D. Miguel em 1828 |
DISCURSO DE JOSÉ ACÚRSIO DAS NEVES. Discurso de José Acúrsio das Neves, um dos procuradores de Lisboa, na reunião das Cortes de 1828 realizadas no Palácio da Ajuda, no dia 24 de Junho de 1828.
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José Acúrsio das Neves, membro da Junta
do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação,
explicita as razões que de acordo com a antiga constituição da
monarquia, baseada como sempre, na primeira metade do século XIX, nas
apócrifas Cortes de Lamego, tornavam D. Miguel I o rei legítimo, e D.
Pedro IV um usurpador.
A parte mais importante do discurso refere-se, contudo, à manutenção da monarquia de direito divino, de acordo com a vontade expressa também pela Santa Aliança, formada após as guerras napoleónicas pela Rússia, Áustria e Prússia, a que se só se opunha, num primeiro momento a liberal Grã-Bretanha, e a partir de 1830 a França. |
«A
Europa tem os olhos fixos em Portugal e não pode deixar de aplaudir a sábia
e magnânima resolução que tomou de firmar o ceptro português sobre as
ruínas da revolução, do que depende a segurança de todas as
monarquias.
«Sereníssimo
Senhor. Depois
de tão longas peregrinações, e por entre tantos perigos e trabalhos, a
mão do Omnipotente conduziu a Vossa Alteza Real desde as margens do Danúbio
às do Tejo, para salvar o seu povo. Este fiel povo, agitado, oprimido e
consternado pelos partidos, pelas revoluções e por todo o género de angústias,
suspirava com tanta ansiedade pelo libertador que havia de pôr termo às
suas calamidades como em outro tempo o de Israel durante o cativeiro de
Babilónia. Depois de Deus, todas as nossas esperanças se fixavam em
Vossa Alteza Real, e não era em vão, porque com Vossa Alteza Real à
nossa frente temos começado uma era mais ditosa. Aquela
hidra, que há cinco anos Vossa Alteza Real esmagou em Santarém, tem sido
origem e causa de todas as nossas desgraças. Vossa Alteza Real pisou-lhe
a cabeça com um heroísmo que imortalizou seu nome; porém ela, sendo de
uma vida tão tenaz como pintam a hidra da fábula, e ainda mais perigosa
por seus ardis, comprimiu-se, humilhou-se, fez-se morta, e passados alguns
instantes levantou de novo o colo, tomou diversa figura, empregou novos
agentes e os seus primeiros tiros dirigiram-se contra aquele que a tinha
esmagado. Nenhuma
outra coisa se devia esperar, uma vez que o monstro ficou com vida, mas se
ele preparou a Vossa Alteza Real longos trabalhos, penosas fadigas, também
lhe deu ocasião a colher novos e ainda mais viçosos louros nos campos da
honra e da glória; se nos envolveu em dias de dor e de amargura, também
nos trouxe o doce prazer que hoje respiramos. Partiu
Vossa Alteza Real de entre nós levando-nos consigo nossos corações e
deixando-nos o pranto e as saudades. A facção neste seu triunfo
passageiro fez de Portugal um campo de batalha, em que as intrigas e as
paixões se combateram horrivelmente. Muito sofremos, com mágoa o digo,
muito sofremos durante a ausência de Vossa Alteza Real, e a Europa não
foi talvez bem informada da natureza e extensão de nossos males, porque não
via os sucessos de Portugal senão através de uma atmosfera nebulosa e
corrompida. Os ódios, as perseguições, as vinganças e por fim a guerra
civil, como era consequente... porém que horrorosas recordações me
prendem a voz! Não
manchemos com recordações tristíssimas o júbilo e glória de tão
grande dia, lançando esta nódoa sobre as pompas festivas que por toda a
parte se preparam. Oxalá que se pudesse interromper a cadeia do tempo e
riscar de nossos fastos a triste história dos últimos oito anos! Lancemos
pois, se é possível, um véu sobre o passado e ocupemos toda a nossa
atenção com o grande objecto para que Vossa Alteza Real nos reuniu ao
redor do seu trono, sem renovar lembranças que possam provocar
ressentimentos e atear dissenções, quando Vossa Alteza Real tomou a
nobre empresa de reunir a nação e trazer todos os portugueses à concórdia. Ficaram
satisfeitos os nossos primeiros desejos com a presença de Vossa Alteza
Real, que um só momento não tardou desde o seu feliz regresso que não
começasse a enxugar nossas lágrimas. Vão preencher-se as nossas esperanças
com a benéfica resolução que Vossa Alteza Real tomou de convocar os três
estados do reino para o fim já indicado no decreto de sua convocação e
que hoje nos mandou anunciar em termos mais expressivos pela boca do
ilustre orador que me precedeu. A
grande questão nacional (grande pelas suas consequências e não pela
dificuldade da matéria) que tem dado pretexto aos malévolos para
revoltarem a Monarquia até os fundamentos; cuja melhor aplicação existe
na voz unânime, que soou por todo o reino. Mas Vossa Alteza Real a
submeteu às deliberações deste Congresso, para que de novo se examine
com madureza, e nesta real determinação, digna por certo de um grande príncipe,
Vossa Alteza Real nos dá mais uma prova decisiva de seu espírito de
justiça, moderação e desinteresse e do muito que se desvela pelo bem do
Estado. Hoje
é o aniversário de um dia que será sempre memorável na história, pela
transcendência de seus resultados. Em 23 de Junho de 1789 houve em França
aquela sessão real dos Estados Gerais, onde se desenvolveram os princípios
da revolução que o virtuoso Luís XVI com ela pretendeu atalhar. Mas que
diferença entre os tumultos que começaram naquele dia e o sossego que
Vossa Alteza Real vê reinar neste Congresso! Da reunião dos três
estados de França em 23 de Junho de 1789 resultou a destruição da
monarquia francesa e esta espantosa série de males, de que ainda se
ressente a geração actual e se ressentirão talvez por muito tempo as
gerações futuras; da reunião dos três estados de Portugal em 23 de
Junho de 1828 resultarão providências que hão-de fazer a felicidade da
nação e devem ter uma alta influência na tranquilidade da Europa. Mas
em França dominava o espírito revolucionário, aqui domina o amor da
ordem e brilha a felicidade portuguesa, eis a diferença. Vai
tomar-se uma medida que, fixando o trono sobre a base da verdadeira
legitimidade e dando-lhe uma energia que ele não tinha, há-de pôr termo
às dissensões e à guerra civil, que assolam o reino; reunir toda a
grande família portuguesa debaixo de um governo justo e paternal;
tranquilizar os bons, desenganar os iludidos e arrancar das mãos pérfidas
dos incorrigíveis o punhal que pretendem cravar no coração da pátria,
para repartirem depois seus ensanguentados despojos. Esta
medida, pois, que com tanta veemência era reclamada pelo voto geral da nação,
assaz pronunciado em tantas representações que têm subido à augusta
presença de Vossa Alteza Real, era ao mesmo tempo a única que podia
salvar a monarquia. Qual seria, pois, o chefe de partido tão resoluto e
audaz que se aqui estivesse a não aprovasse e aplaudisse? Qual o bárbaro
que preferisse antes ver correr o sangue português e a pátria exalar os
últimos suspiros nos braços da anarquia? Nosso
primeiro dever é dar graças ao Omnipotente por este assinalado benefício,
que recebemos de sua divina Providência e depois a Vossa Alteza Real.
Lance, senhor, os olhos por este numeroso Congresso e leia em todos os
semblantes os sentimentos de que se acham penetrados todos os corações.
São sentimentos de prazer, de amor, de lealdade e de gratidão para com
Vossa Alteza Real, que se têm difundido por toda a nação e de que eu
tenho a incomparável honra de ser o fiel intérprete. Vossa
Alteza Real e a nação procuram salvar o Estado por aqueles legítimos
meios que se acham prescritos em nossas leis fundamentais e sancionados
pelos nossos antigos usos e costumes. E quem se atreveria a disputar este
direito a Vossa Alteza Real e à nação estreitamente unidos e firmemente
resolutos a completar a obra começada? Quem ousaria interpor-se para
deter seus passos? Uns poucos de facciosos têm esse arrojo, mas enquanto
Vossa Alteza Real lhes desarma os braços este Congresso há-de desfazer
seus sofismas. Pretendem
assustar-nos e reanimar o seu partido (esta é uma das suas armas
familiares), lançando sombras sobre a política europeia com manifesta
injúria dos soberanos aliados. Mas poderemos nós ter daí algum receio?
Estas vozes que eu tenho a honra de dirigir a Vossa Alteza Real são tão
débeis que não enchem nem o âmbito desta sala, porém eu desejava que a
Europa, que o mundo as ouvisse, porque a causa não é só de Vossa Alteza
Real, é da nação portuguesa, é a causa do género humano. A
política europeia, forçada a seguir a marcha dos acontecimentos públicos
que com prodigiosa rapidez se sucedem uns aos outros, se modificam e se
contradizem, muitas vezes se tem enganado em seus cálculos, mas,
advertida pelos seus mesmos erros, não se enganará desta vez com os
sucessos de Portugal. Não
pode ignorar que a revolução, comprimida mas não extinta, no centro da
Europa, rompeu para as extremidades, destas forceja sempre para reverter
ao centro. Não lhe são ocultos os dois focos que a revolução
estabeleceu, um na Grécia outro em Portugal, para onde têm concorrido ou
onde conservam correspondências os revolucionários dos outros países e
nos quais, como em arsenal comum, forjam as armas e concertam planos para
um ataque geral. A
política europeia conhece o perigo e prevê qual seria o funesto
resultado de se deixar de novo atear o incêndio que tanto custou a
apagar. Nem os reis nem os povos já se enganam com essas brilhantes
quimeras com que o filosofismo moderno oculta os seus crimes. Não os
ilude essa afectada filantropia que, com a doçura na boca e o fel no coração,
anda sempre enfartada em ódios, em vinganças e sequiosa de sangue e lágrimas,
nem tão-pouco as pretendidas luzes do século, que, semelhantes às que
precedem o trovão, bem longe de alumiar cegam e despedem raios que
abrasam. Não
falarei da Grécia, onde a causa da religião e da humanidade parece
encontrar de alguma sorte as vistas da política. Lá marcham na direcção
do Bósforo essas grandes massas de força armada que ameaçam cenas as
mais sanguinárias que as dos memoráveis dias de Catarina e Mustafá:
elas porão claro o que ainda me é oculto. Quanto
ao foco de Portugal, os soberanos aliados têm visto as lavas que produziu
a nossa erupção vulcânica de 1826 e estão vendo as que ainda vomitam
as cavernas do Porto. E poderá alguém acreditar que eles queiram ser os
próprios que aticem o fogo para um dia os abrasar? A
Europa tem os olhos fixos em Portugal e não pode deixar de aplaudir a sábia
e magnânima resolução que tomou de firmar o ceptro português sobre as
ruínas da revolução, do que depende a segurança de todas as
monarquias. Quando
Vossa Alteza Real desembainhou pela primeira vez a espada a favor desta
causa, o duque de Angoulême trabalhava em Espanha no mesmo sentido, à
frente dos exércitos franceses e com o apoio da grande liga europeia.
Como poderiam, pois, os soberanos aliados desaprovar hoje o que então
aprovaram e protegeram? Tão depressa se teriam esquecido do grande serviço
que Vossa Alteza Real fez à causa dos reis e dos povos, serviço que eles
tanto reconheceram, admirando o valor e resolução heróica de Vossa
Alteza Real em anos tão juvenis? Como poderão pôr-se agora em contradição
com as máximas que com tanta solenidade adoptaram fundando um novo equilíbrio
em Viena e estabelecendo em Tropau, em Laibac e em Verona, como regulador
de sua política, o princípio da legitimidade, que tanto têm proclamado
em seus manifestos e nas notas diplomáticas de seus ministros? A
rebelião também proclama a legitimidade para com este nome pretextar seu
crime, mas é uma falsa legitimidade, fundada em sofismas e que os mesmos
rebeldes nem acreditam nem desejam. E poderá alguém conceber que a política
europeia esteja mais bem disposta para ouvir os sofismas de uns poucos de
facciosos do que as razões sólidas da nação unida ao seu príncipe? Se
a Europa não tivesse conhecimento do nosso direito público e das nossas
leis fundamentais, por não ter ouvido senão aqueles que tinham interesse
em lhas ocultar, agora será mais bem informada por documentos tão autênticos
como os que vão oferecer-lhe os três estados do reino representando em
cortes a nação inteira. Por eles formará a Europa o seu juízo
imparcial sobre a nossa questão, que os emissários da facção tanto têm
desfigurado nos países estrangeiros com calúnias e sarcasmos publicados
nos escritos dos seus colaboradores e principalmente nos papéis radicais
da Grã-Bretanha. Não
é própria do presente discurso a discussão dos direitos de Vossa Alteza
Real à coroa de Portugal, mas eu vou estabelecer alguns princípios para
o caminho às deliberações do Congresso, antes que se separem os
diferentes braços. Os
ilustres fundadores da Monarquia estabeleceram em Lamego como fundamento
da ordem da sucessão do reino que a coroa nunca passasse a pessoa
estrangeira - quia nunquam volumus nostrum
Regnum ire for de Portugalensibus,
qui nos sua fortitudine Reges fecerunt Bine adjutorio alieno per
suam fortitudinem, et cum sanguine suo. Os
ilustres restauradores de 1640, para corroborarem ainda mais esta lei
fundamental, propuseram outra nas Cortes de 1641 para que não só a coroa
nunca passasse a príncipe estrangeiro, nem filhos seus, ainda que
fossem os parentes mais chegados do último rei, mas que aquele que
houvesse de suceder no reino, além de ser nascido fosse também criado
nele, palavras do capítulo do estado da Nobreza, para conhecer
seus vassalos e os amar como tais, e tivesse obrigação de residir
dentro dele, e acrescentaram que acontecendo suceder o rei em algum outro
reino ou senhorio maior, fosse obrigado a residir sempre no de Portugal; e
tendo dois ou mais filhos varões, o maior sucedesse no estranho e o
segundo no de Portugal. Toda
esta doutrina foi aprovada pelo senhor rei D. João IV, nas suas respostas
aos respectivos capítulos dos três estados, e colectivamente ratificada
na sua carta patente de 12 de Setembro de 1642, e por consequência também
constitui uma lei fundamental do Estado, que o próprio rei não podia
alterar sem o consenso da nação. Que
diriam, pois, os fundadores e os restauradores desta monarquia, se fossem
presentes, vendo a injúria com que se tem querido tirar a coroa a Vossa
Alteza Real para se entregar com tão manifesto prejuízo e repugnância
da nação a um príncipe não só estrangeiro, porém residente e
estabelecido com um império além do Atlântico? O
direito à coroa não se devolveu para o legítimo sucessor senão no
momento fatal em que expirou o senhor D. João VI, porque esta é a regra
em todas as sucessões. E a este momento não estava já reconhecida, bem
ou mal, a independência do Brasil e o senhor D. Pedro investido no império
por sua livre escolha e vontade? Aquela
previdente cláusula de que se usou nas cortes de Lamego - nunquam
volumus nostrum Regnum ire for de Portugalensibus - entendida no seu
sentido natural e não segundo os ápices de direito de que de certo não
cogitavam os fundadores da monarquia, que não eram letrados, exprime bem
a sua intenção. Quiseram que nunca tivéssemos rei que não fosse do
reino e não estivesse entre nós e que a coroa jamais saísse de
Portugal, e eis aqui bem claramente excluído o senhor D. Pedro e nele
toda a sua descendência e a coroa devolvida ao imediato, que é Vossa
Alteza Real. Porém, ainda entendida a mesma cláusula no rigor jurídico,
o seu efeito é sempre o mesmo. A
qualidade de nacional ou estrangeiro, segundo o direito público universal
e o particular do nosso reino, deriva-se mais do estabelecimento do que do
nascimento, à maneira do que se acha determinado a respeito dos direitos
de vizinhança pela Ordenação, liv. 2.º, tit. 56 – todo aquele
que se estabelece em país estrangeiro e nele aceita empregos públicos
(quanto mais um império!) fica sendo estrangeiro ao país em que nasceu.
Neste caso se acha o senhor D. Pedro que não podia ser imperador do
Brasil sem ser brasileiro nem ser brasileiro e ao mesmo tempo português,
residente e estabelecido no Brasil e ao mesmo tempo em Portugal, pois são
qualidades repugnantes. Logo
o senhor D. Pedro nunca chegou a ter direito à coroa de Portugal, e não
o tendo, não o podia transmitir a sua augusta filha, a senhora Dona Maria
da Glória, nem por cessão nem por direito hereditário. Não por cessão,
porque ninguém pode ceder a outrem uma propriedade que não é sua, e
muito menos um reino, que não é propriedade alodial de que se possa
dispor livremente contra a ordem regular da sucessão. Não por direito
hereditário, porque as Cortes de 1641 excluíram da sucessão da coroa não
só a qualquer príncipe estrangeiro, mas conjuntamente os filhos dele.
Interrompida no pai a linha, interrompida fica para toda a sua descendência. Somente
a lógica revolucionária poderia achar na sua falaz verbosidade
argumentos que opor à simplicidade deste raciocínio; mas não é de seus
paralogismos que dependem os direitos de Vossa Alteza Real e os destinos
da heróica nação portuguesa, que depois de constituída em monarquia
jamais recebeu leis de país algum estrangeiro senão compelida por força
maior no tempo dos Filipes, resílio. Se
se levantassem de seus túmulos aqueles varões assinalados que à custa
do seu sangue tanto engrandeceram esta monarquia, conquistando reinos e
colonizando regiões imensas, que dor, que indignação seria a sua, vendo
entre os seus descendentes alguns desses, portugueses degenerados que têm
a baixeza e o servilismo de requerer sujeitar a metrópole, esta rainha
dos mares, a receber as leis de uma das suas colónias! A uma colónia que
se rebelou, que lhe fez a guerra, que lhe tem apresado seus navios,
usurpado as suas propriedades e tratado os portugueses com tanta ignomínia
como trataria os seus escravos! Oh! tempos! Oh! costumes! Porém
outros são os seus fins. Eles não querem rei, nem natural nem
estrangeiro; não querem leis, nem da metrópole nem da colónia. O que
eles querem é um rei nominal que esteja a duas mil léguas de distância,
que não tenha força para obstar às suas maquinações e de que se
possam descartar num momento. O que querem primeiro do que tudo é desviar
do trono a Vossa Alteza Real, porque conhecem os sentimentos e as virtudes
de que se adorna e já provaram o valor do seu braço; pois esta facção
é a mesma e até surgiu dos mesmos subterrâneos que a de 1820. Eis
aqui a razão porque eles tanto se têm esforçado para evitar a reunião
dos três estados, prevendo que lhes havia de ser fatal. Proclamadores
sempiternos dos direitos do povo e da representação nacional, logo que o
povo manifesta os seus desejos por aclamações espontâneas tratam de o
sufocar e sujeitar a seus caprichos. Logo que se cogita de reunir a legítima
representação nacional, segundo as leis e usos da monarquia, não há
meio que não empreguem para obstar a esta reunião, como fizeram em 1820.
Invocam hoje a Carta como naquele tempo invocaram as Cortes e afectaram
chorar a perda de nossas antigas instituições, porque lhes serviria de
degrau para proclamarem amanhã a república, como então proclamaram a
soberania do povo. Veja,
porém, o mundo como a nação portuguesa já os conhece e abomina. É uma
facção puramente militar, o que muito agrava o seu crime, e como os
chefes são militares, arrastou às suas bandeiras uma parte do exército,
ou seduzida ou obrigada pela força; mas nem uma só povoação entrou no
seu partido senão aquelas que têm ocupado militarmente. De
todas as partes se ouve um clamor geral contra os rebeldes; formam-se
batalhões de voluntários, pedem-se armas e os povos se levantam em massa
e fazem uma montaria geral não só contra os rebeldes armados, mas contra
todos aqueles que suspeitam de aderentes aos princípios da seita. Desgraçados
se não achassem amparo em Vossa Alteza Real, e nas autoridades a que
Vossa Alteza Real tem encarregado de manter a tranquilidade pública! Segui-me,
proclamou Vossa Alteza Real ao exército, determinando colocar-se à sua
frente. Segui-me e nunca trilhareis outra estrada que não seja a da
honra. Estas palavras, de cuja sinceridade Vossa Alteza Real tem dado
decididas e antecipadas provas, são bem semelhantes às daquele grande
rei de França, Henrique IV, que teve de conquistar com mão armada o
ceptro, que lhe pertencia pela lei sálica, quando disse aos seus soldados
na batalha de Ivry - Se perderdes as vossas bandeiras, reuni-vos ao
penacho branco; sempre o achareis no caminho da honra e da glória! Quando
no calor do combate viu que os seus se encarniçavam sobre os vencidos,
ele lhes bradou: Salvai os franceses! Dada a ocasião estou certo
de que Vossa Alteza Real bradaria também: Salvai os portugueses!,
porque a humanidade, que depois da justiça é a primeira das virtudes que
deve ter um príncipe, fala ao coração de Vossa Alteza Real. Mas tanto não
há-de ser necessário, porque diante do exército marcha o nome de Vossa
Alteza Real, e este nome augusto tem imprimido tanto entusiasmo nos povos,
tal amor nos soldados e tão grande terror nos ímpios que eu me animo a
predizer a Vossa Alteza Real que há-de ganhar o triunfo sem ser necessário
combater. Henrique
IV, dedicando todos os seus cuidados a reparar a França, disse à
assembleia dos notáveis congregada em Royen: Já pelo favor do céu, e
pelo conselho dos meus fiéis servidores, e pela espada da minha valorosa
nobreza eu tirei este estado da escravidão e da ruína. Quero
restituir-lhe a sua força e o seu esplendor; participai desta segunda glória,
assim como tivestes parte na primeira. Outro tanto poderia Vossa
Alteza Real dizer mui breve aos três estados do reino, porque a primeira
glória está ganha, resta agora ganhar a segunda, que é a mais difícil. Dissolvidos
os vínculos sociais que uniam o soberano ao Estado, e as diferentes
partes do Estado entre si, dissipadas as nossas riquezas e com elas a
nossa consideração e força, obstruídos ou extintos os canais por onde
elas nos vinham, despedaçada enfim a monarquia e o espírito revolucionário
contrariando todos os projectos de útil melhoramento, que fadigas, que
trabalhos não são necessários para curar chagas tão profundas? Multum
maris oequor est arandum. Reunir
e tranquilizar a nação firmando o trono sobre bases tão sólidas que o
tempo as respeite, que as facções as não abalem, é o primeiro passo
que se deve dar para não para edificarmos sobre areia. A deliberação
dos três estados facilitará a Vossa Alteza Real este primeiro passo para
progredir sem obstáculos na imensa carreira em que vai entrar. No
mesmo estado de desgraça achou Henrique IV a França e em poucos anos ele
a fez um dos reinos mais florescentes da Europa. Porém não continuarei o
paralelo entre Vossa Alteza Real e um rei estrangeiro, havendo tão
grandes modelos dignos de se imitarem entre os monarcas portugueses. Quando
o senhor D. João I subiu ao trono, também o reino estava assolado pelos
partidos e pela guerra civil e estrangeira, um exército inimigo ocupava
ainda a melhor parte das províncias e a coroa de Portugal não possuía
um palmo de terra além do mar. Pode dizer-se que aquele monarca não
tinha outros recursos senão os do seu génio e da fidelidade daquela
parte dos portugueses que o não tinha abandonado. Mas ele soube pôr em
tal ordem os negócios do Estado, e tirar tais recursos das ruínas de
Portugal, que com eles conseguiu organizar aquele exército e aquela
poderosa armada com que foi humilhar na África o orgulho maometano, e
tomar Ceuta, abrindo a porta à série imensa de conquistas que os seus
sucessores continuaram, e de que veio a formar-se aquele majestoso império
que se prolongava desde o Cabo da Roca por uma parte até à China e até
às ilhas de Maluco, e pela outra até os remotos sertões da América além
do rio das Amazonas, além do Uruguai. Na
mesma idade juvenil de Vossa Alteza Real, que Deus prospere por longos
anos, começou o senhor D. João I a sua gloriosa carreira, e que dignos
exemplares tem Vossa Alteza Real nele e na sua ditosa prole para ilustrar
seu nome e engrandecer a nação? Vossa
Alteza Real não é menos amado do seu povo, que o há-de auxiliar com
todas as suas forças, e ainda vejo ao redor do trono os descendentes
daqueles antigos varões que domaram a África e avassalaram o Oriente. O
sangue que lhes corre pelas veias os estimulará a que no serviço de
Vossa Alteza Real, e da pátria, procurem imitar o nobre exemplo dos seus
ilustres progenitores. Nenhuma
nação da Europa, excepto a Grã-Bretanha, possui tantos domínios
ultramarinos como ainda restam à coroa de Portugal, na Ásia, na África
e nas ilhas do Atlântico. Se, pois, o estado actual do mundo civilizado
nos não permite a esperança de voltarmos àqueles gloriosos tempos em
que as nossas armas levavam o terror mais longe do que o levaram as
falanges da Macedónia, as legiões romanas e os alfanjes dos árabes, àqueles
tempos ditosos em que as nossas frotas conduziam a Portugal o ouro dos
reis tributários e as riquezas da Ásia, da África e da América,
podemos ainda formar dos despojos daquele império um reino florescente,
que ombreie com as nações mais opulentas. Ainda
que as virtudes guerreiras são as que ilustram qualquer nação, não se
segue que sejam as que a fazem mais feliz. Debaixo dos auspícios de
Minerva e no exercício tranquilo das artes pacíficas, ganha-se uma glória
mais sólida do que aquela que se adquire nos campos de Belona à custa de
sangue humano. E que outro admirável modelo se oferece a Vossa Alteza
Real no brilhante reinado do senhor rei D. José para alcançar esta
verdadeira glória? Das
cinzas de uma cidade arruinada levanta-se esta soberba capital; tira-se do
nada um exército, uma marinha respeitável e um comércio florescente.
Estabelecem-se numerosas fábricas num país onde a indústria tinha
acabado e as artes brilham por toda a parte. Enriquece-se o tesouro público,
de um povo pobre forma-se uma nação opulenta, e o trono, que as
vicissitudes do tempo tinham eclipsado, aparece de repente com o seu,
antigo esplendor a ocupar o lugar que lhe pertence entre os tronos da
Europa. Vossa Alteza Real lhe dará ainda um novo lustre prosseguindo na
carreira que tem começado. Firme-se Vossa Alteza Real nesse trono excelso, e faça feliz a nação que o adora! Generose Princeps, sic itur ad astra*.
*
A última frase é uma citação da Eneida de Virgílio, linha 641
do canto nono, uma frase dita por Apolo a Iulo, ou Ascânio, filho de
Eneias: "É assim que nos elevamos para as estrelas". |
Fonte : «Discurso proferido na qualidade de procurador letrado pela cidade de Lisboa na Junta dos Três Estados [1828]» in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, vol. 6, Cartas de um Português aos seus concidadãos sobre diferentes objectos de utilidade geral e individual e Escritos Diversos», Lisboa, Edições Afrontamento,
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