Latino Coelho

Latino Coelho

DISCURSO DE LATINO COELHO.

 

Discurso de Latino Coelho na Câmara dos Deputados em 28 de Março de 1855, durante a discussão de uma nova Lei de Recrutamento.

 

Latino Coelho, tenente de infantaria, lente substituto da cadeira de mineralogia e geologia na Escola Politécnica, eleito deputado nas listas do Partido Regenerador nas eleições suplementares de 1854, conhecido jornalista, sócio da Academia das Ciências de Lisboa, fez aqui o seu primeiro discurso sobre um assunto a que não podia deixar de dar a sua opinião, o recrutamento militar.

O discurso sobre o problema de qual seria a solução a dar aos refractários, leva Latino Coelho a defender, de uma maneira clara e brilhante o princípio liberal da responsabilidade individual, contra a proposta da lei que defendia a responsabilidade colectiva - neste caso paternal - de apresentar os recrutas refractários.

O discurso que foi muito bem recebido levou José Estêvão a propor imediatamente a modificação do texto do artigo.

 

«A carta constitucional da monarquia estabeleceu que a pena não passaria nunca da pessoa do delinquente,  e nesta afirmação condenou imediatamente o princípio de que alguém pudesse ser responsável pelas acções dos outros.»

 

Sr. Presidente, não é sem alguma repugnância que eu vou aventurar algumas reflexões sobre o artigo que se acha actualmente em discussão, e esta repugnância é justificada, porque vejo que esta questão apresenta com tais feições de uma de uma questão puramente jurídica, se apresenta de tal maneira transformada de questão penal em questão civil, (Apoiados.), que me parece à primeira vista, ser-me este assunto defeso, porque a especialidade dos meus estudos e da minha profissão, até certo ponto, me tornam estranho às discussões propriamente jurídicas.

Logo no principio do relatório que precede este artigo eu vejo aparecerem dois textos latinos que estão aqui postos à entrada nesta questão, como para incutirem um certo temor religioso, para afugentarem, de alguma maneira, da discussão, aqueles que pela natureza verdadeira desta questão parecerão até certo ponto competentes para a resolver, embora lhes faleçam os auxílios que presta aí a jurisprudência a todas as questões desta natureza (Muito bem.)

Se eu não tivesse receio de ofender o nobre deputado que elaborou o relatório que precede este artigo; se não tivesse receio de ofender a sua susceptibilidade, (O Sr. Nogueira Soares: - Não ofende.) atrever-me-ia a dizer, que estes dois textos que enunciam umas orações escritas em latim, que não é da mais severa latinidade, não teria dúvida em afirmar que são como duas esfinges, colocadas no vestíbulo da questão, para afugentar dela todos aqueles que quisessem tratá-la. (Muito bem - Apoiados.)

Eu vejo este relatório tão eriçado de citações latinas, de textos jurídicos, de citações de códigos e de praxistas 1, que se não fosse, não digo a minha coragem, porque essa é tímida mas o sentimento de um dever de manifestar à câmara os meus princípios nesta questão, eu teria cedido da palavra quase recuando diante da intimação dos textos latinos, das citações dos doutores, e dos comentários de Rogron. 2

Há ainda outra razão que parecia de alguma maneira concorrer para que eu não entrasse no exame deste assunto, e é, a origem da proposta primitiva que deu origem ao eruditíssimo relatório que precede o artigo. Todos sabem que esta proposta original partiu do meu nobre amigo o ilustre deputado o Sr. José Estêvão 3, e parecia que eu não deveria apresentar-me a falar pela primeira vez nesta câmara para contrariar um artigo que tinha sido redigido com tanto entusiasmo e zelo pelo meu nobre  amigo e numa ocasião em que a proposta sua tinha sido rejeitada por esta câmara. Parece que, em vista das relações de cordialidade, de simpatia que me ligam com aquele cavalheiro, eu deveria abster-me de contrariar uma proposta que partira da sua iniciativa. Mas eu creio inútil, e mesmo supérfluo explicar ao meu nobre amigo, que não posso estar de acordo com a sua opinião, senão porque a proposta do ilustre deputado repugna às minhas ideias, e não só por isto, mas porque a não acho consentânea aos bons princípios. E eu entendo que, por muito respeitável que seja a autoridade do nobre deputado, por muito valiosos que sejam para mim os laços de amizade, estima e consideração que tenho para com ele, entendo que a autoridade cessa todas as vezes que uma ideia que dela parte é repugnante com a razão, e que nenhuns laços de amizade, estima e consideração devem prender-me desde o momento em que a manifestação de uma doutrina está em manifesta oposição com a minha consciência. (Apoiados - Muito bem.)

Ora, parece-me que deveria começar as poucas reflexões que tenho a fazer pela filiação da proposta. O nobre deputado, o Sr. José Estêvão, quando se tratava de punir severamente os que dessem asilo aos refractários, propôs, com motivos porventura muito justificados, e muito justificáveis, que se não fosse menos severo com os pais que auxiliam a fuga dos refractários, do que com todas as pessoas com quem eles não estivessem ligados pelos laços e pelas afeições de parentesco.

Suposto que esta doutrina esteja em oposição imediata com a brandura dos nossos costumes, com a santidade das relações que prendem os pais com os filhos, eu atrevo-me a dizer que esta proposição poderia ser justificada pelo nobre zelo que o ilustre deputado manifesta, de que a lei, depois  de ter sido firmada nos princípios da mais sólida e da mais rigorosa justiça, contivesse em si todas as garantias de que ninguém, por qualquer título que fosse havia de ser isento de cumprir as condições indispensáveis para o inteiro cumprimento do fim a que a lei se destinava.

Eu não me conformei, e não me conformo agora com esta ideia, mas combatendo-a, de certo que não arrogo censura imerecida ao nobre deputado, e seja-me permitido dizer, que por muito grande que seja a sua inteligência, por muito elevados e brilhantes que sejam os dotes do seu magnífico talento, esta mesma doutrina que eu combato é como que uma excepção que se apresenta à regra geral, porque, digamos com franqueza, não há inteligência, por mais vigorosa e esclarecida que seja, em que não apareça uma ocasião em que esteja dormitando.

Eu diria ainda, que se quisesse desviar de mim qualquer nota de apresentar uma censura, se quisesse justificar-me de apresentar-me em combate com o meu nobre amigo, colega no magistério da mesma escola, colega na imprensa, colega nesta câmara, eu poderia dizer ao ilustre deputado, que estou autorizado a afastar-me das suas ideias, pela mesma natureza e pela própria índole dos princípios liberais que nós professamos: o ilustre deputado e a câmara sabem perfeitamente, que a maior excelência, o título mais valioso da escola politica em que temos comungado, é a liberdade ampla das opiniões, combinada com o consenso expresso a um certo número de princípios gerais, de que depende a resolução das questões mais graves da organização politica e da organização social do país.

Nestas questões eu declaro ao ilustre deputado, que hei-de sempre militar debaixo das suas bandeiras, e que, já que não posso ser nunca um campeão que me faça recomendar pela distinção dos meus serviços, ao menos conte o ilustre deputado, quando entrar nestas campanhas pela liberdade, pela civilização e pelo progresso, por tudo o que tender a realizar os princípios do nosso credo politico, que eu me honrarei de marchar ao lado de tão nobre cavaleiro, e de lhe servir, ainda que não seja mais do que na condição de pajem.

A ideia contida no artigo que se acha actualmente em discussão parece-me ser uma ideia não só contrária ao direito natural, às ideias mais simples e mais rudimentares da justiça universal, mas ainda expressamente contrariada pela lei fundamental, pela qual nós devemos aferir tudo aquilo que fizermos em matéria legislativa.

Parece-me que não é muito difícil, parece-me que não é necessário folhear muito os praxistas, nem os comentadores do direito público, para ver (pela simples intuição) que este artigo é uma verdadeira infracção, é uma violação flagrante e injustificável da carta constitucional. (Apoiados.)

Sr. presidente, a carta constitucional da monarquia derrogou a antiga legislação a este respeito, estabelecendo que a pena não passaria nunca da pessoa do delinquente, (Vozes: - É verdade.) e nesta afirmação condenou imediatamente o princípio de que alguém pudesse ser responsável pelas acções dos outros. Mas os ilustres deputados que têm defendido o artigo, vão socorrer-se a uma distinção que, para mim, é cerebrina 4 e casuística, de que neste caso não é uma pena que se impõe, mas um dano que se repara. Eu vou esforçar-me, vou envidar as poucas forças de que posso dispor neste debate, para provar que há aqui uma verdadeira pena, e não dano civil, como o ilustre relator quis demonstrar, acumulando citações de leis e de códigos, desde a lei das Doze Tábuas, até aos códigos mais modernos. Ninguém nega, ninguém pode negar, que esta qualidade de refractário é um crime, é uma qualidade criminosa, e isto antevê-se e prova-se pelo simples bom senso, e pela simples intuição. O ser refractário é abandonar a defesa da pátria, é fugir a um encargo que a sociedade impõe ao indivíduo em benefício comum, é desamparar o serviço mais importante, mais grave, mais perigoso que se pode impor e encarregar ao cidadão. Por consequência, todas as vezes que alguém, depois de ter sido chamado ao sorteio, depois de ter contraído de uma maneira solene a obrigação de servir o estado na profissão das armas, faltar às prescrições que ordenam que vá reunir-se ao depósito, para marchar depois ao juramento das bandeiras, e se recusar a estas prescrições, é necessariamente criminoso. Ora, ainda eu posso corroborar, e posso demonstrar este meu acerto, recorrendo aos artigos que já se acham votados. Esta lei tanto considerou a qualidade de refractário como crime, e não como simples dano civil que se causava ao estado, que nós estivemos aqui discutindo e votando uns artigos que, se bem me lembra, vinham até assinalados pelas letras do alfabeto, nos quais se impunham cominações rigorosas contra aqueles que incorressem neste crime de refractário (Apoiados.) Ora, desde o momento em que nós estivemos aqui votando penas para os refractários, reconhecemos a qualidade de refractários, reconhecemos a qualidade de refractário como crime.

Mas ainda se pode por argumentos especiosos vir confutar esta demonstração, e apresentar de novo o refractário como causando simplesmente um dano civil. Ora, Sr. presidente, eu peço a V. Ex.ª e à câmara, que notem a contradição flagrante em que o relatório, em que o artigo estão plena e abertamente neste assunto. Se há um dano civil para o estado, e não um crime manifesto, é claro que há também um dano, e um dano considerável, para um cidadão, que inocentemente, e sem faltar às obrigações que o estado lhe impõe, vai servir em lugar daquele que foge aos encargos militares. Ora, pergunto eu: se o relatório, se a comissão, se o artigo entendem que há um verdadeiro dano nesta subtracção ao serviço militar, qual é a razão por que não se há de também reparar o dano ao suplente, que é aquele que é unicamente lesado, porque o estado esse não é lesado, o estado lá vai buscar o suplente aonde o pode encontrar? (Apoiados.)

O Sr. Nogueira Soares: - Não é assim.

O Orador: - Dizer unicamente o ilustre deputado que não é assim, não me parece que seja uma razão inteiramente convincente.

O Sr. Nogueira Soares: - Se a câmara consente, dou-lhe a razão em duas palavras. (Vozes: - Não, não; não interrompa.)

O Sr. Velez Caldeira: - Não se deve interromper o orador, principalmente sendo a primeira vez que fala.

O Sr. Nogueira Soares interrompeu o orador, para lhe dar urna explicação, que não foi ouvida.

Ah! Mas pergunto eu, o suplente deixa de servir? Não. O ilustre deputado concede-me que o suplente tem servido. Ora, quem é que paga o dano causado ao suplente em servir, por exemplo, seis meses, dois, três, um dia? Aqui é que está a questão. (Apoiados - Muito bem. (O Sr. Carlos Bento: -Tem toda a razão.) O ilustre deputado diz-nos «O estado não é lesado, não é danificado, mas é unicamente o suplente.» Ora, como o suplente é ordinariamente um homem que tem pouca acção contra o refractário, como as leis deste país não dão acção individual de uns para outros homens, quando um individuo se julga lesado vai ter com o estado (o estado é uma espécie de procurador de causas), e diz-lhe: «Fazei favor de me solicitar a minha justiça;» (parece-me que o ilustre deputado não pode assentar este principio, porque, a ter de o assentar, há de generalizá-lo para os outros casos, e então realizava na justiça aquele princípio que certos socialistas, e principalmente Luis Blanc 5, queriam realizar para o trabalho; o estado, segundo eles, era uma espécie de empreiteiro comum, que procurava trabalho para os cidadãos; o ilustre deputado, parodiando os socialistas, pretende fazer do estado um vasto escritório de advogado e de procurador); quando um suplente se julgar lesado vai ter com o estado, e diz-lhe: «Faça favor de me ir buscar o cidadão refractário, não para que ele me pague coisa nenhuma, porque hei de ficar pobre como Job, como era dantes, mas unicamente para que ou possa ir para casa depois de ter servido seis meses, e de me ter arrastado pelas tarimbas em quanto o refractário, que não é punido com isto, andava a monte, talvez a exercitar-se na caça!..» (Vozes: - Muito bem.)

Sr. presidente, eu admitia que o relatório, e que o artigo tivessem estabelecido o princípio do dano civil, mas então era preciso aplicá-lo em toda a sua extensão; apresentar o princípio do dano civil, reconhece-lo, e depois, não tirar dele todas as consequências, parece-me uma incongruência. Então a lei espanhola neste ponto é muito mais lógica, muito mais coerente, muito mais liberal (porque, é preciso dizer-se, não há talvez lei mais liberal que a espanhola), era nisto mais congruente com os bons princípios, impondo ao refractário uma pena pelo crime que ele tem cometido para com o estado, e deixando não só livre ao suplente a acção contra o refractário, mas obrigando o refractário a indemnizar o suplente pela forma prescrita naquela lei. (Apoiados - e apartes.) Ah! Pois eu proponho, hei-de logo concluir mandando para a mesa uma substituição neste sentido. (O Sr. José Estêvão: - Bom, bom.)

Eu, cada vez que olho bem, não só para este relatório, mas para o artigo porque ele conclui, parece-me impossível que os ilustres deputados que o defendem não se achem envolvidos a cada passo em uma série de absurdos e contradições de tal ordem, que não sejam  demovidos do propósito de sustentarem aqui, com todas as forças do seu talento, semelhante doutrina, e especialmente quando, antes mesmo da discussão, eles tinham já, por assim dizer, uma votação contrária nas conversas particulares e nas fisionomias carrancudas com que a maior parte dos seus colegas receberam a leitura deste artigo. (Riso.) Eu vou, pois, continuar nesta ceifa de absurdos, e, permitia-se expressar-me assim, porque eles são tantos, germinam aqui com uma tal abundância, que eu, se quisesse cansar a câmara, ou se me dessem liberdade e largueza para estar aqui demonstrando todas as monstruosidades deste artigo, declaro que teria ampla matéria para um curso. (Riso.) Este artigo, além de ser contrário à carta constitucional, e contrário ao direito comum, e ouso avançar esta proposição, porque, apesar de não ser jurisconsulto, posso autorizar-me, e hei-de autorizar-me logo com o testemunho de exímios jurisconsultos que se sentam na câmara, e cujo voto não pode ser suspeito; este artigo, permitia-me o ilustre deputado que lhe diga, é imoral, e é imoral porque tacitamente impõe aos pais a obrigação, o encargo de virem eles mesmos denunciar seus filhos à autoridade pública, como refractários, para se não verem depois obrigados a ir empenhar todos os seus móveis e todos os seus bens, para solverem a multa a que a lei os sujeita, enquanto o refractário anda fugido e não tem entrado no exército e prestado juramento às bandeiras. Eu vou ler o artigo, porque preciso ver qual é a interpretação rigorosa que se lhe deve dar. (Leu.)

Já se vê que impõe uma pena, e impõe uma pena por um crime; ora, quando uma lei impõe uma pena, não só tem por fim punir o crime depois de cometido, mas é ainda como uma espécie de aviso que se dá a todos, para que procurem fazer exactamente o contrário que se castiga pela lei; e qual é aqui o contrário do que se pune em virtude da lei? É exactamente obrigar os pais a recatar os mancebos que são recenseados, a tê-los em cárcere privado durante as operações do recenseamento, e não lhe deixar o menor resfolego ou respiro para que eles não possam fugir, sendo sorteados; e não será isto o pátrio poder dos romanos? É, de certo, com a excepção de que o pátrio poder romano dava o jus vitae et necis 6 ao chefe da família, e de que não se permite agora ao pai o matar o filho, porque então seria este o meio de se livrar da multa, e de privar a nação do soldado que ela procurava. Pois nesta disposição não se obriga os pais a apresentarem os filhos, e trazê-los às autoridades, a recatá-los, a tê-los em cárcere privado, não só durante o sorteio, mas durante as operações do recenseamento, porque o filho pode ser bastante sagaz para perceber que se trama contra ele querendo-o obrigar a servir, e para se livrar desse encargo, porque para ele é um verdadeiro encargo, e acautelar-se a tempo fugindo; mas deve por isso estabelecer-se aqui semelhante preceito? Eu creio que uma lei justa, humanitária e equitativa, sem sacrificar os legítimos interesses do estado, o mais que pode fazer, é, na ocasião do recenseamento, impor aos pais, parentes, e demais pessoas com quem residam os mancebos, que estejam no caso de ser recenseados, a obrigação de darem as listas, para provarem a idade dos mancebos, e as razões que podem ter para provar se eles são ou não aptos para o serviço militar; se fosse isto que determinasse o artigo, muito bem; quereria mesmo que se dissesse: - todos aqueles que subtraírem os mancebos ao recenseamento ou sorteio, incorrerão nesta ou naquela pena; - mas depois do mancebo estar sorteado, dizer ao pai: - trazei cá o vosso filho – nunca se fez. (Apoiados.)

Há na Bíblia um caso que tem para aqui alguma aplicação, e que peço licença à câmara para citar. Abraão, que não era um homem corrompido, como são todos os homens, segundo a teoria do Sr. Nogueira Soares, era um patriarca, um homem justo; pois Deus para experimentar a piedade, o amor, o respeito, e a devoção sem limites deste patriarca pela autoridade divina, disse-lhe: «Abraão, trazei-me cá o vosso filho, porque quero que mo ofereçais em sacrifício;» aquilo era uma espécie de recenseamento; (Riso.) pois Abraão, que era um homem justo, obedeceu e apresentou o filho ao sacrifício; mas o que aconteceu? É que Deus foi muito mais clemente e misericordioso do que a autoridade deste artigo, porque quando a secure 7 estava para ser vibrada ao colo do infeliz Isaac, apresentou-lhe Deus o suplente. (Riso.) Ora, quando a Bíblia nos não apresenta um só exemplo destes, quando nós vemos que Deus foi tão misericordioso que não consentiu que um pai, obedecendo aos seus preceitos divinos, apresentasse seu filho ao sacrifício cruento, havemos de querer que todos os pais sejam Abraões? (Riso.)

Se eu não receasse cansar a câmara, podia passar dos exemplos bíblicos para os mitológicos e históricos; eu conheço um cavalheiro, a quem me ligam as mais intimas relações de amizade, e que é conhecido em Lisboa por ser muito espirituoso, que gosta muito de contar casos de mitologia, aplicando-os às diferentes circunstâncias da vida actual; e se ele aqui estivesse diria, que, já no tempo da mitologia, a obrigação de entregar os mancebos era uma coisa tão absurda, que nem os entes sobrenaturais se queriam sujeitar a este rigoroso preceito.

Mas parece que para este artigo do Sr. Nogueira Soares é que se fez exactamente a fábula de Aquiles. Aquiles apesar de ser o maior valentão que havia na antiguidade, julgou tão duro esse sacrifício do encargo militar, que quis fugir a ele, e sua mãe, que era uma deusa, (Risadas.) que devia ter uma têmpera mais do que heróica, parecia que devia entregar seu filho ao administrador do concelho; mas não, senhor; fez com que ele se fosse homiziar 8 na corte de um rei vizinho. E que fez a autoridade? Não foi a casa da deusa Tétis 9 pedir-lhe seu filho; mandou a polícia à terra onde ele estava homiziado, usou dos meios de perseguição, mandou lá Ulisses, que era a personificação da sagacidade administrativa, e da polícia secreta daqueles tempos. (Riso.)

Eu podia reforçar estas razões que dei, para provar que a lei é imoral, com muitos exemplos: mas temo cansar a atenção da câmara; (Vozes: - Não cansa, não cansa.) apresentarei contudo algumas razões mais, pelas quais me parece que o artigo deve ser formalmente rejeitado.

A única nação que admitiu este artigo na sua legislação, sobre recrutamento, foi a Espanha. A Espanha, na lei de 1837, sistematizou esta perseguição contra os pais, para que apresentassem seus filhos refractários, porém que aconteceu depois? No tempo do ministério de Bravo Murillo 10 fez-se uma lei de recrutamento, que já foi citada nesta câmara, tive a paciência de a ler, e nessa lei vem já prescrita esta disposição. (Apoiados.) Ora, perguntarei eu, nós que estamos aqui todos os dias assentando como principio, que a Espanha é uma nação mais atrasada do que nós, que a Espanha é o símbolo da barbárie, que é a nação onde os costumes são pouco humanos, onde a lenidade da lei nunca foi conhecida, quando essa nação rejeita uma disposição por bárbara, por absurda, por anti-humanitária, e, mesmo direi, por anti-cristã, havemos nós de aproveitá-la avidamente? Havemos de aproveitar o refugo das legislações estranhas para o ir inserir num código, que se pode considerar, não digo como exemplar na legislação deste género, mas que se deve reputar como um passo considerável na carreira progressiva dos melhoramentos introduzidos nesta espécie de legislação? (Apoiados.) Realmente, se eu não temesse ofender a câmara com coisas que talvez sejam impróprias da gravidade do lugar, e da gravidade do assunto, perguntaria, se acaso este artigo, que foi tirado da lei espanhola, que ficou cessante, como dizem os espanhóis, viria por aí abaixo na última cheia do Tejo, e se imediatamente o agarrámos como um achado precioso? É notável, realmente, que nós vamos com um cortejo de praxistas, levando as doze tábuas na frente, com uma procissão de glosadores e de consultas receber com as honras devidas à sua hierarquia e majestade um princípio obsoleto já na legislação espanhola, que quer passar a nossa fronteira para vir aqui naturalizar-se, para receber a sanção parlamentar! (Apoiados.) Não sei se esta razão poderá fazer alguma impressão no ânimo dos que defendem o artigo, mas parece-me que, ainda quando não houvesse outras razões, esta, por si só, era suficiente para lançar uma presunção desfavorável sobre o artigo que estamos discutindo.

O artigo também estabelece uma desigualdade flagrante entre diferentes classes da sociedade. Os ilustres deputados que defendem o mesmo artigo não têm podido fugir a esta objecção, e o Sr. Nogueira Soares encarregou-se ontem de até certo ponto a atenuar, formulando a questão no campo do sentimentalismo, que é um campo sempre simpático para todos aqueles que querem proteger os proletários, os pobres, os desfavorecidos e desvalidos da fortuna, fazendo recair a maior parte dos encargos sobre aqueles que a fortuna tem melhor aquinhoado.

Ora, Sr. presidente, eu declaro que não me conformo com as razões apresentadas pelo Sr. Nogueira Soares. O ilustre deputado disse-nos «que a sua disposição era altamente democrática» - pois eu declaro que a acho altamente privilegiada, (Apoiados.) e eu não admito privilégios na democracia. A minha democracia admite, como um dos seus princípios, a igualdade perante a lei. Eu não entendo que, se o refractário é criminoso, deixe de ser punido pelo simples facto de não ter bens. Eu entendo mais, que o pai, ou ascendente do refractário, pelo simples facto de ser proletário, não fica desencarregado de reparar o crime, ou o dano conforme querem que comete para a com a sociedade; e nós temos remédio para isto no nosso código penal. Não pensemos ilustres deputados que eu venho propor algum aditamento a um artigo que rejeito in limine 11; mas se eu estivesse nas ideias dos ilustres deputados e da comissão, eu havia de tomar o princípio com franqueza, e havia de estende-lo a todas as conclusões que logicamente nele se contem. O código penal manda pagar as multas, que não podem ser solvidas por quem não tem bens, com a cadeia. Se os ilustres deputados querem estabelecer um artigo que seja igual para todos, é necessário que façam pagar a pena pecuniária ou multa, traduzindo-a numa pena de prisão. (Apoiados.) Eu não sou criminalista, mas creio que o principio é tão claro e de tão simples intuição, que me parece que a posso sustentar sem o temor de que me venham apresentar textos em contrário.

0 Sr. Nogueira Soares disse: «É necessário fazer pesar os encargos sobre os ricos.» Altamente declaro que não me conformo com esta teoria, principalmente quando se trata de crimes. Eu entendo, por exemplo, que o imposto vá ferir especialmente aqueles que são mais favorecidos da fortuna, e, segundo as minhas teorias, não duvidaria mesmo professar a doutrina, por exemplo, do imposto progressivo; mas quando se trata de um crime, eu não reconheço autoridade em ninguém, para vir estabelecer uma diferença de hierarquia e dizer: «Aquele, porque é pobre, porque é plebeu deve ser isento; aquele, porque é rico, porque tem urna prosápia mais esclarecida, deve ser punido.» A minha democracia, a democracia que toda a gente conhece tem por divisa - igualdade, liberdade e fraternidade; - a democracia do Sr. Nogueira Soares, tem por divisa – liberdade, desigualdade e paternidade. -

O Sr. Nogueira Soares citou aqui o exemplo do exército inglês, e apresentou-o como um belo modelo a seguir por todas as nações. Disse-nos que o exército inglês não pesava sobre os exclusivamente sobre aqueles que tinham alguma propriedade; mas eu tenho simplesmente a responder ao ilustre deputado; que já muito antes dessa sua opinião todas as autoridades políticas em Inglaterra eram de opinião contrária, pois se estão queixando todos os dias da sua organização militar, e o exército da Crimeia 12 o tem manifestado, pois se pede que se reforme o modo por que o exército se acha ali constituído. (Apoiados.)

Eu ainda acho uma razão capital para me prevenir contra esta disposição; este artigo vem aumentar necessariamente o número das execuções fiscais; (Apoiados.) que já não são poucas, em resultado dos tributos. Ora, eu entendo, que uma lei para ser liberal, é necessário que levante o maior número possível de barreiras entro o povo e o fisco; (Apoiados.) eu convenho que o fisco intervenha nos casos em que é necessário, mas criar de propósito uma obrigação pecuniária, para ir abrir as portas; pelas quais hajam de entrar os escrivães e a justiça (Apoiados.) com isso é que eu me não posso conformar. Mas diz o ilustre deputado: «Isto não é em relação aos pobres, não se entende senão com os ricos;» mas os ilustres deputados devem lembrar-se, que não há uma raia bem distinta entre os que se podem chamar ricos, e os que merecem a designação de proletários: há homens, que não sendo rigorosamente proletários, têm contudo uma tão pequena fortuna, que pagando o que se determina no artigo, poderio mesmo ficar reduzidos à miséria; e isto já foi brilhante e logicamente desenvolvido pelo ilustre doutor o Sr. Alberto de Morais, pessoa a quem a câmara ouve sempre com a atenção que merece a sua inteligência, e ainda mais do que isso, o bom senso com que S. Ex.ª vê todas as questões, e que sendo um jurisconsulto já longe da idade juvenil, numa idade em que as preocupações jurídicas podem mais no entendimento dos jurisconsultos, é mais juvenil do que outros de menos anos em tudo quanto se refere à aplicação do direito romano e pátrio à redacção das leis, que nos hão de reger no estado presente da sociedade.

Ora, eu reconheço que a câmara já deve estar cansada, ou talvez extenuada; mas eu peco ainda licença para fazer algumas observações, acerca do relatório elaborado pelo ilustre deputada o Sr. Nogueira Soares, cuja autoridade ele de certo não pode declinar; a comissão poderá declinar de si essa responsabilidade, mas o Sr. Nogueira Soares não está no mesmo caso, porque não pode rejeitar e desprezar as suas próprias criações. O Sr. Nogueira Soares, para habilmente se escapar a que a batalha se empenhasse no campo do relatório, formulou uma teoria, que eu, declaro, fiquei admirado de ver estabelecer. O Sr. Nogueira Soares disse: «Uma câmara pode aprovar a conclusão de um parecer, ou de um relatório, sem contudo se conformar com as razões que presidiram à redacção desse parecer.» Esta doutrina foi sustentada, na parte em que o podia e devia ser, pelo meu nobre amigo, que se senta perto deste lugar; mas o Sr. Nogueira Soares não se contentou de a dar como excepção; afirmou-a como regra geral, e disse: «0 relatório pode ser sempre uma série de desconchavos, um amontoado de sofismas; a câmara pode, em certos casos, adoptar as conclusões.» pois o que é um relatório com o seu artigo final? É um raciocínio; se não é um raciocínio, então para que serve? Se um relatório, pois, não é mais nada do que um raciocínio, eu peco ao Sr. Nogueira Soares que ma diga, se se pode asseverar, em boa lógica, que seja possível aceitar a consequência de um raciocínio, rejeitando, em geral, as premissas em que ele assentou? É realmente uma teoria que eu mo posso compreender: nós podemos aceitar a conclusão do raciocínio, e negar as premissas, mas é quando as premissas são sofísticas; (Apoiados.) e, deste modo, o ilustre deputado vem confessar que o relatório é sofístico.

Ora, ainda que a comissão decline a responsabilidade do relatório, eu não posso deixar de pedir por ele estritas contas ao seu autor: S. Ex.ª estabelece aqui duas partes essencialmente distintas e não só distintas, mas são antagonistas; a primeira teoria é a da responsabilidade paterna pelas acções dos filhos; esta conclusão é laboriosamente inferida desde o principio do relatório até este parágrafo em que vem citado o comentário de Rogron. O ilustre deputado, não se contentando com este princípio, ou não se julgando completamente autorizado para sobre ele assentar a sua doutrina, foi estabelecer uma coisa inteiramente contrária, que é o condomínio dos bens paternos. Peço licença para observar ao ilustre deputado, que, posto que eu não seja jurisconsulto, tenho contudo para o confutar as armas, que o ilustre deputado fez a mercê de me dar neste relatório; tenho com que provar que esta parte do relatório está numa completa confusão; estabelece duas responsabilidades, e isso é que nós não consentimos, é contra a teoria das acumulações. (Riso.) S. Ex.ª, como princípio que lhe faz conta as suas conclusões, admite a responsabilidade paterna, mas depois julgando insuficiente o primeiro fundamento (e nisto eu reconheço, que a consciência é sempre superior ao sofisma), foi recorrer a um outro, que talvez, ainda que contrário ao primeiro, poderia estabelecer uma espécie de confusão, e isto para que alguns membros desta câmara, que não fossem jurisconsultos se pudessem convencer, não pela qualidade, mas pela quantidade dos argumentos. Ora para estabelecer a teoria da responsabilidade paterna pelos crimes dos filhos nunca existiu precedente na nossa legislação, senão, segundo eu penso (e nisto terão a bondade de me corrigir, se eu erro, os ilustres deputados), nunca existiu senão na jurisprudência da inquisição e na jurisprudência do tribunal da inconfidência. Parece-me que não há outros casos em que se tornasse o pai responsável pelos filhos. Eu pediria ao ilustre relator da comissão que nos dissesse se foi colher este princípio às leis do marquês de Pombal, se o foi buscar à jurisprudência do santo ofício, porque eu não o encontro em outras leis, e parece-me que será difícil encontrar outros casos em que se imponha aos pais a responsabilidade dos crimes cometidos pelos filhos.

Mas como não era possível encontrar semelhante princípio em outras leis foi buscá-lo por caminhos tortuosos. O nobre deputado barafustou e levou uns poucos de dias a pensar onde encontraria a responsabilidade paternal, e afinal viu que Roma, como terra mais antiga, uma terra durante séculos tão experimentada em todas as fortunas humanas, havia de ter algum remédio contra este achaque, em que o ilustre deputado laborara; e eis aí o ilustre deputado caminhar para Roma. Eu quando vi o ilustre deputado em caminho para Roma, quando se tratava das coisas militares, julguei que ia conferir com aqueles valentes e intrépidos capitães romanos, com os Cipiões 13 e com os Fabrícios  ... 14 e lhes ia pedir conselho, em objecto de tanta magnitude;.mas nada; o nobre deputado chegou lá e foi bater à porta dos decênviros 15, e disse-lises: «Resolvam-me esta dificuldade, esta tese de polpa,»; como disse o ilustre deputado o Sr. José Estêvão; e um dos decenviros veio à janela e disse. em latim assaz bárbaro e ininteligível 16: «Pater-familias uti legasset super familia tutellare suae rei, ita jus esto.» E o mais é que o decenviro não foi de consciência porque lhe disse o texto errado, (Riso.) tirou-lhe a pecunia que era a coisa mais importante que lá havia. (Riso.) Se lhe havia de dar a pecunia deu-lhe a familia.

Nesta peregrinação que o ilustre deputado fez, peregrinação custosa e aventureira pelo campo de todas as jurisprudências só lhe faltou saudar a jurisprudência canónica; e assim como o ilustre deputado o Sr. José Estêvão aqui nos disse outro dia, que negando-se a competência de todos os tribunais, numa questão há pouco debatida nesta casa, ainda esperava ver que este caso fosse levado ao juízo eclesiástico; admira-me me que o ilustre deputado, relator da comissão, não fosse também citar as decretais num assunto puramente administrativo e militar.

Mas o nobre deputado depois de estar em Roma foi para Coimbra, e fiquei admirado e disse comigo - o que irá ele lá fazer? - Pensei que o ilustre deputado ia consultar com aqueles dois doutores, de que também o ilustre deputado o Sr. José Estêvão aqui falou há poucos dias, sobre este caso de polpa.

Tive ideia de que, como Coimbra era um lugar onde abunda a mocidade briosa e robusta, iria lá para ver se ali achava alguém que se quisesse prestar a servir pelos refractários. Mas o ilustre deputado saiu-se consultando os estatutos da universidade para resolver uma questão militar. Realmente parece incrível como o ilustre deputado para uma questão militar foi buscar os estatutos da corporação mais paisana e mais monástica, que fora do estado eclesiástico existe em Portugal, e isto não faço censura à universidade, aludo unicamente ao traje clerical de que ali se usa.

Mas foi-se consultar uma legislação meio fradesca, atendendo aos tempos para que foi legislada, a fim de se resolver uma questão que trata de fazer soldados! E não posso deixar de dizer, que se por esta lei chegarmos a fazer soldados, não foi sem muito custo, e à custa das mais improbas fadigas dos jurisperitos e doutores! Mas depois do ilustre deputado ter compulsado os estatutos da universidade, foi consultar o código civil francês, e achou lá uma coisa que os mesmos autores do código ainda não tinham encontrado, porque tirou do principio que lá vem a consequência de que os pais deviam ser obrigados pelo dano que seus filhos ou descendentes causassem ao estado eximindo-se do serviço militar. Permita-me o ilustre deputado que lho diga, que nisto foi mais francês do que os franceses, (Apoiados.) porque tendo eles em casa esta mina a explorar, e podendo assim tornar muito mais perfeita e eficaz a sua lei de recrutamento, não se lembraram ainda de chamar o auxílio do código civil para os ajudar a dar força às instituições que devem regular a prestação do serviço militar.

0 ilustre relator, depois de ter assentado o princípio da responsabilidade paterna, trata depois de dar autoridade e força a um principio, que eu declaro que, se ele vigorasse, e se fosse confirmado por uma votação da câmara não teria muito desejo de ser português e de viver num país onde se estabelecessem semelhantes princípios.

O nobre deputado começa por dizer, que a lei deve sempre presumir contra todos. (Uma voz: É verdade.) Presume que os pais dão maus conselhos aos filhos; que os filhos praticam actos menos próprios por culpa dos pais; que os filhos cometem toda a qualidade de atentado contra a lei moral, civil e militar, porque os pais os aconselham os auxiliam, e os ajudam a que possam a seu talante desmandar-se em toda a qualidade de delitos e de crimes. Se um tal principio se adoptasse, eu julgo que ninguém tinha vontade de se querer sujeitar a uma tal legislação; se este princípio imoral vigorasse para este caso, o que era lógico e verdadeiro era que o ilustre deputado o estendesse a toda a legislação criminal. Se a lei deve presumir que o pai dá maus conselhos a seu filho, que ele lhe aconselha o não cumprimento da lei, é necessário que o ilustre deputado traslade este princípio para o código penal, e que numa edição correcta e aumentada o nobre deputado lhe acrescente mais este artigo; princípio que, além de me ter escandalizado, permita-me o ilustre deputado esta expressão, é fulminado pelas ideias mais elementares da justiça e da imoralidade.

Não pude lambem deixar de fazer reparo em que o ilustre deputado, relator da comissão chamasse incentivo para a boa educação uma pena que eu muitos casos pode ser violentíssima. Eu comprazo-me atribuir estas palavras a um lapso na redacção que de certo não foi muito pensada, porque realmente não se pode conceber por que o ilustre relator chamou incentivo a uma pena. Ora, o ilustre deputado tomou a palavra numa acepção  em que não pode ser justificada em caso nenhum, porque também se podia inferir daqui, que a chibata era o incentivo para que os soldadas não desertassem.

Depois do ilustre deputado ter assentado, digo, depois da comissão (e eu estou falando com a comissão, mas é tal a simpatia que tenho pelo meu amigo e colega o Sr. Nogueira Soares, apesar de dissentir nas suas opiniões neste ponto, que sou insensivelmente levado a dirigir-me a ele como autor do relatório), depois da comissão ter estabelecido a responsabilidade paterna, não se contentando só com isso, foi estabelecer o principio do condomínio e compropriedade.

Pela minha profissão especial, não me dei ao estudo da jurisprudência; apenas aprendi três ou quatro princípios dos mais elementares e indispensáveis a qualquer jornalista, para poder entender as questões jurídicas que se debatem; por isso não posso entrar nas especialidades mais minuciosas do direito civil; mas, neste caso, não posso deixar de remeter o ilustre deputado para observações, muito curiais, muito sensatas, e mesmo muito eruditas, que o meu ilustre colega o Sr. Doutor Alberto fez a propósito desta teoria de condomínio. A comissão, sem precedente nenhum na nossa legislação contra todos os textos jurídicos, como muito bem disse o Sr. Doutor Alberto, foi estabelecer um princípio falso, como se fora incontroverso no seu relatório. Eu sei apenas o que é o condomínio e a compropriedade; mas vejo citada a Ordenação do reino; vejo depois em reforço um esquadrão de praxistas; mas segundo julgo, e segundo me dizem ilustres jurisconsultos, estas citações estão aqui, pela maior parte, deslocadas. Eu aceito, contudo a teoria de condomínio, mas há-de o ilustre deputado consentir que lhe tire todas as consequências. O ilustre deputado declarou no seu relatório, que havia uma espécie de condomínio, e sobre essa espécie de condomínio vem estabelecida terminante, incontroversa e irrefragável a obrigação da responsabilidade para o pai. Eu creio que esta espécie de condomínio é uma coisa nebulosa, e que o ilustre deputado leve a generosidade de nos oferecer em contradição com a lei; não direi em contradição com os praxistas, mas em contradição com o Sr. Alberto, que na minha ignorância do direito civil, tenho de citar a cada passo como uma espécie de livro vivo, (Riso.) e mesmo contra a opinião de um ilustre e insigne professor da faculdade de direito, que se assenta aqui a meu lado, o Sr. Justino de Freitas.

Vou terminar, mas antes de terminar devo dizer ainda ao ilustre deputado, que me pareceu que S. Ex.ª não podia achar razões fundamentais e sólidas para sustentar este artigo que está em discussão, a não ser em dois princípios: um principio anti-jurídico, e um principio inconstitucional. S. Ex.ª para fundamentar o seu relatório, assentou a conclusão dele sobre uma infracção da carta, invocou depois um princípio, que já aqui me esforcei para provar que era altamente imoral. Ora, parece-me, que quando não há outras razões a invocar, senão uma infracção da carta, um absurdo moral como é aquele que S. Ex.ª estabelece, atribuindo a todos uma presunção de crime, e obrigando a provar o contrário para serem tidos como inocentes, e finalmente um princípio inadmissível em direito comum, não vejo razão alguma com que uma câmara possa ser movida a votar um artigo, que tem além disso contra si todas as indicações do senso, não comum, mas íntimo, todas as admoestações de brandura que nós uns aos outros nos estamos fazendo cada dia na reforma dos nossos costumes e das nossas instituições. A câmara não sancionará com a sua aprovação semelhante artigo, porque se funda num princípio monstruoso de direito; os jurisconsultos da câmara não quererão de certo autorizar com os seus votos uma tal doutrina, contrária a todos os princípios; todos aqueles que não são jurisconsultos, mas que são legisladores, e que tenham de dar o seu voto sobre esta questão, não hão-de querer que seja lei do reino uma prescrição, que assenta, e sobre o principio que todos têm contra si, a presunção de criminalidade em quanto não provarem o contrário, coisa absurda; e para o refutar, se quisesse prolongar as minhas observações, bastava citar o axioma jurídico, de que ninguém é obrigado, por direito, à prova negativa senão depois de ter havido a acusação. Ora, o artigo diz «que toda a gente é criminosa em quanto não provar o contrário;» e eu pergunto, se este princípio se pode estabelecer numa legislação. Se se estabelecer, então a lei é mais severa e mais inexorável do que as exagerações de todos os ascéticos, e do que as próprias doutrinas dos casuístas, porque esses admitem em muitos casos a presunção da inocência. Desde que a um pai, em sua casa, acontecer a primeira festa de baptizado, fica imediatamente separado da congregação dos inocentes, o fulminado por esta doutrina anti-cristã, hobbesiana e materialista do Sr. Dr. Nogueira Soares. Terminarei aqui as minhas observações; tinha intenção de mandar para a mesa uma emenda para fazer efectiva a responsabilidade do refractário, mas sobre os seus bens; não sei se este ponto já está prevenido. (Vozes: - Já lá está.) Bem; então não a mandarei; eu não pude consultar o Diário da Câmara, e não estou bem certo do que se tem adoptado, porque as votações foram muito rápidas. (Vozes: - Muito bem – Sussurro na sala; o ilustre deputado é cumprimentado por grande número de Srs. deputados de todos os lados da câmara.)


Notas:

1. Jurisconsulto que ensina a praxe, ou resolve casos práticos, e indica as decisões usuais no foro.

2. Joseph-André Rogron (1793-1871), jurista, advogado no Conselho de Estado francês, escreveu entre outras obras Code pénal : expliqué par ses motifs, par des exemples et par la jurisprudence, avec la solution, sous chaque article, des difficultés ainsi que des principales questions que présente le texte, et la définition de tous les termes de droit, publicado em Paris em 1838.

3. José Estêvão (1809-1862) deputado de 1837 a 1847 e novamente a partir de 1851 eleito nas listas do Partido Regenerador, tinha fundado em 1840 o jornal Revolução de Setembro, e era desde este ano professor de economia política da Escola Politécnica.

4. Ideia extravagante, que precede só fantasia.

5. Louis Blanc (1811-1882), socialista utópico francês defendeu a teoria das «oficinas sociais» controladas pelos trabalhadores e que permitiriam o pleno emprego, afirmando que a justiça só existiria quando «cada um trabalhasse de acordo com as suas capacidades e recebesse de acordo com as suas necessidades».

6. Direito de vida ou de morte.

7. Ou segúre. O machado que os lictores, que precediam os cônsules romanos, traziam nos feixes de varas, com que castigavam os delinquentes.

8. fugido à justiça

9. Tétis era uma das cinquenta filhas de Nereus e Dóris, e por isso uma Nereide, sendo mãe de Aquiles. Latino Coelho refere-se ao episódio da recusa de Aquiles combater na guerra de Tróia devido a estar zangado com o rei Agamémnon de Micenas, por este raptado a sua amada.

10. Juan Bravo Murillo (1803-1873), jurista, político e economista, professor catedrático da cadeira de Instituições Filosóficas em Sevilha, ministros em vários governos, foi presidente do governo espanhol de 1851 a 1852 

11. sempre; desde logo.

12. A Guerra da Crimeia começou em Março de 1854 tendo terminado em Março de 1856, e opôs a Grã-Bretanha, a França e a Turquia à Rússia. O exército britânico mostrou nesta guerra estar muito mal preparado para uma campanha militar contra potências europeias.

13. Cornélio Cipião Africano e Cipião Asiático, irmãos, o primeiro derrotou o general cartaginês Hanibal em Zama, no ano de 202 a.C.; o segundo venceu Antíoco III, rei selêucida da Síria, em 190 a.C. Eram membros de uma célebre família patrícia da gens Cornelia.

14. Caio Fabrício, cônsul em 282 e em 278 a.C., era um dos heróis mais populares da história romana, sendo o símbolo da frugalidade, honestidade e incorruptibilidade, tinha conseguido fazer com que o exército de Pirro, rei de Epiro, abandonasse a Itália.

15. Um dos dez magistrados de Roma encarregados de codificar as leis.

16. Porque retirado do Código de Justiniano, compilado entre 528 e 535 d.C.

Fonte :

Diário da Câmara dos Deputados, Ano de 1855, vol. III, n.º 24, Sessão de 28 de Março de 1855, págs. 547-552.

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