D. João II

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Frontispício da Crónica de D. João II de Rui de Pina

 

DISCURSO DE VASCO FERNANDES DE LUCENA

 

Traslado da oração que fez o Doutor Vasco Fernandes em Évora aos [11] dias do mês de Novembro de 1481 anos quando se deu a obediência pelos grandes, prelados, fidalgos e povos ao Rei Dom João nosso senhor.

 

 

Este discurso, recitado na abertura das cortes de Évora por Vasco Fernandes de Lucena, está centrado sobre o problema da obediência, questão central no início do reinado de D. João II, já que a aristocracia portuguesa, devido a D. Afonso V ter criado «estes senhores de Portugal tanto em suas vontades e lhes dera tanto favor que lhes fizera muito dano», se encontrava numa posição que deixava o filho, como o próprio diria mais tarde, «em muito trabalho e perigo».

A sessão de abertura das Cortes, iniciada com este discurso, continuou com o juramento das figuras presentes começando pelo duque de Bragança e terminando nos procuradores de Lisboa que juraram em nome das cidades e vilas. O texto de obediência não foi bem aceite por uma parte da nobreza presente, sobretudo pelo duque de Bragança, que decidiu protestar por meio de um acto público, afirmando que só aceitava a declaração constrangido, primeira acto de oposição ao novo rei que o levaria, dois anos mais tarde, ao patíbulo na praça pública de Évora, onde morreu degolado.

 

«Quem verdadeiramente obedece a seu Rei faz coisa digna de sua honra, e de seu glorioso nome, de suas virtudes e de sua consciência»

 

Costumavam, muito alto, muito excelente e muito poderoso Príncipe, e muito virtuoso Rei nosso senhor, os naturais do Reino da Pérsia, quando iam por qualquer caso que fosse visitar os Reis seus senhores, lhes levar alguns presentes, serviços e dons que declarassem a vontade, o amor, o acatamento e o desejo que tinham para seu serviço. Recebiam os Reis seus serviços com muita afeição e não com [...] nem cobiça, mas como Príncipes huma[nos], liberais e benéficos, e, como aqueles em que resplandecia a Real dignidade retribuíam muito maiores mercês de que eram os serviços que recebiam. 

Sabendo, muito ilustre Príncipe e muito triunfante Rei, os três estados destes vossos Reinos que presentes estão que em vosso levantamento1, e quando Vossa Alteza tomou título e nome de Rei, deles vos não foram dadas menagens, vos não foram dadas obediências, representados hoje no conceito de Vossa Real Majestade imitando seus maiores, que de vossos antecessores sempre foram muito devotos, e imitando os de Pérsia que levavam dons e serviços a seu Rei quando os iam visitar, vos vêm hoje oferecer seus serviços, vos vêm dar as suas menagens e obedecer em tudo como por direito devem e são obrigados, e porque não se sabendo que coisa é menagem facilmente se recusariam muitos em a jurar. 

Digo que menagem não é mais senão juramento que faço de ser fiel pelo temporal que de algum senhor tenho, que no espiritual é coisa tão horrível, indigna e estranha à Santa Sé apostólica seguiu a todas outras que ninguém tenha de fazer menagem. Só no temporal se deve fazer a menagem contanto que os Prelados e pessoas eclesiásticas que de Sua Alteza têm algum temporal lhe devem fazer menagens porque por razão de tal temporalidade fiquem seus em favores e sol ... [ilegível]. 

A forma como se deve fazer menagem se troca segundo a variedade dos Reinos e Províncias, singularmente o texto falando do vassalo que tem ferido no Capítulo de forma fer ... e no Capítulo 1.º de nova fer ... fide ju vss [iligível], onde diz o primeiro texto que o que a seu senhor jura fé e menagem sempre deve ter na memória estas seis coisas, saúde do corpo de seu senhor, que não lhe descobrirá nenhum segredo, nem lhe fará dano nas coisas porque seu estado deve ser seguro, que não fará dano em sua justiça, que não fará dano em sua fazenda, que não fará difícil a seu senhor aquilo que possivelmente pode fazer, e que aquilo que possivelmente  pode fazer lhe não fará impossível, e com estas seis coisas sempre deve dar ajuda a seu senhor e são conselho, por ainda outra forma de fazer menagem o texto seguinte, com o qual concorda o texto no Capítulo ego [...] de iure iuram, a qual deixo de conselho porque é coisa de mais trabalho do que de arte. 

Devemos isto mesmo obediência a sua Alteza, e se considerar-mos obediência em comum e ela seja virtude anexa, a justiça e uma das seis partes como diz Túlio2 na segunda da sua retórica, nenhuma coisa por certo é mais justa do que obedecermos a nosso Rei, e se tomarmos obediência em particular como ela consistia em três coisas - a saber reverência, juízo e mando, todas devemos a nosso Príncipe e a nosso Rei. Devemos por direito a nossos pais, devem os libertos a seus patronos obras de reverência [ex ... j ...] as quais por isso mesmo por direito devemos aos antigos padres especidade e amic ... [ilegível] Levj XIX lege semper de iure em [...] onde diz o texto que não menos honra se deve aos velhos que aos que são postos em pública dignidade e colocados em algum magistrado3. E portanto, a mancebia Romana acostumada em virtudes, e exercitada em virtudes e boas maneiras, tinha tanto acatamento à dignidade das cãs e por isso tinha tanta reverência para com a velhice, que o dia que os mais velhos haviam de entrar no Senado a fazer conselho e negociar coisas públicas, os mancebos ou por vizinhança, ou por parentesco, ou por amizade, acompanhavam-nos de suas casas até ao Senado Aí os esperavam as partes da parte de fora, de onde não partiam até que o conselho era acabado. Então se tornavam com eles a suas casas, acompanhando-os com muito acatamento, fazendo-lhes não menor ofício, honra e cerimónia que a seus próprios pais. Com estas virtudes e voluntárias reverências a constante mancebia Romana, com muita soberba se faziam duras e fortes nos ânimos e nos corpos, para a mercê receber e comportar os cargos públicos, para os quais muito em breve, pelas suas virtudes eram eleitos, chamados e requeridos. Convidados isso mesmo os mancebos no convite intervinham alguns velhos se assentavam derradeiro, e se levantavam primeiro, tanto era o acatamento que os mancebos tinham aos velhos que perante eles ou falavam nada ou muito pouco.

Por juízo, e por mando, se deve obediência àquele que em nós há alguma jurisdição, porque de outro modo a sentença por não juiz dada não tem força at si clerici de judic ... si a non ... judi per totum a virtude e a força do mando é que de necessidade havemos de obedecer a quem por cada uma destas maneiras nos pode mandar. E em outro modo pecamos mortalmente e somos havidos por areolos e idolatras pois se os filhos a seus pais, [os libertos] a seus patronos e os mancebos aos velhos  devem obediência de reverência, se os súbditos por jurisdição devem a seus juízes e magistrados obediência de juízo e de preceito, quanto mais e maior obediência devemos fazer e pagar a nosso Rei, a quem havemos de servir e ajudar contra todos. E ainda contra nossos pais e nossos filhos e irmãos, por cujo serviço, vida, e saúde para exemplo dos celtiberos povos de Espanha que moram acerca do Ebro creio sejam leparaos (?) não mouros e especialmente em batalha não só obre ávido por maldade mas por nefaria maldade moura, diz o texto no Capítulo sequis venerit que é o segundo de Maio e o ver  todo aquele que não obedecer a seu Rei e a seu Príncipe ad hebreos ultimo diz o apóstolo de videte propositis vestres et suviarete eis e ad Romanos 13.º qui potestate dei ordinatione re [...] se ipse sibi damnacionem ad querant4 e ele mesmo a Tito nos manda que sejamos sujeitos aos Príncipes e aos que têm poder e mando na terra subdenti estote diz São Pedro 1.ª pet ... omni humana cretura sper ... deum sine Rege tamque [...]5 cellenti siue duribus tanque ab commisis ad modum tam male fratrorum laudem uero bonorum si solite post [primi?]. Recebe Deus o sacrifício de vontade oferecido,  mas muito mais a obediência, porque pelo sacrifício mato a carne alheia e pela obediência a minha própria, e assim como no espiritual e temporal se deve sem nenhuma diferença fazer obediência às vezes manual [sic] que a reverência e honra, e às vezes juratória, e assim pois os apóstolos nos mandam obedecer aos prepostos potestates e Princepes e falam indefinidamente das suas intenções e que em tudo lhe obedeçamos contanto que não mandem coisa contra Deus. Actum 4.º obedire magis oportet Deo q[ilegivel] hominibus, a qual obediência assim somos obrigados, que escusar-se alguém de a fazer não só como disse seria arreolo e idolatra, mas seria com muita razão chamado acéfalo, e homem que não tinha cabeça, nem senhor. 

Obedecei, pois como dizem os apóstolos, como fiéis e leais que sempre fostes a vosso Rei em tudo, e sede-lhe muito obedientes, porque os que lhe obedeceram resistem à vontade de Deus, dai muita obediência a vosso Rei, por exemplo de nosso remidor e salvador, que por nos salvar foi feito obediente até à morte, e quem verdadeiramente obedece a seu Rei faz coisa digna de sua honra e de seu glorioso nome de suas virtudes e de sua consciência. Juristas os de Pérsia e oferece de puros corações e de muitas sãs vontades nossos dons, e nossos serviços dai a vosso Rei vossas obediências vossos preitos e menagens jurai-o por vosso verdadeiro Rei e por senhor destes seus Reinos e senhorios porque as menagens que se  pelos grandes fidalgos e cavaleiros e outras pessoas de seus Reinos hão-de dar a sua alteza pelas fortalezas, vilas e lugares e jurisdições e coisas que tem da Coroa pela brevidade do tempo e ocupação das obediências que se no tempo presente dão não se podem agora tomar, deferi sua Alteza para o tempo que vir que é serviço seu e daquele que [eternamente] vive e reina na glória por sempre ámen. 


Notas:

1. Realizado também em Évora em ...

2. Marco Túlio Cícero, o célebre filósofo e orador romano, que viveu no séc. I a.C..

3. O orador cita partes do texto do capítulo 19, que tem o título «Um povo santo como o seu Deus» do Levítico do Antigo Testamento, parte do que é conhecido como a «Lei de Santidade». A citação é retirada possivelmente do versículo 15: «Não cometais injustiças no julgamento». A referência aos velhos remete para o versículo 32 - «Levanta-te diante de uma pessoa de cabelos brancos e honra o ancião».

4. A Carta aos Hebreus é comummente atribuída a São Paulo. A segunda citação é retirada da Carta de S. Paulo aos Romanos, capítulo 13, versículo 2: «Quem se opõe à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. Aqueles  que se opõem, atraem sobre si a condenação».

5. Da Primeira Carta de São Pedro, capítulo 2, versículo 13: «Submetei-vos  a toda a criatura  humana por causa do Senhor, seja ao rei como soberano ...»

 

Fonte:

Álvaro Lopes de Chaves, Livro de Apontamentos (1483-1489). Códice 443 da Colecção Pombalina da B.N.L., introdução e transcrição de Anastásia Mestrinho Salgado e Abílio José Salgado, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, («Biblioteca de Autores Portugueses»), 1984; págs. 62-66.

Ligações:

  • Vasco Fernandes de Lucena
    Entrada no «Portugal - Dicionário Histórico»..
  • D. João II
    Biografia do rei.

 

 

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