O bispo Eneias Sílvio entre a infanta D. Leonor e o imperador Frederico III

O bispo de Siena, Eneias Sílvio entre a infanta D. Leonor e o imperador Frederico III

 

 

Arenga de Eneias Sílvio a Afonso V de Aragão e Sicília

 

Discurso proferido em Nápoles, a 10 de dezembro de 1450, por Eneias Sílvio,
bispo de Siena, futuro papa Pio II, em presença de Afonso V, o Magnânimo, rei de Aragão.  

 

Discurso proferido quando terminaram as conversações e se assinou em Nápoles o contrato de casamento entre o imperador alemão, Frederico III, e a infanta D. Leonor de Portugal, irmã de D. Afonso V, em 10 de dezembro de 1450. Conta o o mesmo Eneias nos seus comentários manuscritos, segundo Struvio, dizendo: "Tendo-se este negócio (do contrato) tratado em quarenta dias, quando finalmente se concluiu, Eneias fez um discurso, encarecendo a nobreza e as virtudes dos nubentes (que foi depois copiado por alguns) na presença do rei, do cardeal Morinense, legado apostólico, dos duques Clinense (de Cléves?) da Calábria, da Suessa [Suiça?], Selessia [Silésia?], etc., e de grande número de prelados e de condes, na corte do Castelo Novo de Nápoles.

O interesse fundamental do discurso prende-se com a defesa da condição da mulher e da sua paridade no casamento, dando como exemplo a Sagrada Família e ligando também à promoção da figura da Virgem Maria no seio da Igreja.

 

 

«Sou oriunda de antiquíssima estirpe de reis; meu pai foi rei; minha mãe, rainha foi; ilustríssima é a minha procedência, pela antiguidade e pelos feitos dos meus maiores; reina o meu sangue há inúmeros séculos; de invictas virtudes foram os meus progenitores, na guerra e na paz»

 

 

Ainda que para grandes assuntos, como diz Jerónimo, não bastem pequenos engenhos, pertence-me, contudo, sereníssimo príncipe e rei vitoriosíssimo, relatar aos que presentes se acham, os esponsais que por estes dias, sob o influxo da tua majestade, se fizeram.

Pois que das coisas que importam à sublimidade imperial ninguém pode falar senão os legados do imperador, suplico que a tua serenidade me ouça, e aos circunstantes peço que me atendam, não por mim, que o não mereço, mas pelo assunto da minha arenga que é grande, admirável, raro e honestíssimo.

Vou falar de um nobilíssimo matrimónio: altíssimo, potentíssimo, incomparável.

A régia donzela prometida ao imperador romano. Leonor, infanta de Portugal, a mais excelente das nobres meninas, tua sobrinha, está desposada, com o divo césar Frederico, rei dos Romanos, augusto, pio, triunfador.

Ingente afinidade, poderosíssimo parentesco, ilustríssimo consórcio: certo, uma causa divina interveio nisto.

Demos graças a Deus, senhor nosso; é para nós de festa sem mancha este dia; exultamos; sentimo-nos todos alegres, e não podemos imaginar que tão simpático acordo possa, dar-se senão como grande fruto da religião cristã.

A ela encomendámos já este casamento, mas devemos também ofertar aos cônjuges as maiores homenagens.

É, pois, dos dois que tenho de falar, embora o meu discurso mais atenue que explique a elevação do assunto.

Parece necessário, porém, antes de tratar deste feliz consorcio, refutar os que não cessam de invetivar todas as mulheres, pois que se o casamento consiste na união do homem com a mulher, como louvá-lo se uma das partes for defeituosa e falha?

Não, ele não é como a estátua de Daniel1, que numa parte da sua base era de ferro e na outra, de frágil material, nem como o monstro de Horácio2 que superiormente era, uma formosa mulher, e terminava semelhando um peixe.

Mas é coisa quase sagrada, se as partes se correspondem, íntegra e perfeitamente.

Ouçamos, porém, o que se diz contra as mulheres; depois julguemos.

Diz-se que há nos sagrados textos muitos testemunhos adversos.

Trovejam, contra elas: Agostinho, Ambrósio, Jerónimo, Gregório e outros doutores da Igreja.

Virgílio, Juvenal, toda a turba áspera dos poetas, severamente as pinta como avaras, inconstantes, cruéis.

Aduzem os exemplos das más e colocam todas entre estas.

Citam-se ainda os filósofos, que consultados, não explicam como podem vir delas, ao mundo, tão formidáveis males.

Metelo3, de Numídia, corno se lê nas Noites Áticas de Gélio4, diz: 

“se pudéssemos passar sem mulheres, Quirites, não sofreríamos todos tantas desgraças, mas visto que a natureza as fez assim, de modo que nem com elas possamos viver comodamente, nem sem elas possamos viver, melhor é fugirmos perpetuamente delas que consolarmo-nos com a breve voluptuosidade que nos dão".

Tais são as queixas contra, as mulheres e contra o casamento, que injustos censores costumam aduzir.

Mas todas, se me não engano, são fáceis de refutar, principalmente as que dos sagrados textos se extraem contra as mulheres, pois que somente contra as perversas podemos aceitá-las.

Confessemos que existe no sexo feminino a malícia, mas porque não podemos deixar de reconhecer que ela é universal, teremos então de condenar tombem todos os homens.

Pois se acerca das mulheres está escrito: “Não encontrareis uma entre mil”, também dos homens lemos nos Salmos: “Não há uma que faça o bem, um só que seja”.

E segundo o Satírico: “Tão raros são os bons que mal chegam a tantos quantas são as portas de Tebas ou as bocas do grande Nilo".

E amplia, em reforço: “Se vejo um homem egregio e santo, comparo este monstro ao menino de dois corpos que olha por baixo do arado, aos peixes achados, a uma mula parida”.

Mas os santos doutores, se detestam as mulheres, é ás más que justamente condenam, e aos que prometem guardar a castidade é que aconselham a fugir-lhes e a aborrece-las.

Até das santas virgens dedicadas a Deus, e até das casadas muito se tem dito, e mais se há de dizer.

A verdade é que para os homens que fizeram votos de continência são inimigos muito para temer, como para estas, nas mesmas circunstâncias, o são os homens.

Não é para admirar que os poetas invetivem as mulheres, porquanto também não poupam os homens.

A Catão, o Grande, como se vê em Tito Lívio, responde triunfantemente L. Valerio, que conseguiu derrogar a Lei Oppia contra as mulheres.

Quanto a crimes nada temos que disputar-lhes, quando deparámos com os mesmos, e muito piores, no nosso sexo.

Nem me movem os exemplos das más mulheres, nem os antigos males que delas tem vindo ao género humano, pois que se quiséssemos comparar as ações torpes das mulheres e dos homens, desde a primeira que praticou Caim até à do celeradíssimo Judas, e as que desde então um e outro sexo têm feito, mostraríamos que relativamente aos homens, são inocentes as mulheres.

Mas obsta a esta demonstração a estreiteza do tempo, e por isso cedo à brevidade.

Venho agora aos filósofos, nenhum dos quais, como atesta Lactâncio5, viveu como escreveu.

Qual deles ouvirá de bom animo o motivo e fim com que o sapientíssimo Sócrates, invocando Apolo, maldizia do seu casamento?

Xantipo6 não se contentando com uma só mulher, viveu juntamente com duas.

Parece-me, pois, que melhor fora que os detratores das mulheres se calassem em vez de falar sem fundamento.

Os que recorrem á autoridade de Metelo não sabem que ele foi condenado pela opinião de doutos varões, ficando inabilitado para aconselhar ninguém, verdadeira e capazmente.

Decidiram, portanto, os mais prudentes que se deveria seguir a opinião de que dos casamentos nenhuns males resultavam e que se alguns sucedem, são leves, insignificantes, fáceis de tolerar e se devem esquecer em vista das vantagens e prazeres que dos casamentos proveem.

Tanto mais que nem sempre sucedem tais males por vicio da natureza; senão por culpa e injustiça de alguns maridos.

Nem posso deixar de recomendar esta opinião, quando é bem sabido que se encontram homens bons e mulheres probas, entre os quais podem haver consórcios justos, santos e honestíssimos.

Referindo-me agora ao bom casamento, parece-me dever frisar três pontos que merecem ser especialmente ponderados, por serem com eles congéneres: honesta posição, grande utilidade e doce bem-estar.

Tratemos de cada um deles.

Segundo o meu parecer os casamentos mais dignos e os que os autores têm por melhores, são os que mais se aproximam da antiga origem.

O matrimónio é, na verdade, antiquíssimo, pois que começou nos nossos primeiros pais e teve por nobilíssimo autor Deus pai omnipotente e toda a Trindade, como diz Jerónimo7.

Foi instituído logo que o Senhor disse: “Crescei e multiplicai-vos e povoai a Terra”.

Não foi, como julgam arbitrariamente os Atenienses, o mais antigo rei destes, quem inventou as núpcias, pelo que o representam com dois corpos, como tendo sido o primeiro que uniu legitimamente o homem com a mulher8.

Muito e muito antes da fundação de Atenas, logo no começo do Mundo, não o homem, mas sim Deus, não a criatura, mas o criador e o senhor e fundador do Orbe, consagrou o matrimónio, cuja dignidade é tamanha que uma vez consumado não pode desfazer-se, pois que lá diz a Escritura, que “o que Deus ligou o homem não pode desligar”.

É, pois, de fé que se acham unidos por laço divino os que contraem o matrimónio segundo o rito, e sendo a Madre Igreja guia dos costumes, mestra da vida, núncia da verdade, entre os grandes sacramentos revelados por Deus, inclui o matrimónio.

Assim, o senhor e salvador Deus feito homem, Jesus Cristo, quis nascer do seio de um consórcio, e precedido pelo consórcio, antes que ele se consumasse, para honrar com o milagre o casamento.

Esta é a sua dignidade.

Vejamos agora a utilidade dele.

Mais fácil é de ser compreendida do que explicada.

Porquanto, qual é a coisa, quais as cidades, quais as províncias, quais os reinos, como, em suma, se conservará o género humano se não fosse o matrimónio?

O que são as núpcias senão o seminário da república?

O que faz as famílias, o que propaga as gentes?

Como se perpetuam os povos, senão pelo casamento?

Como houvera paz, fé, caridade entre os mortais se, como pensava, Platão, pudéssemos viver com as mulheres livremente, sem legítimas núpcias?

Omito as muitas utilidades que do matrimónio se derivam para a vida privada.

E o contentamento doméstico?

Não é no matrimónio que ele se encontra?

Aristóteles, o mais perspicaz de todos os filósofos, não só nas Politicas como nas Éticas, atesta quanto é jucunda a amizade entre os cônjuges.

Desde a fundação de Roma até à era de 500, ou, como diz Tertuliano, até à de 600, não houve divorcio algum, tal era a satisfação entre os casados.

Há nada mais suave, mais doce, mais agradável na vida do que achar uma mulher morigerada e fecunda; do que ao entrar em casa, um homem, fatigado dos bulícios do foro, dos tédios da cúria, dos trabalhos da república, sentir a verdadeira consolação de ver, acariciando-o e à mãe, os doces filhos para os quais economiza, para os quais vive e nos quais viverá ainda depois da morte?

Não curo de testemunhos humanos, onde resplendece a autoridade divina.

Lá diz o santo Génesis: “Deixará o homem, seu pai e sua mãe e juntar-se-á a sua mulher, e farão dois em uma só carne”.

Grande é a força do deleite; grande é o contentamento que faz de dois corpos uma só carne.

Aristófanes9 concorda em que é uma só alma em dois corpos.

Mas está dito o bastante, do bom matrimonio.

Já em outro lugar falámos dos contraentes; quais e como pessoas eram; diremos agora deles algumas palavras.

Não são da plebe nem da classe engrandecida pela fortuna, mas sim de sublime e excelso estado.

Sangue real e imperial se uniram neste consórcio.

Se eu pretendesse explicar a excelência das pessoas, por mim próprio, seria de certo apoucada a dignidade do caso; melhor é que ouçamos essas mesmas pessoas dizer de seus merecimentos.

Imaginemos, pois, presentes os que celebraram as núpcias.

Fale de si a régia donzela; fale também o César; enumerem ambos as suas qualidades.

Dize, tu, Leonor, que noiva és, que dote trazes; narra por que motivo sais da tua pátria, que pacto te aprouve fazer com o divo César.

Desejamos saber porque te amou tanto o príncipe.

Ouvide, próceres. Ouçam todos.

Fala já a donzela.

- “Sou oriunda de antiquíssima estirpe de reis; meu pai foi rei; minha mãe, rainha foi; ilustríssima é a minha procedência, pela antiguidade e pelos feitos dos meus maiores; reina o meu sangue há inúmeros séculos; de invictas virtudes foram os meus progenitores, na guerra e na paz.

Testemunha das suas vitórias é toda a Espanha, na qual não há um recesso em que não penetrassem as armas dos nossos antepassados, quer quando os bárbaros a entraram, quer quando poderes cristãos lhes moveram guerras injustas.

Recente está ainda a memória daquela armada com a qual meu avô passou à África e em grande batalha derrotou os sarracenos e lhes tomou Ceuta fazendo ali uma colónia de fiéis em que a salvadora cruz se levanta, contendo e resistindo aos bárbaros.

É esta a minha herança paterna; de todos o mais valioso património pois que mais vale, como diz o sábio, um bom nome do que muitas riquezas.

Entre os meus progenitores e os potentíssimos reis de Castela e de Inglaterra houve estreitíssimos vínculos de consanguinidade.

Aquele mesmo rei, de tão alta fama e mais poderoso ainda pelo valor, deu em casamento ao famosíssimo duque da Borgonha, minha tia, cordatíssima e sapientíssima10.

Ouvide agora, porém, a glória materna.

Um preside a Navarra, ilustre no valor e no nome.

O outro, que melhor chamarei arqui-rei, não só entre Hispanos; mas entre Ítalos, Sículos, Sardos, Majóricos, Mirónicos possui reinos.

Não falo dos antigos proveres da Casa de Aragão que em todos os séculos foram exalçados pela fama.

Um basta citar para nossa glória: Afonso, cujo invicto valor e insuperável firmeza não só venceram a sorte que lhe era hostil, mas lha fizeram propícia e branda.

Quantos portos, quantas ilhas, quantas terras e praias não conquistou ele, sem armas nem combates!

Qual é o reino da terra que ignore o nome de Afonso?

Quem melhor do que ele conhece as artes da guerra e da paz?

Quem mais amado dos cidadãos e até dos estranhos?

Quem, no nosso século, favorece mais os engenhos?

Quem mais justo, mais liberal e de maior ânimo no governo?

Não é este entre os potentados o único que a prosperidade não ensoberbece e não abate a adversidade?

Com todo o brilho da fortuna e para a glória do nosso seculo tomou Nápoles com tanta perseverança como a dos capitães gregos na tomada de Troia.

Mostrei-te, Senhor, a minha não pequena glória da parte paterna e da materna.

Quanto à minha pessoa e aos meus costumes quero antes que outros falem.

Qual sou de feições, de estatura, de formas, os oradores de César que me viram há dois anos não julgaram que o seu príncipe me repelisse.

Se não agradasse, não seria pedida.

Fui criada entre matronas respeitáveis pela sua modéstia e autoridade, e não me parece ter degenerado, em coisa alguma, dos meus maiores nem desagradado aos meus mestres.

Tal, pois, qual sou, nada, creio, pode por mim obstar às núpcias, quando, ilustrada por tantos títulos paternos e maternos trago com amigo a pudicícia, de donzela, a formusura, os bons costumes e uma Casa nobilitadíssima pelas muitas glórias que a adornam.”

Ouvimos a régia donzela que, a meu ver, oferece os mais egrégios dotes.

Ouçamos agora, se vos apraz, o noivo.

Dize tu, Frederico, onde encontrarás outra régia donzela tão ilustre, tão formosa, tão eminente em qualidades?

É conveniente que demonstremos quanto ele é digno deste casamento.

Atendei, presules11; prestai ouvidos, ilustres varões.

Já fala o César

Diz:

- “Confesso ser verdadeiro tudo quanto a minha noiva narrou, e estou persuadido que muito mais haveria a dizer dos seus antepassados.

Quanto à sua figura satisfaz-me e amo-a, inteiramente; reconheço os seus costumes como reais e dignos do seu sangue.

Nem eu escolhera mulher que não fosse digna de mim.

Dos meus costumes nada quero dizer. Deixo aos outros, faze-lo.

Parece-me, contudo, ter até hoje vivido por maneira que não devo ser julgado inferior aos meus progenitores.

Mas prefiro falar deles, a falar de mim.

A minha estirpe é a mais antiga que pode desejar-se: ducal, real, imperial, produziu muitos varões fortes, belicosos duques, reis justíssimos, césares magnânimos.

Obedeceu-lhes a Áustria, país florentíssimo cujos principados se estenderam desde a Saboia até à Panónia, desde a Ilíria até à Borgonha.

Obedeceu-lhes a Boémia, o antigo reino nobilíssimo, digníssimo, áureo.

Reinaram sobre a feroz e varonil Polónia; governaram as sete partes daquela populosa, larguíssima e opulenta Hungria12.

Por eles foi durante um século administrado o império romano, e não sem grande louvor para a nossa Família.

Por eles foi vencido em grande batalha, derrotado e morto, Otokar13, rei egregio e poderoso que desde o golfo Adriático até ao oceano setentrional, tudo submetera ao seu poder, por direito ou sem ele, insultando o império romano; rei hostil a Deus e aos homens.

Rodolfo14, príncipe da nossa Casa foi o primeiro que possuiu a Áustria.

Pela fama da sua moderação foi eleito imperador, o só o nome do seu valor esfriava os que contra o império tentavam coisas novas.

Nem menos afamado foi antes dele Alberto15, o qual como muitos príncipes germânicos quisessem que Adolfo, da Casa de Nassau16, imperasse, não consentiu que o império saísse da família e declarou-lhes guerra.

[…]

desfraldadas, venceu, derrotou e matou, em renhida batalha, o usurpador, restituindo assim á Casa de Áustria a sua antiga dignidade.

Passo em silencio Frederico César17 e meu avô Leopoldo18, dois raios na guerra.

Não louvarei Ernesto19 que me gerou.

Muito querido dos seus súbditos e temido dos inimigos, meu tio paterno Alberto Cesar20, que reinou na Boémia e na Hungria, não só perseguiu os heréticos hussitas, como também reprimiu com grande valor a fúria dos Turcos contra os Cristãos.

Não seria ocioso referir como os meus maiores procederam para defender o império romano e assegurá-lo, por mar e por terra, mas para isso eram precisos muitos dias.

Estando ao cuidado da nossa Casa, há já trezentos anos, a república romana, talvez haverá alguém que julgue que degenerámos e que hoje valemos apenas pelos títulos e pela brilhante recordação dos nossos maiores.

Sabemos quanto é triste ‘encobrirmo-nos cova a fama alheia’:

- ‘Para que os tetos não caiam por lhes faltarem as colunas’.

Devemos, pois, dizer também alguma cousa de nós.

Quantos somos hoje na Casa de Áustria: eu, o mais velho, a quem os príncipes eleitores21 confiaram o império romano, há já onze anos que dirijo os meus súbditos com satisfação deles.

Mais nada digo a meu respeito.

Reconhecem como seu rei os Húngaros e Boémios a Ladislau, meu primo coirmão, filho de Alberto, neto, pela filha, do Cesar Sigismundo, a quem pela sua menoridade governamos os seus Reinos.

Alberto, meu irmão, invicto nas armas, governa a Suíça e a Alsácia e é freio e terror dos Suíços.

Segismundo, outro meu primo, também adolescente, de índole auspiciosa, rege Enum e Atenas. Se a face lhe trai a idade, desmente-a o valor.

Isto somos, sem falar de nossos maiores.

Quem poderá enumerar os nossos consanguíneos e afins?

Não há Casa ilustre na Alemanha que não tenha sangue da nossa família.

Nossos maiores desposaram mulheres de França, de Aragão, da Hungria, de Nápoles, da Inglaterra, da Polonia e de todas as mais excelsas Casas da Cristandade.

E eu, iniciando estas sagradas núpcias, vou mais longe, porque matrimoniando-me na Casa de Portugal e de Aragão, dou, em mim, a afinidade de varões e de armas egrégias, não a um pequeno reino ou a uma província apenas, mas à Alemanha, cheia de Povos, de príncipes, de prelados; mas a toda a Germania, pejada de reinos, que abraça mais de metade da Cristandade”.

Ouviste, grandíssimo rei o que o noivo e a noiva disseram.

Compreenderam todos, creio, a grandeza deste consórcio, que certamente nenhum, entre os mortais, poderá contrair-se nem mais nobre, nem mais útil à Cristandade, por isso que nele se ligam a virtude à virtude, a nobreza à nobreza, a potência à potência, a grandeza à grandeza, o que é culminante ao que é culminante.

Assim os príncipes germânicos e os próceres hispanos, afins entre si, se associam na benevolência e na amizade.

Pelo que fiada mais nos resta fazer, senão procedermos em conformidade com tamanhas venturas e elevarmos infinitas graças à piedade divina, que tudo move, e à tua majestade, como autora desta união, reunindo todas as nossas preces para que este casamento seja duradouro e feliz para os contraentes e para a república cristã.

Louvado seja Deus Jesus Cristo.


 

Notas

 

1. A Estátua de Nabucodonosor relatado no Livro de Daniel, da Bíblia. As pernas eram de ferro mas os pés e os dedos do pé de barro. Daniel, capítulo 2, versículo 41.

2. Horácio na Arte Poética, v. 1, no início da Epístola aos Pisões afirma: “Se um Pintor a cabeça humana unisse / pescoço de cavalo, e de diversas / Penas vestisse o corpo organizado / De membros de animais de toda a espécie / De sorte que mulher de belo aspecto / Em torpe, e negro peixe rematasse; / Vós chamados a ver esta pintura, / O riso sofreríeis? Pois convosco / Assentai ó Pisões, que um quadro destes / Será mui semelhante aquele livro, / No qual ideias vãs se representem / (…) ” Tradução de Cândido Lusitano [Francisco José Freire], 2.ª ed., Lisboa, Na Oficina Rolandiana, 1778, págs. 5-6.

3. Cecílio Metelo, general romano que venceu Jugurta, rei da Numídia, no norte de África, entre 107 e 105 a.C.

4. Aulo Gélio, Noctes Atticae (Noites Áticas), obra em catorze livros, escrita no século II d. C.

5. Lúcio Célio Firmiano Lactâncio (c.240 – c.320 d.C.), foi conselheiro do imperador romano Constantino I, escreveu: De Officio Dei (A obra de Deus), De Ira Dei (A ira de Deus) e De Mortibus Persecutorum (A morte dos perseguidores).

6. Xantipo, general espartano ao serviço de Cartago, dirigiu as forças da cidade contra Roma durante a Primeira Guerra Púnica.

7. São Jerónimo (c.347 – 420 d.C.) traduziu a Bíblia do grego para o latim, tendo defendido o dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus.

8. Cécrope, mítico primeiro rei de Atenas, terá ensinado aos súbditos o casamento, a leitura a escrita e a sepultura dos mortos.

9. Aristófanes (c.447 – c.385 a.C.). Dramaturgo ateniense autor de Lisístrata ou a Greve do Sexo, As vespas, As nuvens, As rãs e Assembleia de mulheres, entre outras peças.

10. Isabel de Portugal (1397 – 1471), duquesa de Borgonha pelo seu casamento com Filipe III, o Bom, era filha de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, irmã de D. Pedro (1392-1449), regente de Portugal entre 1439 e 1449, negociador do casamento. Foi mãe de Carlos, o Temerário.

11. Bispos, prelados.

12. Refere-se às sete tribos magiares que deram origem à confederação húngara e ao reino cristão fundado por Estêvão I (c.975 – 1038) em dezembro/janeiro de 1000/1001.

13. Otokar I (c.1155-1230), o primeiro rei hereditário da Boémia.

14. Rodolfo I imperador alemão (1218 – 1291) foi o primeiro Habsburgo a ocupar o trono imperial, tendo sido eleito após o longo interregno de 1245 a 1273, provocado pela deposição de Frederico II Hohenstaufen.

15. Alberto I de Habsburgo (1255 – 1308) imperador alemão, filho do imperador Rodolfo.

16. Adolfo I de Nassau (c.1248 – 1298), imperador alemão de 1292 a 1298, morreu a combater o seu rival, o conde Alberto de Habsburgo.

17. Frederico II de Áustria, o Belicoso (1211 – 1246), aliado do imperador Frederico II Hohenstaufen.

18. Leopoldo IX (1365 – 1379).

19. Ernesto I, o Leão (1377–1424), duque da Carniola e da Áustria em 1406; duque da Estíria e da Caríntia em 1411; conde de Habsburgo, do Tirol, de Ferrete, de Kyburg, landgrave da Alta Alsácia e arquiduque em 1414.

20. Alberto II (1397 – 1439) imperador alemão, rei da Húngria e da Boémia (1437 – 1439), duque da Áustria desde 1404.

21. Colégio instituído em 1356 compunha-se de sete eleitores: o eleitor do Palatinado, o rei da Boémia, o duque da Saxónia, o marquês do Brandeburgo e os arcebispos de Colónia, Mogúncia (Mainz) e Treveris (Trier).

 

Fonte:

Transcrição e tradução de Eneae Sylvii ad Alphonsum, Sapientem Siciliae Regem super connubio Friderici et Eleonora oratio gratulatoria. Struvio, Rer. Germanicarum Script. varii etc. T. II. in Luciano Cordeiro, Uma Sobrinha do infante, imperatriz da Alemanha e rainha da Hungria, Lisboa, Imprensa Nacional ("Portugueses fora de Portugal"), 1894

 

| Página Principal |
| A Imagem da Semana | O Discurso do Mês | Almanaque | Turismo histórico | Estudo da história |
| Agenda | Directório | Pontos de vista | Perguntas mais frequentes | Histórias pessoais | Biografias |
| Novidades | O Liberalismo | As Invasões Francesas | Portugal Barroco | Portugal na Grande Guerra |
| A Guerra de África | Temas de História de Portugal | A Grande Fome na IrlandaAs Cruzadas |
| A Segunda Guerra Mundial | Think Small - Pense pequeno ! | Teoria Política |

Escreva ao Portal da História

© Manuel Amaral 2000-2015