, o mesmo fenómeno, de modo que as sub-classes, originadas dentro dela, procuravam fechar-se ao acesso de outros elementos mais inferiorizados, socialmente, das carreadas do Povo. A organização do operariado industrial em Corporações fechadas é a prova do que venho de afirmar.  

Por outro lado, os princípios de autoridade dominantes na época, a própria necessidade de defesa davam à família importância decisiva no agregado social; e, sendo a agricultura a ocupação quase geral do Povo português, essa Instituição vivia, de certa forma, agarrada à terra.  

Família, Corporações, Municípios, Classes, Região, produção industrial localizada, descentralização - tais foram as características fundamentais da Nação portuguesa no período inicial da sua constituição. É isto o que se pretende ressuscitar?

«Veja-se agora como evolucionou até ao advento da Revolução Francesa a Nação formada com esta configuração.

Não foi necessária a deflagração daquele grande acontecimento histórico para que começasse a operar-se, lentamente, o fenómeno centralizador. O período da fixação das nacionalidades tinha, mais ou menos, terminado. As comunicações entre as diferentes regiões haviam melhorado. Uma produção industrial, nacional por obedecer a conveniências de ordem geral na sua localização, começava a tornar-se possível. A tendência para o intercâmbio económico do agregado acentuava-se, tornando periclitante a resistibilidade de algumas indústrias regionais, por terem, em certas zonas, melhores condições de sucesso que noutras. A classe popular lá ia realizando unia lenta ascensão. A burguesia acentuava o seu domínio financeiro, económico e social.

Os Reis, cujo poder era imensamente reduzido pelas autocracias locais, tendiam, à medida que se acentuava a paz com os inimigos externos, a reduzir as atribuições e privilégios da nobreza. Aproveitando as antinomias das classes, apoiavam-se numas para combater a influência das outras. Pouco a pouco, foi-se passando da monarquia descentralizada e de intensa vida regional para a monarquia centralista e de menor vibração local. Entre nós, o desvio da actividade interna para a tarefa gigantesca das Descobertas e Conquistas concorreu ainda mais para a acentuação duma tendência que, de resto, era comum a todas as monarquias europeias.

Entre parêntesis, observarei que, em minha opinião, os neo-nacionalistas erram, quando supõem que a cúpula dum edifício social em que a descentralização seja a norma e o regionalismo tenha reconquistado as honras a que tem direito, deva ser, forçosamente, um Rei hereditário, garantindo por unia autoridade imperativa o equilíbrio dos diferentes grupos do corpo nacional. Uma realeza que não seja apenas uma sombra, como a da Inglaterra, há-de tender sempre para a centralização. É este o exemplo que nos fornece, constantemente, a história. Parece, porém, que os neo-nacionalistas estão dispostos a ler a história às avessas.

Fechado este parêntesis, farei notar que, nestes termos, quando a Revolução Francesa iluminou o mundo com o seu clarão deslumbrador, já a centralização havia operado os seus efeitos naturais. A economia regional vegetava, mas o que é certo é que a Nação ainda não conseguira improvisar uma vida industrial que, não sendo pertença desta ou daquela região, fosse, por assim dizer, independentemente da sua localização, a resultante da concentração de todos os esforços da Nação. A troca vivia ainda entravada por milhentos e indesejáveis obstáculos.

Qual foi a característica da produção no século seguinte á Revolução Francesa? Foi a criação da Grande Indústria. Ora esta não podia constituir-se com a existência simultânea de muitas indústrias locais similares. A Grande Indústria surgiu, lentamente, pela criação e acumulação de capitais privados e a sua inversão em empresas gigantescas, pela concentração industrial em zonas privilegiadas, pela facilidade crescente das comunicações, pela supressão das barreiras aduaneiras interiores e pelo gradual aperfeiçoamento da técnica, iniciado com a descoberta da máquina a vapor. A região tinha de sofrer, forçosamente, na intensidade da sua vida privativa para que a colectividade, em conjunto, pudesse ganhar. Pode alguém, sinceramente, lamentar-se de que a Revolução Francesa tenha determinado o progresso sensível da produção e operado a multiplicação dos capitais? Não há dúvida de que há gente para tudo!

Aquele cataclismo político-social, posto em face dum problema, que, aliás, os seus fautores nunca chegaram a atingir por completo, deu-lhe, por instinto, soluções extremas e radicais.

Se a troca era prejudicada pelos restos de feudalismo que ainda tinham sobrevivido à ruína da nobreza, a Revolução, suprimindo os privilégios das classes e das regiões, deu ao comércio possibilidades de amplo desenvolvimento.

Se a classe e a Corporação fechada eram barreiras que se opunham a mais largo recrutamento dos dirigentes e do operariado industrial, a Revolução, fazendo intervir o indivíduo isoladamente na vida social e suprimindo as distinções legais das castas, facultava às indústrias maneira de atingir um tal objectivo.

Falando de Michelet, são de meditar estas reaccionárias considerações de Maurras, o padre-mestre do Integralismo Lusitano:

«Durante longos anos, a França foi representada, quer em literatura, quer no resto, pelos membros duma elite hereditária; os belos espíritos, que podiam nascer ela pequena burguesia ou do Povo, acediam às honras, introduzindo-se no clero.»

Impossível, evidentemente, conceber uma indústria com as proporções da actual serra que a Nação inteira fosse o reservatório onde se iriam seleccionar os seus chefes e sem que tis Corporações franqueassem as portas a toda a gente. A Revolução, com o seu método simplista, resolveu o problema de modo radical; destruindo todos e quaisquer laços que o profissionalismo ou os prejuízos sociais tinham estabelecido entre os homens e fazendo-os intervir na vida pública apenas conto seres isolados.

Foi este o melhor método? Não, não o foi. Mas isso não quer dizer que, durante um longo período, o processus, apesar de não ser o preferível, se não tivesse revelado eficaz e não houvesse tido até a vantagem de permitir que na sociedade portuguesa este jaez pululando certos «belos espíritos», que nunca poderiam ter-se formado outrora e que hoje se prevalecera do direito de amaldiçoar a Revolução Francesa, sua real progenitora.

De facto, se num período de 20 ou 30 anos se tivesse operado uma lenta transformação social, a Revolução Francesa haver-se-ia tornado desnecessária, e a destruição, não indo tão longe, deixaria subsistir, transformando-as, certas instituições locais, certos elementos tradicionais, que seriam, mais tarde, outras tantas barreiras a opor contra perigosos movimentos que se estão desenvolvendo nas sociedades contemporâneas.

Os processos catastróficos, por vezes, são inevitáveis, embora quase nunca se tornem desejáveis. Foi o caso da Revolução Francesa. Combatendo a evolução com uma teimosia obstinada, as classes privilegiadas prepararam esse Movimento, ao qual não tiveram, depois, a coragem de se opor com ânimo forte, limitando-o na sua intensidade e na sua amplitude.

A Revolução rolou pelo mundo inteiro corno uma avalanche. Arrasou o que era mau e o que era bom. Mas sobre os escombros deixados por ela ergueu o mundo moderno – repito – o edifício soberbo da Grande Indústria.

Pouco a pouco, à medida que a humanidade caminha, apercebem-se, porém, as consequências provocadas por esse cataclismo. Enumeremo-las, sumariamente.

A indústria não se podia desenvolver por impedirem a troca mil e um obstáculos, que foram, conto se disse, varridos pela Revolução. A certa altura, as sociedades começaram, porém, a sofrer a tirania da própria troca. A produção, em vez de estar situada no primeiro plano, passou para segundo, sendo o lugar primacial conquistado pelo comércio, que usa e abusa dos seus privilégios.

Ao princípio, o desenvolvimento da indústria fez-se no âmbito nacional. Mas os grandes blocos económicos, postos em confronto, conduziram a Europa a uma guerra devastadora, que destruiu muitas energias indispensáveis à conservação do Velho Continente. A consequência foi o engrandecimento industrial desproporcionado da produção norte-americana. Para resistir à invasão dos seus produtos, a indústria europeia tende a agregar-se não já num plano exclusivamente nacional, mas num plano nitidamente internacional. Isto conduz, em política, a um internacionalismo que põe a Europa à mercê da penetração das teorias bolchevistas, que têm a Rússia como centro de irradiação. Por outro lado, os povos, cuja indústria seja fraca, podem vir a ser vítimas destas complicadas combinações industriais.

As nacionalidades tendem assim a descaracterizar-se e a perder a sua autonomia económica. Nos meios internacionais já se fala na federação dos Estados Unidos da Europa. Esta tendência encontra os Povos desprovidos duma estrutura interna que os torne aptos para resistir à sua crescente pressão. Esta imensa multidão gregária dos cidadãos não se encontra separada das outras greis senão pelas suas fronteiras. Rotas estas, as penetrações tornam-se fáceis, por isso que nada existirá para autonomizar os Povos.

Importa, por isso, fazer mais diversificada e complexa a orgânica do corpo social, tornando mais forte a instituição familiar, reunindo os homens através do vínculo do profissionalisrno e imprimindo à vida regional maior intensidade. Várias circunstâncias tornara possível a realização deste último objectivo: a generalização do uso da energia eléctrica no fenomenalismo económico, o que vem sendo facilitado pela transformação da energia hidráulica naquela variedade energética; a possibilidade do seu transporte a distância; e, consequentemente, a ressurreição de antigas indústrias locais ou o estabelecimento de indústrias inteiramente novas.

O internacionalismo, pondo em perigo, sobretudo, a liberdade dos Povos, está destinado a ser o providencial instrumento que haja de provocar reacções internas susceptíveis do acréscimo de resistibilidade do corpo social.

Acentuemos, porém, que a Monarquia - repito - é um regime que tende, naturalmente, para a centralização política, o que, de certa forma, contraria esta tendência contemporânea. Ponhamos ainda era relevo que o entrelaçamento dos nossos interesses económicos com os dos espanhóis pode vir a ser o reais perigoso instrumento de desagregação nacional.

*

O individualismo, tal como o concebeu a Revolução Francesa, foi fecundo, mas a experiência demonstra-nos que é preciso, em parte, ultrapassá-lo. Esta metamorfose, sendo, sob certo aspecto, um regresso, está, contudo, muito longe de ser uma cópia servil do passado. Dizia o grande sábio Henri Poincaré que, havendo-se fundado, sucessivamente, sobre grupos de factos conhecidos várias teorias, entradas, posteriormente, em caducidade, todas elas foram úteis e verdadeiras na medida em que concorreram para a descoberta de novos factos. Do individualismo, dos seus antecessores e dos seus sucedâneos, se pode dizer o mesmo que Henri Poincaré afirmava quanto às teorias.

Encorajemos, pois, os políticos a não se subtraírem às novas tendências. A isto chama Paul Bourget, e, com ele, estão de acordo os neo-nacionalistas, destruir a obra maldita da Revolução Francesa. Eu chamo-lhe - continuá-la.

Nenhuma revolução pode ter a tola pretensão de instituir princípios imutáveis, gravados no próprio bronze da Eternidade. As instituições políticas e os conceitos que as norteiam têm de adaptar-se às realidades, não sendo de admitir que ao corpo social, que é um organismo vivo, se faça sofrer torturas, deformações e amputações, quer para conservar fórmulas caducas, quer para instaurar, pela violência, fórmulas novas.

A Democracia e os seus princípios, que são filhos legítimos da Revolução Francesa, são susceptíveis de evolução. Se ela quer viver, tem de adaptar-se. Mas deixa então de ser a Democracia - sustentam os seus ferozes adversários. A isso contrapõe-se a afirmação de que também nós, todos os dias, vamos sofrendo tais tranformações que, ao fim de determinado tempo, todas as células do nosso corpo estão substituídas. Nem por isso deixamos de ser os mesmos.

A Democracia, evolucionando, pode ainda realizar a obra que as sociedades esperam dela. Bem sei que dois obstáculos se opõem ao seu normal desenvolvimento: certos neo-nacionalistas desejam, à viva força, uma revolução, por isso que a sua mentalidade é catastrófica e, em virtude disso, proclamam a incapacidade da Democracia para se adaptar; por outro lado, certas lapas da Democracia persistem em conservar, em toda a sua pureza original, princípios que já não correspondem às necessidades hodiernas.

Nós, os neo-democratas - passe o termo - vivemos entre estas duas tendências e, neste momento de perturbação geral, não é das mais cómodas a nossa posição.

Mas, na realidade, o objectivo que pretendermos atingir é, sensivelmente, o mesmo para que tendem os neo-nacionalistas. Os componentes das sociedades contemporâneas ou são partidários dum internacionalismo que visa a supressão das fronteiras, como condição de equilíbrio da humanidade, ou são partidários dum nacionalismo que pretende atingir essa posição de estabilidade à custa do entendimento amigável de unidades nacionalistas fortes e autónomas.

Nós, os neo-democratas, somos, pois, nacionalistas. O nosso patriotismo não receia comparações com o de ninguém. É menos gritante, menos espectacular, mas mais profundo do, que o dos neo-nacionalistas. Não deseja arrasar, como um terramoto colossal, as edificações dos nossos dias para fazer construções mais amplas, mas deseja adaptar, restaurar e acrescentar as edificações existentes.

O que deles nos separa, reais do que os princípios, é a sua mentalidade e são os seus processos. A mentalidade destes nossos adversários tem todas as fúrias do homem primitivo e os seus processos são os da violência. ponham - insisto - com a demolição. Não querem realizar uma obra de comum acordo com a Nação. Como os teóricos da Revolução Francesa ou da Revolução Russa, pretendem - minoria audaciosa que são - apoderar-se do Poder para fazerem experiências in anima vili, na carne dolorida de todos os portugueses. Inventam adversários para terem o prazer de esmagá-los e repetem a revelha asserção dos inimigos do interior, que foram arrancar à violência de Maurras. Ao contrário, nós, por nos não sentirmos com predisposição para Atilas, queremos, por sucessivas transformações, partir do presente, que é triste, para um futuro que visionamos mais belo e em cuja concepção nos comprazemos.

Não pretendemos dobrar tudo e todos ao nosso critério. Um exemplo desta cegueira vamos encontrá-lo nas relações do grupo integralista francês com o Catolicismo. Nas notas do estudo de Maurras sobre Chateaubriand, Michelet e Saint-Beuve, encontra-se a condenação do deísmo, fora do grémio católico, nos termos seguintes:

«Frequentemente revoltado contra os interesses gerais da espécie e dos sub-agrupamentos humanos (pátria, casta, cidade, família), o indivíduo .não se submete a eles, em muitos casos, senão por necessidade, horror da solidão, temor da penúria; mas se, nesta consciência naturalmente anárquica, se faz nascer o sentimento de que pode estabelecer relações directas com o Ser absoluto, infinito e todo-poderoso, a ideia deste Senhor invisível e longínquo tê-lo-á depressa afastado do respeito que deve aos seus senhores, visíveis e próximos; e a consciência preferirá obedecer antes a Deus do que aos homens.

            (...)

«O mérito e a honra do catolicismo consistiram em organizar a ideia de Deus e em   tirar-lhe este veneno. Sobre o caminho que leva a Deus, o católico encontra legiões de intermediários: há-os terrestres e sobrenaturais, mas a cadeia desde uns até aos outros é contínua. O céu e a terra estão povoados deles, como o estavam outrora de deuses (J. de Maistre, Du Pape, últimas páginas). Esta religião restituiu assim, em primeiro lugar, ao nosso universo, a despeito do seu monoteísmo, o carácter de multiplicidade, de harmonia, de composição. Por outro lado, se Deus fala em segredo ao coração católico, estas palavras são fiscalizadas por doutores, por sua vez dominados por uma autoridade superior, a única que, sem apelo, é a conservadora infalível da doutrina.»

Vê-se que Maurras concebia a Igreja Católica não como uma Instituição superior ensinando aos homens o caminho de Deus e o respeito pelas autoridades constituídas, sejam elas quais forem, mas, sim, como mero auxiliar para a efectivação da suas próprias concepções doutrinárias. Deus, o Deus católico, não poderia deixar de pregar as mesmas doutrinas políticas arquitectadas por Maurras. Deus seria assim um subalterno e Maurras seria um Deus.

No dia em que Deus se não resignou a esse papel secundário, Maurras fulminou-o com a sua excomunhão intelectual.

São assim os neo-nacionalistas!

O efeito da introdução desta seita em O 28 de Maio está à vista de todos. Nós, os neo-democratas, havíamos preparado a vitória; eles escamotearam-na. Nós queríamos colaborar na adaptação da Democracia ao novo condicionalismo social; eles, partidários do tudo ou nada, cavaram um abismo entre a Situação e muitos dos que estavam dispostos a auxiliá-la no campo republicano. Só nós, os homens da U.L.R., tentamos conservar os nervos suficientemente calmos para nos entrincheirarmos numa digna atitude de abstenção.

Consequência final: os neo-nacionalistas, não tendo disposto de forças para arrasarem tudo, para determinarem, em suma, a sua catástrofe, tiveram, contudo, as suficientes para obrigarem a Situação a marcar passo.

Pois, bem, é preciso fazê-la sair deste ponto morto.

*

A actual Situação carece, na verdade, de nacionalizar-se. Nascida dum golpe de força, é indispensável que qualquer cousa a consagre. O Exército é um dos elementos constitutivos da Nação, não é a própria Nação. É possível que, impulsionado pelo seu imperativo subconsciente, ele tenha actuado por determinação da grei portuguesa. Não deixa, porém de ser útil que se dê legitimidade aos actos provocados por este instinto e que se mostre, palpavelmente, o acordo entre o mandante e o mandatário.

Até hoje nada se fez para isso. A legitimidade resultaria, para a Situação, das afirmações de alguns. É qualquer coisa, mas não é tudo. Importa partir do particular para o geral.

Eu sei que há outras ditaduras na Europa, mas nenhuma delas se encontra nas condições especialíssimas da nossa. No caso da ditadura espanhola ou no da italiana, um Poder absorve outros, mas fá-lo com a cumplicidade dum Poder legítimo preexistente, o Rei, que, carecendo de harmonizar, no exercício das suas funções, todos os outros Poderes do Estado, sancionou essa usurpação, a pretexto de salvaguardar interesses superiores da colectividade nacional.

No caso da ditadura de Sidónio Pais houve um período, semelhante ao actual, de usurpação integral pelos vencedores de todos os Poderes estatais, mas, dentro em breve, o vencedor submeteu a sua chefatura à sanção das massas populares.

O actual caso da ditadura portuguesa talvez seja inédito na história mundial. Não queiramos porém, fazê-lo perdurar indefinidamente.

Importa, como dissemos, realizar o magnífico abraço da Situação com a Nação, fundindo-as harmonicamente. Como atingir, porém, este objectivo? Decretando em ditadura uma nova Constituição, tal-qualmente D. Pedro IV a doou, por mercê e graça da sua vontade liberal, ao povo português? E em que princípios se firmaria esse Estatuto Constitucional? Obedeceria às inspirações doutrinárias de uns tantos portugueses, minoria ínfima e activa, que por aí anda a agitar o seu neo-nacionalismo? Representaria uma fórmula de transigência, de acordo com o programa da U.L.R.? Firmar-se-ia no recente trabalho aprovado pelo Partido Nacionalista? Obedeceria às injunções do Dr. Brito Camacho? A querer pronunciar-se conscientemente, a Situação ver-se-ia a braços com bem sérias dificuldades.

O que aconselhamos, pois? Em poucas palavras aí vai o meu alvitre. A Situação decretaria uma nova lei eleitoral e faria eleger por ela todas as Corporações administrativas. Feito isto, convocaria para Lisboa uma Assembleia magna que não teria carácter constitucional e seria constituída pelos representantes desses organismos e ainda dos grupos profissionais, das sociedades científicas, do professorado nos seus diferentes graus, da Força Armada e do clero. A essa Assembleia a Situação atribuiria o encargo de fixar as bases em que deveria assentar a Constituição Política da República, cuja confecção entregaria, posteriormente, a uma Comissão de técnicos competentes, especializados neste ramo do Direito. Uma tal Constituição traduziria, de algum modo, a vontade do País.

Uma delegação desta Assembleia ficaria funcionando, com carácter consultivo, até à entrada em funções do Poder Legislativo, tal como viesse a ser criado pela nova Constituição. Antes de dissolvida, a Grande Assembleia sancionaria, com o seu voto, a Suprema Magistratura provisória que a Revolução tivesse instaurado pela força e assim daria, de certa forma, legitimidade nos seus actos.

Creio que seria esta a melhor maneira de caminharmos da confusão em que vivemos para a solução a que todos aspiramos. Essa solução não seria detectada nos exageros doentios de qualquer doutrinação particularista, mas, sim, numa média da vontade geral, visto que teriam o direito de pronunciar-se os representantes acidentais eleitos das Corporações administrativas, a par dos delegados de grupos profissionais, intelectuais e morais com certas características de permanência. Poder-se-ia evitar a tão decantada tirania dos Partidos políticos e estar-se-ia sempre a tempo de recuar, se as circunstâncias o aconselhassem.

Para que a paz reine entre todos os portugueses, torna-se outrossim necessário que seja decretada, imediatamente, uma ampla amnistia.

Porventura este alvitre terá o mau sestro de não interessar os que nos governam. Mas se, por acaso, me não enganar nesta suposição, lembrarei a todos e cada um que a paz de que está carecida a nossa Terra não deve ser a paz dos cemitérios. Importa fazer entre os vivos uma conciliação geral. É necessário que se vá para as eleições municipais que preconizo sem que as Colónias estejam povoadas de deportados e as cadeias pejadas de presos. Importa decretar uma ampla amnistia que, na realidade, represente um mútuo perdão, um esquecimento de agravos recíprocos.

Dir-me-ão que é possível a reincidência por parte dos amnistiados. E se fosse? O que é essencial é que a Situação se torne potente, por isso que a amnistia é a arma dos fortes e não dos fracos. E, para adquirir aquela potencialidade, torna-se indispensável que seja consagrada pela Nação. Indiquei uma das formas de se operar essa consagração. Mas, para que ela se torne efectiva, convém que às urnas, de que hão-de sair as corporações municipais regulares, concorra uma maioria esmagadora de eleitores. A amnistia, sob certos aspectos, não virá na hora mais conveniente? Nem, por isso, de modo geral, deixará de vir na hora própria.

Não creio que os adversários da Situação se mostrassem insensíveis ao apelo que esta lhes fizesse sob a forma duma ampla amnistia. Seria um grande passo para a reconciliação na nossa grei.

É, pois, com esta íntima certeza que me afoito, neste dia em que a nacionalidade festeja mais um aniversário do fenómeno da sua ressurreição, a lançar este veemente brado em prol dum amplo e mútuo perdão de agravos por parte dos vencedores e por parte dos vencidos.

A divisa dos fortes deve ser a generosidade. Aos vencidos não fica mal, reconhecendo-a, agradecê-la.

*

Não quero terminar esta Conferência sem pôr ainda em destaque que o meu nacionalismo e o dos meus amigos não é, de nenhum modo, agressivo para as outras nacionalidades.

A U.L.R., a que pertenço, reconhece as vantagens duma estreita aliança com essa grande força espiritual que dimana da Igreja Católica. Não a queremos subordinada ao poder civil, queremo-la a exercer a sua acção pacificadora no nosso meio social, independentemente da acção temporal decorrente dos Governos. Respeitamo-la e desejamo-la acarinhada, por ser, no meio duma sociedade em transes de dissolução, a mais poderosa força moral de agregação e de coesão.

Igualmente, a. U.L. R. continua a afirmar a sua convicção de que aos interesses superiores da Nação convenha reforçar a nossa tradicional Aliança com a Inglaterra. Importa não deixar avolumar mal-entendidos que possam pôr em perigo a boa amizade que deva presidir sempre às nossas relações. Não é de aconselhar entretermo-nos, por outras bandas, em devaneios susceptíveis de nos arrastarem para situações indesejáveis.

A inconstância em matéria de política internacional é altamente perigosa e, no nosso caso particularíssimo, seria até criminosa.

Que nunca os Governos se esqueçam desta circunstância e que aproveitem todas as oportunidades propícias para o estreitamento cada vez maior dos laços que nos prendem à Grã-Bretanha. Isso e uma maior intimidade de relações com o Brasil e a França constituem, para nós, um amplo programa de vida internacional.

De resto, o nosso nacionalismo - repito - representa uma tentativa de fazer reviver certas tradições susceptíveis de provocarem o acréscimo da coesão do corpo da Pátria, não deixando que ele se dissolva na uniformidade peganhenta do internacionalismo.

Festas, como a de hoje, são próprias para aviventarem a consciência do nosso próprio ser nacional. Apresentar às gerações presentes os exemplos memoráveis do passado, evocar aqueles feitos que a história gravou no mármore dos seus registos foi, em todos os tempos, o .dever de quantos orientam e dirigem um País.

Não ignoro a afirmação de alguns de que, por vezes, essas evocações não chegam a determinar na alma dos Povos aquela especialíssima vibração de plena exaltação mística e patriótica. Não ignoro também a afirmação de outros de que a esperança não pode renascer na vida portuguesa, vasto cemitério cheio de cruzes votivas e de pedras tumulares.

Deixemos falar os homens de pouca fé. Assim como Portugal escravizado e envilecido teve forças para romper as cadeias que o acorrentavam, assim nós, pela evolução lógica da Situação, haveremos de encontrar agora na nossa energia a alavanca da redenção.

Pátria ao alto! - disse um ilustre português. Pátria e República ao alto! - afirmarei eu.»

 

Fonte :

Cunha Leal, As Minhas Memórias: Coisas de Tempos Idos, Vol. III: Arrastado pela fúria do tufão, de 28 de Maio de 1926 a 4 de Dezembro de 1930, Lisboa, 1968, págs. 93-114.

A ver também:

| Página Principal |
| A Imagem da Semana | O Discurso do Mês | Almanaque | Turismo histórico | Estudo da história |
| Agenda | Directório | Pontos de vista | Perguntas mais frequentes | Histórias pessoais | Biografias |
| Novidades | O Liberalismo | As Invasões Francesas | Portugal Barroco | Portugal na Grande Guerra |
| A Guerra de África | Temas de História de Portugal | A Grande Fome na IrlandaAs Cruzadas |
| A Segunda Guerra Mundial | Think Small - Pense pequeno ! | Teoria Política |

Escreva ao Portal da História

© Manuel Amaral 2000-2008