Afonso Costa (à direita) e João Franco (à esquerda) na Câmara dos Deputados em 1906 |
DISCURSO DE AFONSO COSTA. Discurso de Afonso Costa, deputado republicano, na Câmara dos Deputados em 20 de Novembro de 1906.
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É possivelmente o mais importante discurso de
Afonso Costa, e claramente o mais importante para compreender o fim da monarquia em
Portugal. Uma declaração de guerra, clara e inequívoca, do partido
republicano ao regime monárquico, mas sobretudo uma condenação
pública à morte do chefe de estado português, o rei D. Carlos, que foi
aplicada 14 meses depois, no dia 1 de Fevereiro de 1908. O discurso de Afonso Costa vem no seguimento da crítica feita por Dantas Baracho, na Câmara dos Pares em 12 de Novembro, às obras de electrificação realizadas no Palácio das Necessidades, da Ajuda e de Belém pela Casa Real. Este oficial do exército, regenerador dissidente que acabará por aderir ao partido republicano, pedirá no dia 16 seguinte uma lista descriminada dos adiantamentos feitos à Casa Real. No seguimento do discurso irá realizar-se uma manifestação de apoio a Afonso Costa onde serão presos 63 pessoas, realizando-se também um comício no Porto, no dia 28, que se repetirá no dia 2 de Dezembro, com a presença de cerca de 12.000 pessoas. Não diminuindo o movimento de crítica ao regime, no ano seguinte, em Março, será desencadeada a greve académica e em 8 de Maio de 1907 terá início a «Ditadura franquista» com a promulgação do primeiro decreto ditatorial. |
«Por muitos menos crimes do que os cometidos
por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI !
Sr. Presidente: como já
tive a honra de participar a V. Ex.ª e à Câmara, foi-me absolutamente
impossível, por doença e outros motivos de força maior, comparecer a
algumas das últimas sessões desta casa do Parlamento. Não tive, por
isso, o prazer de ouvir as respostas, que foram dadas aos Srs. Deputados
António Centeno e João Pinto dos Santos, directamente, pelo Sr.
Presidente do Conselho, acerca dos chamados adiantamentos à casa real, e
acerco de incorporação, ou não incorporação, na letra ou no espírito
do artigo 48.º do projecto que se discute, de uma espécie de regularização
desses adiantamentos, a qual seria, em tal hipótese, evidentemente
fraudulenta'. Também
pelos mesmos motivos insuperáveis não pude assisti às últimas sessões
em que se discutiu e votou o projecto da criação do Supremo Conselho de
Defesa Nacional, acerca do qual comuniquei a V. Ex.ª e à Gamara, por «declaração
de voto», que não lhe teria dado, se estivesse presente, a minha aprovação,
já porque o considerava insustentável, inconstitucional perante a divisão
e limites dos poderes políticos, e até incompatível com o estado em que
se encontra a defesa nacional, já, e sobretudo, porque nele se cometia o
erro gravíssimo de colocar à frente do Conselho, embora sem voto
deliberativo, o chefe do Estado‑o que certamente é um testemunho do
monarquismo e das tendências retrógradas do Sr. Ministro da Guerra, do
Governo e das maiorias, mas é ao mesmo tempo uma razão para que os
oficiais do exército e da anilada, que tomem parte no mesmo Conselho, se
acanhem e se sintam de certo modo dominados, não pondo, por isso, em prática
a sua iniciativa tão rasgada e prontamente, como pode ser necessário em
assuntos gravíssimos referentes à defesa nacional, e em que será
preciso pôr de parte interesses pessoais, familiares ou dinásticos. Lavro,
por isso, novamente o meu protesto contra esse projecto; e fico confiado
em que, na Câmara dos Pares, onde já chega muito batido pela oposição
que aqui lhe fizeram as minorias monárquicas, será combatido a todo o
transe por aqueles que conhecem bem o assunto, a fim de que ele seja
inteiramente refundido, ou então posto de parte como inconveniente ao próprio
prestígio do exército, que o Sr. Ministro da Guerra deve ter a peito
levantar e defender. Não
assisti de princípio à discussão do projecto de contabilidade, e por
isso não pude desde logo lavrar o meu protesto relativamente aos dois
importantes discursos do Sr. Presidente do Conselho acerca dos famosos
adiantamentos, nem tão-pouco ouvir a maior parte dos discursos da minoria
e da maioria monárquicas desta Câmara acerca da contabilidade pública e
dos costumes e estado da nossa administração. Recorri,
porém, aos sumários das sessões e aos extractos dos jornais, e assim
pude reconstituir os graves e importantes depoimentos que dentro desta
sala tinham sido produzidos por um e outro lado da Câmara - isto é, por
todos os partidos do rei - contra a ruinosa gerência monárquica dos
dinheiros da Nação. A
conclusão que posso tirar de tudo quanto li e comparei é - sem a menor
sombra de exagero - que a lei de contabilidade pública não tem sido
cumprida em nenhuma das suas disposições defensivas e moralizadoras e
que o projecto do Sr. Ministro da Fazenda vem unicamente para se tentar
estabelecer uma nova ordem de coisas, que não é propriamente legislativa
ou de regulamentação, mas se confina na pretensão, que se pode dizer
estulta e falaz - sem ofender quem o apresentou -, de produzir novos
costumes políticos no País, unicamente como consequência de se
inscreverem no novo diploma disposições de maior ou menor severidade ...
aparente, as quais não serão cumpridas, porque os costumes da administração
monárquica eram, são e serão sempre absolutamente os mesmos. Em
vez de o Sr. Ministro da Fazenda ter trazido este projecto à Câmara, o
que devia ter feito era, em primeiro lugar, estudar o estado da nossa
administração e, em segundo lugar, tratar de remodelar os nossos
costumes políticos, fazendo cumprir inexoravelmente as disposições
moralizadoras das leis vigentes. Esses
costumes têm sido aqui classificados como «descalabros», «desbaratos»,
«ilegalidades», «ofensas à lei», etc. Eles justificam plenamente a
nossa disposição, como em geral a de todo o Partido Republicano, de
combater directamente, não o actual Governo ou qualquer outro, mas o próprio
regime com todos os seus representantes e servidores, porque é o regime
exactamente que tem produzido a péssima administração do País. O
que seria preciso era que o Sr. Ministro da Fazenda nos trouxesse um rol
completo, não só do estado da Fazenda Pública, mas das causas reais
desse estado, a começar na nota exacta dos chamados «adiantamentos»
feitos à casa real, a fim de se poder examinar com justiça a contrição
que a monarquia pretende agora fazer, apresentando-se-nos - conforme a
argumentação do Sr. Presidente do Conselho - arrependida e purificada
como uma vestal, ela que não tem tido pejo de se exibir como uma
messalina impudica; perante a Nação, que a sustenta e lhe paga. O
que seria preciso era o rol de despesas, completo, sem sofismas, nem
entrelinhas - um relatório exacto do que tem sido a administração pública,
ao menos depois que Sua Majestade El-rei D. Carlos I está à frente do País. Talvez
não fosse mau que esse rol viesse de muito mais longe; mas contentemo-nos
com isso; contentemo-nos com saber o que tem sido a administração da
monarquia portuguesa e dos seus governos desde que é rei o actual chefe
do Estado; saibamos em que condições de «descalabro», de «favoritismo»
e de «legalidade» se tem feito essa administração; saibamos por que
meios esses costumes de administração têm feito da lei de contabilidade
um mísero e sujo esfregão, em que os maiores desmandos e os maiores
crimes se envolvem ,e enrodilham, se tentam encobrir e esconder, para
afinal se apresentarem os culpados batendo no peito, fazendo os seus poenitet
me peccati, repetindo as suas declarações de fingido arrependimento,
que não se pejam de exibir à luz pública, como se representassem
grandes acções morais. O
que é indispensável é dizer ao País como se fez, para que se fez, essa
tremenda administração monárquica, a fim de se ver se o remédio está
apenas numa famosa lei nova de contabilidade, verdadeira manta de
farrapos, organizada por algum amigo do Sr. Ministro da Fazenda, e
estragada por ele, e depois novamente refundida e amesquinhada pela comissão
de fazenda e agora cheia de remendos lançados da própria maioria; a fim
de ver, repito, se é com esse manta de farrapos que sc quer pôr embargos
à péssima administração da monarquia ou se, ao contrário, é precisa
alguma coisa mais; radical e profunda, em defesa do País e execução da
sua omnipotente vontade. Sirvo-me
para isso das palavras do Sr. Presidente do Conselho, que declarou que a
salvação do País estava acima de tudo, e que quando for imposta a
vontade nacional, num determinado sentido, não há guarda municipal, nem
polícia, nem força armada, que possa impedir o País de tomar conta dos
seus destinos e fazer que essa administração se realize dentro de normas
justas e moralizadoras, ainda que para isso seja necessário destruir o
que está e estabelecer u que o povo quer ver estabelecido. Quando
o Sr. Ministro da Fazenda mandou para a mesa o seu projecto de
contabilidade pública, e depois o quis fortalecer com a afirmação de
que, sem a votação dele, não poderia pôr-se cobro nem aos
esbanjamentos, nem aos desperdícios, nem à ruína de que enfermava a
administração anterior, o que supus e todos supusemos, antes da leitura
da proposta e principalmente do projecto da comissão, foi que se
encontrava nele a defesa completa e sistemática contra todo e qualquer
pedido que pudesse representar qualquer espécie de tentativa sequer de
defraudar o País. Mas,
depois que vi e examinei essa proposta, reconheci com pasmo que ela de
nada serviria a bem da Nação, nem contra os tais famosos costumes de
administração. As
consequências desses costumes, que o Sr. Ministro não quis denunciar-nos
como devia, são no entanto bem frisantes e dolorosas, e definem-se em
duas palavras: uma dívida pública de perto de 800.000.000$000 réis; uma
dívida flutuante que vai até 72.000.000$000 réis; impostos que têm
sempre aumentado, até quase quintuplicarem, de 1852 para cá; e, por
outro lado, o País sem instrução, nem exército, nem defesa das costas,
e fronteiras, nem marinha, nem, auxílio aos operários, nem nada do que
se pede e precisa, porque nem sequer temos estradas, já que as
existentes, que nos custaram dezenas de milhares de contos de réis,
destruiu-as a triste iniciativa e casmurrice do Sr. João Franco num dos
seus Ministérios anteriores, não consentindo nas reparações necessárias,
e inutilizando assim um importante capital nacional que, pelo contrário,
era mister valorizar e aumentar. Nós
não temos absolutamente nada. Os
costumes de administração foi o que deram: o País à beira da ruína; o
desgraçado consumidor a braços com o imposto de consumo, que o leva à
tuberculose e à miséria; o contribuinte cada dia mais incapacitado de
panar as contribuições sempre crescentes; o proprietário disposto a
abandonar as suas terras; o viticultor impossibilitado cie colocar os seis
vinhos. Sr.
Presidente: é a situação mais ruinosa e mais miseranda que se pode
encontrar percorrendo a história, ainda mesmo dos povos que mais têm
descido na sua economia e nas suas finanças. Pois,
a par disto, e que encontramos efectivamente neste projecto não é uma
tentativa séria de evitar a repetição desses tremendos abusos, mas sim,
somente, uma nova poeirada sobre a ingenuidade cio público, ao lado do
propósito, explicitamente confessado pelo chefe do Governo, de dar uma
espécie - como direi, Sr. Presidente -, uma espécie de refresco ao crédito
da monarquia e ao crédito dos seus serviçais, exibido pelo Sr. Ministro
da Fazenda em nome da suposta moralidade do Governo. V.
Ex.ª vai ver. O
que o projecto encerra pode dividir-se em duas partes distintas: 1.ª
Fogo-de-vistas; 2.ª
O fim confessado e declarado de tentar reabilitar a monarquia, continuando
aliás com os mesmos processos de administração. O
fogo-de-vistas é a proibição feita aos deputados de apresentarem
propostas que aumentem as despesas públicas durante a discussão do orçamento;
é a proibição da venda de títulos na posse da Fazenda; é a
regulamentação do serviço de vales ultramarinos; é a comissão
parlamentar de contas públicas. Para
realizar os fins verdadeiros do projecto está nele o artigo 48.º que faz
tábua rasa do passado e deixa nas mãos do Governo a maneira de defender
criminosamente, como encobridor perigoso, os autores e cúmplices dos
crimes anteriormente cometidos; e no projecto está também, Sr.
Presidente, a concentração no Poder Executivo de .tudo que diz respeito
à contabilidade e sua fiscalização preventiva, sendo esses dois os mais
graves dos muitos inconvenientes que o projecto contém. Sr.
Presidente: só duas palavras direi sobre o fogo-de-vistas, principalmente
quanto à comissão de contas e à restrição inconstitucional da
iniciativa dos deputados. Não
quero deixar de protestar contra a maneira como é constituída a comissão
parlamentar de contas públicas. Vê-se
pelo projecto que, ao passo que da Câmara dos Deputados são escolhidos
cinco membros, da Câmara dos Pares são escolhidos outros cinco e mais o
seu presidente. Portanto,
ficam seis pares do Reino de nomeação régia contra cinco deputados de
eleição popular! Pergunto:
a que critério obedece um projecto que dá uma tal preponderância à Câmara
de nomeação régia sobre a Câmara de eleição popular? Que
país é este, em que o sufrágio popular - base essencial de toda a
democracia - é assim menosprezado, apesar de tanto falar dele, até com
abuso, o Sr. Presidente do Conselho? Que
país é este em que se dá preponderância numérica, e portanto de voto,
à Câmara dos Pares, numa comissão parlamentar de contas públicas? E
depois, Sr. Presidente, que direitos de iniciativa e de fiscalização são
concedidos por este desgraçado projecto à comissão parlamentar de
contas públicas, quando é certo que, nos termos do § 5.º do artigo 39.º,
os seus relatórios, para terem execução sobre qualquer aspecto, hão-de
ser votados anteriormente pelas maiorias das duas Câmaras? Em
presença de tal disposição, mesmo as acusações contra os infractores
e delinquentes, reconhecidas como justas e necessárias pela comissão, só
podem ser submetidas aos tribunais respectivos depois de terem sido
aprovadas pelas maiorias governamentais, sempre tentadas a aceitar razões
«políticas» para que se não persigam os correligionários ou amigos. Não
há aqui somente um enxovalho sempre possível à comissão parlamentar de
contas públicas. Há mais: há um embaraço absoluto e permanente ao
exercício da função judiciária, à missão moralizadora e punitiva,
que compete aos diversos órgãos judiciários sobre os responsáveis pela
Fazenda Pública. É
sabido que os tribunais estritamente judiciários são competentes para
conhecer dos delitos que nesta matéria possam cometer os diversos funcionários,
com excepção somente dos ministros de Estado, os quais continuarão
sujeitos, segundo o projecto do Governo sobre a responsabilidade
ministerial, à Câmara dos Pares, constituída em alto tribunal de justiça,
não obstante o que o chefe do Governo pregou nos seus centros durante as
vacas magras do ostracismo'. De
todo o modo, é aos tribunais comuns e à Câmara dos Pares, como
tribunal, que compete julgar os responsáveis. Ora
se a comissão, pela sua maioria saída das minorias parlamentares,
declarar que alguns funcionários do Estado praticaram crimes, o que seria
justo e sério era que os tribunais tomassem directamente conta dessas
acusações. Mas
não é assim pelo monstruoso projecto. Se
o chefe do Governo não quiser que esses crimes sejam punidos, não tem
mais do que fazer um discurso` com as mesmas subtilezas com que o Sr. João
Franco - em resposta à habilíssima argumentação do ilustre Deputado
Sr. Moreira de Almeida - há pouco rasgou o Regimento da Câmara. Com
esse discurso defenderá doutrina contrária ao parecer da comissão,
deixando a sua maioria na situação, ou de lhe dar um cheque - o que não
é presumível, nem pode ser todos os dias ou de cobrir um funcionário
com o voto ilegítimo, que assim se antecipa ao voto do tribunal judiciário
e embaraça definitivamente a sua intervenção e acção. Veja
V. Ex.ª e veja a Câmara como o próprio fogo-de-vistas do projecto se
apresenta assim tão refulgente e tão pouco aceitável. Mas
ainda nesse aspecto do fogo-de-vistas há coisa pior. Há
a cessação da iniciativa parlamentar dos deputados quando se discutir o
orçamento. Para
se fazer passar esta medida, trouxe-a à tela da discussão o exemplo da
Inglaterra e o da França. São
os países com que se costuma argumentar nesta Câmara: a Inglaterra para
os monárquicos e a França para os republicanos. Com
estes dois países pretende-se reduzir ao silêncio as bocas mais
tempestuosas do radicalismo e do conservantismo. Ora,
Sr. Presidente, examinando a inovação com toda a calma, logo se percebe
que ela não é nem pode ser destinada a impedir a iniciativa dos membros
da maioria, antes ela é nem mais nem menos do que uma arma de guerra que
fica nas mãos do Governo e das maiorias contra as minorias da Câmara dos
Deputados .e da Câmara dos Pares. Sabe-se
muito bem que, se um deputado ou par da maioria durante a discussão do orçamento
quiser apresentar uma proposta que aumente as despesas públicas, nada se
importa com a proibição agora proposta, porque lhe basta pedir ao
ministro ou a qualquer membro da comissão de fazenda que arranje esse
aumento, e tudo fica perfeito, ainda com a vantagem de não ter de se dar
ao incómodo de defender em voz alta a sua proposta e de arrostar com o
seu possível odioso. Com
as minorias é que não acontece o mesmo. Impõe-se-lhes arbitrariamente
uma restrição de iniciativa absolutamente inadmissível no nosso sistema
político. Essa restrição compreende-se até certo ponto na Inglaterra e
na França, onde a preponderância dos parlamentos é absoluta e onde os
orçamentos são verdadeiramente sérios por não se alterarem ao sabor
das conveniências de quem quer que seja, por mais altamente colocado. Mas
em Portugal é tudo quanto há de mais desnecessário e absurdo, tanto
mais que os deputados verdadeiramente dignos desse nome sabem que devem
evitar quanto possível os aumentos de despesas à Nação, já tão
esmagada e sobrecarregada. Pela
minha parte, não admito mesmo que me imponham um tal constrangimento
moral, pois que nem nesta sessão, nem na de 1900, em que tive a honra de
representar a cidade do Porto, apresentei projecto ou proposta que
importasse qualquer aumento de despesa, por mínimo que fosse, e, se
alguma vez eu ou os meus colegas da minoria republicana o fizermos, a
justificação desse aumento há-de ser plena e absoluta, e acompanhada da
demonstração de que um alto dever social e moral o impõe, porque tenho
a consciência das minhas responsabilidades e obrigações como cidadão
português. Isso
sucederá, por exemplo, com o aumento de despesa para a instrução pública
acerca da qual a minoria republicana terá de apresentar um importante
projecto de lei; e far-se-á indo buscar a compensação de receita onde
haja desperdícios a mais, como sucede com a lista civil, que é hoje uma
lista criminosa e afrontosissima para o País, o qual, tendo sofrido os
chamados «adiantamentos» ao chefe do Estado, tem hoje incontestavelmente
o direito absoluto a uma compensação possível por meio da redução
.dessa lista, que há-de ser exigida em nome do País, a par e além da
restituição dos «adiantamentos», com seus juros respectivos. Com
efeito, enquanto o chefe do Estado não terminar as suas funções,
enquanto se conservar à frente do País, há-de indemnizá-lo e dar
provas de que realmente coopera no levantamento da miséria e desgraça públicas,
para as quais tanto contribuiu. Mas
repito: à parte esses casos de imperiosa necessidade pública, ninguém
quer aumentos de despesa, ou mudanças de um para outro capítulo do orçamento;
e assim esse constrangimento moral imposto aos deputados da minoria,
especialmente aos da minoria republicana, é uma afronta aos nossos brios. Nunca
vi que do lado desta minoria se quisesse propor o aumento das despesas públicas.
Pelo contrário. O que sei é que em 1900, do lado da maioria, durante a
discussão do orçamento, se propôs subrepticiamente, por meio de uma
emenda levada à comissão de fazenda, um aumento das despesas públicas
na importância de algumas centenas de contos de réis. Protestei,
e a emenda não chegou sequer a ser discutida. Mas ficou a impressão de
que o perigo vem do lado das maiorias, e há-de ser tanto maior quanto
menos as suas propostas afrontarem a discussão pública e aberta. Mas,
Sr. Presidente, se o intuito é deixar o orçamento bem equilibrado, como
uma previsão justa e exacta, das despesas e receitas públicas, pergunto
ao Sr. Ministro da Fazenda, ou a quem tenha de ser o seu fonógrafo para
responder às minhas dúvidas: que espécie de justificação me dá ele
do facto de o Governo consentir que se apresentem do seu lado emendas ao
orçamento durante a sua discussão e, ainda, que espécie de justificação
me dá de despesa cuja execução se faça dentro do período a que
respeita o orçamento já aprovado? Vamos
dentro em pouco votar o orçamento de 1906-1907, e, devendo, segundo esse
critério, o orçamento ficar quanto possível invariável, se votarmos
alguma lei de que resulte aumento de despesas, a restrição imposta pelo
projecto da contabilidade quanto à nossa iniciativa devia ter como
consequência lógica que essa lei deveria entrar em vigor quando se
pudesse incorporar tal aumento no orçamento do ano económico seguinte e
este orçamento entrasse em execução. Só assim é que esse orçamento
poderá representar uma verdade. De contrário, o déficit nele confessado
há-de elevar-se, visto a < cabazada» de projectos já apresentados
sucintamente pelo Governo, e os mais que ele anuncia, e que hão-de
aumentar enormemente as despesas. Este
facto prova qual é o critério administrativo do actual Governo e a sua
autoridade moral, para dizer que os Governos anteriores malbarataram os
dinheiros públicos, o que, aliás, é absolutamente exacto a respeito
deles, como há-de ser a respeito do Governo actual. E
tanto assim que o Sr. Ministro da Fazenda é «um pernas abertas» para
tudo o que seja excesso de despesa. Quem
quiser aumento de ordenado, ou melhoria de situação, que apareça! O
Sr. Schröter concorda com tudo, apesar de ter apresentado um orçamento
com o déficit de mais de 2.600.000$000 réis! A
situação é esta, e já não tem remédio sob este regime. Tal
é, Sr. Presidente, a parte espectaculosa do projecto. Vejamos agora os
seus efeitos capitais. V.
Ex.ª viu, e já foi notado deste lado da Câmara, que se quer restringir
a discussão orçamental à apreciação das verbas variáveis do orçamento,
ficando como matéria sem discussão possível, e aprovada
indefinidamente, aquela que constitui o stock das despesas e
receitas em que não seja necessário fazer alterações todos os anos, e
que só por leis novas poderão, de futuro, modificar-se. Não
sei qual seja o propósito do Sr. Ministro da Fazenda, ou antes do Sr.
Presidente do Conselho, pois deve ser de S. Ex.ª a inovação, visto a
tendência absorvente do chefe do Governo, que se intromete em todos os
projectos que vêm à Câmara, numa concentração que para ele terá
talvez vantagens, mas que deve trazer graves inconvenientes à administração
pública e até à posição e autonomia dos seus colegas. Quer-me
parecer que com a famosa inovação se quis sobretudo evitar que os
deputados republicanos discutam no ano próximo a lista civil, tudo quanto
interessa à vida da Nação e se relaciona com o chefe do Estado e sua
família. Se
se votar essa disposição, vota-se, no entretanto, contra a Carta
Constitucional, vota-se sem poderes para isso. A
nossa Carta Constitucional tem como garantia política, a mais forte e
importante para os cidadãos, a votação anual das receitas e despesas públicas.
Isso não é só do actual regime constitucional, mas dos antigos tempos
em que os povos eram chamados às Cortes para discutir e apreciar questões
de administração, como, por exemplo, o abaixamento do peso ou do toque
das moedas, o aumento dos tributos, opondo por vezes um veto vigoroso às
pretensões dos monarcas. Já
então os povos pugnavam por essa garantia com a maior eficácia; é
preciso que hoje façamos com que o homem, que deu o primeiro golpe e o
mais fundo contra a garantia política com o decreto de 1895, autorizando
a cobrança de impostos por uma lei já sem vigência, se convença de que
não pode apregoar liberdade e ao mesmo tempo amordaçá-la, nem pode
apresentar como liberal e ao mesmo tempo vir às Câmaras com um projecto
de contabilidade, como õ` que se está discutindo, em que se cerceia a
discussão orçamental, inutilizando-se a garantia política dos cidadãos
portugueses. Sr.
Presidente: pelas razões expostas é que eu não darei o meu voto ao
projecto; mas, ainda que essa disposição seja aprovada, considerá-la-ei
sempre como sem vigor, nem eficácia, continuando a proceder aqui como se
não existisse, visto que, sendo ela inconstitucional, em virtude do
artigo 144.º da Carta, não pode ter efeitos alguns quer para os
tribunais, quer no Parlamento. Sr.
Presidente: um outro dos propósitos reais do projecto é o que respeita
às autorizações, as quais efectivamente têm produzido o descalabro e a
ruína que o Sr. Ministro da Fazenda cita no relatório do orçamento,
chegando a afirmar que esse é o cancro principal da administração pública. Embora
sem explicações mais minuciosas, que muito importava aliás conhecer, o
Sr. Ministro diz que só em créditos especiais se deslocaram 86 000
000$000 réis desde 1891 até hoje! Pelo
presente projecto de contabilidade fica aos ministros o pleno direito de
fazer desviar os dinheiros públicos da sua legítima aplicação por meio
de créditos especiais, para casos de força maior e até para casos
imprevistos, isto é, para tudo, absolutamente tudo, quanto aos ministros
convenha. Desde
que é o próprio Governo que interpreta o que sejam esses casos
imprevistos, não há maneira nenhuma de pôr embaraços à sua acção
devastadora. Não há meio algum de se provar no tribunal que o ministro e
o director da contabilidade cometeram algum crime previsto na Carta, na
lei de responsabilidade ministerial e no Código Penal. Deixando-se
ficar o artigo que promete estas aberturas de créditos para tantos casos,
e ainda para todos os mais imprevistos, anula-se a intenção que pudesse
ter existido no primeiro autor do projecto, de pôr efectivamente embargos
à ruinosa administração pública por via da nova lei da contabilidade. Esse
pensamento moralizador, se existiu em alguém, inicialmente, foi de propósito
posto de parte pelo Sr. Ministro da Fazenda e pela comissão. Tudo
no projecto foi anulado, misturado e confundido expressamente para que o
Governo tenha nas suas mãos uma arma defensiva de certas entidades,
ofensiva contra a Nação, e proveitosa para as suas clientelas políticas
ou para os seus desejos especiais de restringir os direitos dos cidadãos
e de canalizar ilegitimamente os dinheiros da Nação. Eu,
a este respeito, não tenho senão a citar um exemplo. V.
Ex.ª viu ontem que o Sr. Conde de Penha Garcia, falando na sua qualidade
de antigo ministro da Fazenda, declarou que a monarquia não tinha nada a
recear, e, como quero ser exacto o mais possível, vou ler o que S. Ex.ª,
a este respeito, disse: Para
honra do regime monárquico, provar-se-á que ele não tem que pedir lições
a ninguém de ombridade e clareza. Veja
V. Ex.ª! Mas
não se limitou a dizer isto. Acrescentou que certamente o Governo e os
antigos ministros da Coroa provarão que os adiantamentos feitos à casa
real foram baseados em «razões de Estado»! Razões
de Estado! ... Quando
um homem como o Sr. Conde de Penha Garcia, sobre cujo carácter ninguém
tem dúvidas, mas sobre cujo espírito faccioso de político ele próprio
insistiu bastante em relação aos seus adversários, para que eu possa
insistir também relativamente a ele; quando o Sr. Conde de Penha Garcia,
para defender a monarquia, d que se declarou «leal, sincero e dedicadíssimo
servidor»; quando, para defender a sua monarquia, S. Ex.ª, a. , homem de
bem, mas político faccioso, chegou ao extremo de dizer que os ministros
virão explicar à Câmara certamente as «razões de Estado» que haviam
determinado esses adiantamentos à casa real, eu fujo deste país com medo
de que as «razões de Estado» do Sr. Schröter e do Sr. Presidente do
Conselho lhes dêem amanhã, graças a casos imprevistos, as mesmas
larguezas e facilidades para atirarem e deixarem atirar aos ventos da
imoralidade e corrupção - quando soprem de muito alto! - o dinheiro
arrancado ao pobre povo desgraçado, que o entrega com tanto suor e com
tantas lágrimas! ... Mas
nó projecto da contabilidade há ainda pior do que tudo quanto temos
criticado. Há
a concentração das funções da contabilidade pública e sua fiscalização
preventiva no Poder Executivo. Até agora, bem ou mal, tínhamos um
tribunal que devia fiscalizar a contabilidade pública. Se esse tribunal a
fiscalizava mal, reformasse-se o seu regimento. Se era insuficientemente
independente, transformasse-se a sua composição, fazendo-o sair
integralmente do próprio Poder judiciário. Isso
é que seria uma obra sã, uma inovação útil e honrada, aproveitando-se
e acentuando-se um sistema que, em matéria de contabilidade, é o único
conveniente aos povos latinos. O
Sr. Presidente do Conselho, que me está ouvindo, disse muitas vezes, nos
seus discursos de oposição, que o Poder Judiciário era ainda aquele
poder do Estado para que se podia apelar em circunstâncias graves da política
e. da administração pública. Até acrescentou chie só a ele podiam ser
confiadas as operações do recenseamento eleitoral e até a direcção
dos actos da eleição, por não subsistir nenhuma espécie de confiança
em qualquer organismo que dependesse directa ou indirectamente do poder
governamental. Por
isso eu quero ainda acreditar que o chefe do Governo associará o seu voto
ao meu, para que realmente se transforme o Tribunal de Contas num tribunal
unicamente judiciário, e que se entregue só a este, mas com plena
confiança, a fiscalização preventiva (Ias despesas do Estado, dando-se
depois à comissão parlamentar remodelada, e também autónoma, a
fiscalização efectiva e o apuramento das responsabilidades disciplinares
ou criminais que possam existir. Tudo
o mais não é sério, e especialmente não é o que quer o projecto:
entregar as funções da fiscalização a um empregado, director-geral da
Contabilidade, que é, em primeiro lugar, da escolha livre do Governo, em
segundo lugar, um dependente do ministro da Fazenda, em terceiro lugar, um
órgão do próprio Poder Executivo a fiscalizar, e, em quarto lugar, um
burocrata, cujas funções, cuja actividade, podem até deturpar-lhe o espírito,
quer se trate de um Domem só, quer de dois, um director e um inspector,
como pretende o Sr. José Cabral, e como provavelmente vai ser decidido
pela maioria, que assim realizará o sonho de arranjar mais um lugar, sem
a responsabilidade moral de o ter proposto ... JOSÉ
CABRAL - V. Ex.ª dá-me licença? Está V. Ex.ª enganado. Essa minha
emenda foi rejeitada pela comissão. AFONSO
COSTA - Agradeço a informação de S. Ex.ª, mas não felicito a
comissão por ter rejeitado a sua emenda. Não
conheço ainda a nota das emendas aprovadas ou rejeitadas pela comissão;
o que sei é que, no ponto de vista da eficácia maior ou menor de uma
fiscalização, aliás sempre imperfeita, fica o caso muito pior do que
ficaria com a proposta do Sr. José Cabral. Mas
continuemos. Dos
dois argumentos que se têm produzido para defesa desta parte do projecto,
um deles é depreciativo para o próprio funcionário visado. É o caso do
vencimento elevado a 4500$000 réis, sob o pretexto de que, com esse
ordenado fabuloso, Portugal fica com o empregado mais independente. Como
se só quem recebe muito dinheiro possa fugir às pressões dos governos!
Mas de que ordem serão então essas pressões? Passemos adiante. O
outro argumento é realmente espantoso. Diz-se que esse funcionário é o
Sr. André Navarro', e que por isso a fiscalização há-de ser boa! Eu
não conheço suficientemente o Sr. André Navarro para poder ter uma
opinião acerca dele; mas o Governo trouxe-o à discussão, como se ele
fosse uma parte do projecto, uma espécie de parágrafo especial do artigo
respectivo; e assim ele constitui um argumento vivo para se manter esta
inovação, que é um tremendo retrocesso na legislação de
contabilidade. Pois
bem. Vejamos serenamente o fantástico argumento, respeitando ,os seus
naturais melindres. Em
primeiro lugar, ocorre-me acentuar que o Sr. André Navarro não é
eterno, e pode ter uma doença, até mesmo urna doença cerebral, pela
terrível obrigação em que vai ficar, além de todas as que já tinha,
de examinar e pôr o visto em cem documentos de despesa por dia, segundo
os cálculos optimistas do Sr. Conde de Penha Garcia. Em
segundo lugar, ele não pode ser perpetuamente director da Contabilidade;
e na hora em que ele se demitir, ou aposentar, ou abandonar o lugar, ou
for destituído, teremos porventura de reunir as cortes
extraordinariamente, se elas estiverem fechadas, para ver quem é o
sucessor de S. Ex.ª, escolhido livremente pelo Governo, a fim de se
modificar a lei de contabilidade se ele não tiver as mesmas qualidades,
que se apontam, com grandes louvores, ao Sr. André Navarro?! Em
terceiro lugar, de que serve ter um homem com esses predicados excelentíssimos
nas funções árduas da contabilidade e do visto, se o Sr. Deputado
visconde de S. Miguel, correligionário do Governo k, e amigo íntimo do
Sr. Schröter, contou aqui um caso, que bastaria Iara deitar abaixo do seu
pedestal o falecido Conselheiro Carrilho, antigo director-geral da
Contabilidade, também considerado excelentíssimo, e recolhido ao túmulo
quase com honras fúnebres, que pareciam merecer uma entrada solene nos
Jerónimos? Disse-nos
S. Ex.ª que, estando Carrilho a assinar uma ordem de pagamento contra a
lei, lhe fez uma observação a esse respeito. A
resposta do funcionário foi pronta: «Então que quer? São ordens do
ministro.» E, como o Sr. Visconde lhe retorquisse que assim mesmo não
devia assinar, Carrilho replicou: «Eu digo-lhe o mesmo que me disse o
ministro: «enquanto o pau vai e vem, folgam as costas!» Ora
se Carrilho tinha esta impressão da administração e da contabilidade pública,
e se, apesar disso, toda a monarquia o considerou sempre tal-qualmente
considera agora o Sr. André Navarro - que loucura é esta do Governo e da
maioria de defenderem um projecto só com o fundamento de que o homem público,
que por ele fica com a chave dos dinheiros do povo na mão, merece, ou
pode merecer todos os encómios, ainda os mais retumbantes e calorosos? Não
pode ser. O
meu argumento, Sr. Presidente, é mais forte e pode exprimir-se sem ofensa
para quem quer que seja. Eu fundo-me no conhecimento que todos temos do
que é entre nós a psicologia do funcionário burocrata. Por
mais inamovibilidade que se lhe atribua, ele fica perpetuamente obediente
à vontade do Senhor Ministro, com a mesma reverência com que
curvam a espinha, perante a sua sobrecasaca gloriosa e o seu infalível título
de conselheiro, os empregados menores e os contínuos da sua Repartição
ou da sua Direcção-Geral. É já um hábito ele espírito. O Sr. André
Navarro não fugirá infelizmente à regra, e fará ao Senhor Ministro
tudo quanto ele desejar. É
por isso que, de uma maneira geral, não posso concordar em alue se
entregue a um só funcionário, dependente do Poder Executivo, uma obra tão
grave corno é a fiscalização dos sessenta e tantos milhares de contos
de réis que se arrancam anualmente à miséria do povo. De
resto, quando houvesse negação de visto, o Governo teria sempre meio de
levar a sua vontade avante. Sob este aspecto, as garantias do projecto são
ineficazes, porque ao Governo bastará, nos termos do § 1.º do artigo
33.º, reunir-se em conselho, «manter -i ordem dada», publicar a recusa
e o despacho no Diário do Governo, para que toda a acção
fiscalizadora do director-geral, se realmente se exercesse, completamente
se inutilizasse. Mas
o Parlamento, mais tarde, não poderá acudir a essa situação tomando
conhecimento do que tiver feito o Conselho de Ministros? Ah,
Sr. Presidente, eu já estou a ver o Sr. João Franco na sua terceira
maneira, porque depois da sua actual maneira liberal, que é a segunda da
sua vida política', havemos de ver S. Ex.ª apresentar a necessidade da
ditadura para a suposta salvação do Estado; e prescindir assim da
cooperação, um tanto ... incómoda, das minorias parlamentares. Nessa
terceira maneira, se o Sr. Navarro se recusar a visar uma ordem de
pagamento ao Sr. João Franco ou ao Sr. Ministro da Fazenda, reúne logo o
Conselho de Ministros nos termos do citado artigo e parágrafo, e sustenta
a ordem dada, declarando-a executória sem o visto, e dispensando-se os
ministros de dar conta às cortes do seu procedimento. Não
se admire V. Ex.ª a. , Sr. Presidente, quando assim suceder. O Sr. João
Franco voltará ao seu natural. O homem que em 1895 não hesitou em
invocar a salvação pública para publicar no Diário do Governo
decretos ditatoriais rasgando a Carta Constitucional, dissolvendo a parte
electiva da Câmara dos Pares, fazendo cobrar impostos por uma lei já não
existente, não hesitará em invocar a mesma razão para fugir à
fiscalização parlamentar, depois de ter passado por cima da fiscalização
burocrática, se tanto for necessário à execução dos seus desígnios,
das suas ideias fixas. Não
tenha o País ilusões. Mantendo-se
o sistema do projecto, as consequências serão, inevitavelmente, as que
deixo apontadas, e que ninguém poderá impugnar de boa-fé. Repito,
portanto, para colocar o Governo bem em foco: porque é que o Sr.
Presidente do Conselho não quer confiar ao Tribunal de Contas as funções
fiscalizadoras, estabelecendo para isso uma nova composição desse
tribunal, fazendo-o sair integralmente da magistratura, até por eleição
entre os magistrados, se tanto julgar necessário, isto é, com todos os
requisitos indispensáveis para que ele inspire plena confiança ao País,
que só assim ficaria tranquilo sobre a sorte dos dinheiros públicos? Lembre-se
o Governo, e sobretudo o seu chefe, que a par de algumas excepções,
infelizmente existentes e bem conhecidas, a magistratura é constituída
por cidadãos portugueses cheios de amor pátrio, de respeito à lei, das
mais altas virtudes pessoais e cívicas, e, particularmente, desse nobre
sentimento de independência, que faz colocar o dever acima de todas as
conveniências e fora do âmbito de quaisquer sugestões ou pressões. Faça
S. Ex.ª isto. Quando, neste projecto de contabilidade, se não queira
remediar outro defeito, esse da fiscalização que seja emendado, a fim de
que ela caiba a um tribunal verdadeiramente judiciário, com uma constituição
acima de toda a suspeita. Senão,
tenha o Governo como bem entendido que, depois das .tias revelações,
feitas nesta Câmara e na dos Pares, acerca dos desvios criminosos dos
dinheiros públicos, nós, os republicanos, não teremos dúvida alguma em
convidar e incitar o País a que não pague mais um real de impostos,
enquanto não houver contas certas, enquanto ti, to deixar de haver créditos
extraordinários, enquanto a fiscalização não pertencer a um tribunal
independente, dotado de todas as condições de garantia de que nem mais
um real do dinheiro do povo se desperdiçará! Ainda
o projecto tem outros defeitos, mas, pelo adiantado estado da hora, eu
passo, sem me deter, por cima de alguns deles, para ice tempo de me
referir especialmente ao que chamo o alçapão Final do projecto, aquele
que constitui o seu perigo máximo, aquele que tem a Nação em
sobressalto, aquele que, se não for riscado, constitui o Governo, que ora
me ouve, em responsabilidade criminal 1»r encobrimento de delitos
anteriores, previstos e punidos pela nossa legislação criminal. Vou ler
esse artigo, porque é conveniente que o tenhamos bem presente para contra
ele podermos protestar energicamente, eximindo-nos assim à tremenda
responsabilidade moral, que (Iole nos poderia provir, pelo simples facto
de o votarmos. Trata-se
do artigo 48.º, que diz o seguinte: «A
conta da gerência do ano económico de 1906-1907 e as dos exercícios
findos até 31 de Dezembro de 1906 entram em liquidação no dia 30 de
Julho de 1908. A liquidação destas contas será feita, abrindo-se os
créditos necessários para encerramento das respectivas operações. §
1.º Deverá oportunamente dar-se conta desenvolvida dessa liquidação
em relatório especial. §
2.º A liquidação de que trata este artigo deve estar completa em 30
de Junho de 1909.» Prevê-se
por consequência para a conta da gerência de 1906-1907, e para todas as
contas até 31 de Dezembro de 1906 relativas aos exercícios findos, que
seja preciso o longo prazo de dois anos, que começa em 30 de junho de
1907 e acaba em 30 de Junho de 1909, para sua liquidação e final
encerramento. Dois
anos, só para liquidar, sem conhecimento do País, o que ilegalmente se
tem feito na administração do Estado! Já
vê V. Ex.ª, Sr. Presidente, que há muitas despesas relativas a exercícios
anteriores, para liquidar. Não se sabe a quanto montam, mas sabe-se que há
necessidade de abrir créditos especiais para encerrar as respectivas
operações e que se destinam dois anos para essa lavagem de roupa suja, a
ocultas da Nação! Isto é a confissão do
que têm feito as administrações monárquicas do Estado até à subida
do Sr. João Franco ao Poder. Confissão legislativa e por escrito, porque
confissões orais, autorizadissimas e insuspeitas, têmo-Ias de muitos
homens públicos, que têm servido o rei, e especialmente do Sr.
Presidente do Conselho, quer quando estava na oposição, quer agora, no
Governo, em nome e com a autoridade da sua situação especial. Essas
confissões, porém, não são francas, e, por isso, não são sérias,
nem moralizadoras. Vêm encobertas por uma latitudinária autorização,
quase misteriosa, absolutamente enigmática, à qual eu não quero dar o
meu voto, nem nenhum homem de bem pode ligar o seu nome. Que
espécie de contas são essas, que é preciso tanto tempo para as
liquidar, e são precisos créditos especiais para as regularizar e
encerrar? A
quem respeitam essas contas? Quando foram abertas? Que conhecimento se deu
delas à Câmara? Onde está o relatório do Sr. Ministro da Fazenda
explicando que contas são essas? Que enigma ou guet apens é este,
armado à ingenuidade da Câmara, ou à desejada cumplicidade de uma parte
dela, para lhe arrancar o voto de aprovação, que constituirá o
encobrimento de crimes, por isso que se dará poderes para, pelos créditos
autorizados, se desviar dinheiro da sua legal aplicação? Não
sei, Sr. Presidente, como não sei também a quem toca a pedra, que sinto
envolvida nas dobras do artigo 48 ° Mas não importa. Vá a pedra a quem
toque, porque não sairá para fora do regime! O
Sr. Presidente do Conselho disse ontem na Câmara dos Pares, como que num
grito de confissão, ou de remorso, que tinha pena de ter já um passado
político, que o prende aos erros agora denunciados; mas daí não quer
que tirem conclusão contra ele, porque traz sempre consigo alguns sacos
cheios de arrependimento, que atira às mãos-cheias desordenadamente,
cada vez que lhe perguntam o que fez outrora como ministro da monarquia
... Assim,
é muito fácil. Oxalá que os outros não façam o mesmo, para que o País,
sobre estar defraudado, não fique também ludibriado e escarnecido. E
por isso insisto em perguntar: Para
quem foram esses dinheiros? Quem autorizou essas despesas ilegais? Por que
razão são precisos créditos especiais para o encerramento das
respectivas operações? O
Governo nada diz! Oferece à Nação a esfinge do artigo 48.º e cala-se!
Também os Srs. Luciano de Castro e Hintze Ribeiro, apesar de incitados a
isso, nada têm dito do que se passou nos seus diversos consulados. A esse
respeito - para me servir de uma frase muito do agrado do Sr. João
Franco, os dois chefes rotativos têm guardado de Conrart o prudente
silêncio. O
Sr. Presidente do Conselho também guarda esse prudente silêncio. Somente
quando lhe perguntaram deste lado da Câmara se no artigo 48.º das bases
do projecto estava envolvida a regularização de alguns adiantamentos à
casa real, o Sr. João Franco levantou-se prontamente, e disse por uma
forma positiva o seguinte: «Que,
se mais cedo tivesse falado nesse assunto, mais cedo veria confessado que
realmente se haviam adiantado dinheiros à casa real; que declarava, porém,
do modo mais positivo e terminante, que esses adiantamentos não seriam
liquidados deste modo, pelo alçapão enigmático do projecto; que haviam
de ser regularizados por outro meio, o qual constituiria um projecto de
lei especial; que reserva, no entretanto cuidadosamente a sua iniciativa
sobre a oportunidade da apresentação desse projecto à Câmara.» No
primeiro dia o Sr. João Franco chegou mesmo, no calor da sua palavra
incontinente, a fazer a afirmação - que aliás não foi mantida na sessão
seguinte - de que nós, os deputados, não tínhamos o direito de
interrogar o Governo sobre o assunto, porque - cómica razão! - esse
assunto era objecto de um projecto de lei, tal como, por exemplo, o da
contabilidade, o da reforma eleitoral e o do juízo de instrução, para o
qual o Governo reservava a sua iniciativa libérrima para o apresentar às
Câmaras quando entendesse, e na oportunidade que lhe parecesse, para só
então ser discutido e apreciado! Se
realmente o pensamento do chefe do Governo foi dizer que os deputados não
tinham o direito de o interrogar sobre o assunto (sinais de negativa do
presidente do Conselho), eu protesto energicamente contra essa afirmação,
que envolve a destruição completa da letra e do espírito da Carta, das
leis que a completam e do Regimento ela Câmara, acerca da iniciativa
parlamentar, dos direitos e deveres dos deputados relativamente à
fiscalização dos actos do Governo. (Novos sinais de negativa.) Mas, se o seu
pensamento não foi esse, eu não insisto mais no meu protesto. Sr.
Presidente: o Sr. Presidente do Conselho, fazendo referência expressa aos
adiantamentos à casa real, deixou o espírito público numa situação de
profundo e incontestável alarme. Não
é que realmente as palavras de S. Ex.ª constituíssem uma completa
novidade para os políticos militantes, e sobretudo para os dirigentes do
Partido Republicano, porquanto há muito era sabido que a casa real
recebia, por todas as maneiras e sob todos os pretextos, ainda os mais
inverosímeis e ridículos, dinheiros do Estado, contra a lei expressa. Sabíamos
isso, e assim o dizíamos. Mas todas as vezes que o pretendíamos espalhar
pelo povo; todas as vezes que a voz do orador nos comícios populares ou a
pena do jornalista nos jornais democráticos afirmavam uma verdade tão
incontestável como é esta, os esbirros, a polícia e a guarda municipal,
as patas dos seus cavalos, todos opressores às ordens da monarquia,
abafavam o som da nossa voz e esmagavam e trucidavam a liberdade de
imprensa, apreendendo os jornais, suprimindo-os, destruindo-lhes o tipo,
como sucedeu a uni dos jornais do meu querido amigo França Borges, cujo
nome de homem de bem, de jornalista insigne, de patriota devotadíssimo,
eu folgo de recordar e saudar dentro desta casa do Parlamento. Não
foi portanto surpresa completa para nós, os dirigentes do Partido
Republicano, nem mesmo para a parte mais ilustrada da Nação Portuguesa,
o que veio dizer à Câmara o Sr. João Franco. Foi-o, porém, para o
grande povo, para a massa geral dos cidadãos, para a parte mais numerosa
e mais útil clã Nação, aquela que nenhum governo compreendeu ainda.
Para essa pobre gente a revelação do Governo foi, não só uma surpresa
alarmante, mas uma desolação profunda. Depois
disso, o regime ficou para sempre aluído nos seus fundamentos essenciais.
Não mais a monarquia - não mais! - poderá reconquistar nenhuma espécie
de prestígio, nem aquela autoridade moral, que seria a única razão lógica
da sua existência. Compreende-se
perfeitamente. Em face dessas afirmações do Governo, o pobre povo, que
vive sem pão, que sua, que padece fome, que suporta em Lisboa e Porto o
pesadíssimo encaro do imposto do consumo na importância pavorosa de 2.800.000$000
réis só na capital no último ano, que se vê sem instrução, sem
defesa interna ou externa - como não se havia de revoltar? Todas
as classes estão sobrecarregadas desde 1891 com as consequências de uma
crise temerosa, também produzida pela monarquia.; todo o País tem
trabalhado para se desembaraçar dessa crise, que é a mais profunda que
país algum europeu tem atravessado; todos os portugueses têm empregado
os seus melhores esforços - até contra a vontade dos Governos! - para
que o País subsista e se erga; ao mesmo tempo que esse esforço titânico
tem sido realizado pela Nação, todos os empregados públicos têm
sofrido deduções exageradíssimas; os portadores da dívida pública
ficaram quase sem o juro a que tinham direito, ninguém tem podido contar
com o fruto do seu trabalho! ... E,
no entretanto, é nesta situação angustiosa, tornada ainda mais aflitiva
pela terrível tuberculose, que uma família, alcunhada de portuguesa, com
uma dotação fixada por lei na quantia de 525.000$000 réis -
absolutamente fabulosa para o nosso orçamento e para a nossa pobreza -,
que essa família, recebendo semelhante soma sem deduções e até,
talvez, com o aumento resultante do modo de pagamento - ponto este especialíssimo
que só poderei apreciar quando vier a nota exacta da conta corrente com a
casa real -, que esta família, tendo paços e casas, que o Estado lhe
cede gratuitamente, e ainda exigindo, a pretexto de obras nessas casas e
paços, quantias verdadeiramente excessivas que atingem centenas de contos
de réis, e que se distribuem por artigos de mobiliário, jardins,
cavalariças, casas de guarda de automóveis, etc., o que tudo constitui
um escárnio e o maior desprezo pela miséria em que o País se debate: -
é nesta situação gravíssima, repito, que uma tal família, não
contente com tudo isso, ainda por cima ousou arrancar aos cofres do
Estado, com a cumplicidade dos respectivos ministros, somas elevadíssimas,
cujo quantitativo total ainda não se conhece exactamente, mas que em
qualquer caso importam o desdouro, para todo o sempre, de quem nesses
actos interveio e a condenação formal e inevitável do regime que assim
se atolou em crimes e em lodo! O
PRESIDENTE - V. Ex.ª está falando há uma hora. Tem um quarto de hora
para concluir o seu discurso. AFONSO
COSTA - Sr. Presidente: o alarme causado pelas declarações do Sr.
Presidente do Conselho na consciência pública é o mais grave, o mais
profundo, o mais irredutível que pode ser. Foi
por isso que, no uso dos meus direitos e no cumprimento dos meus deveres,
e para me habilitar a responder às declarações do chefe do Governo,
requeri no primeiro dia em que voltei à Câmara, na sessão de
sexta-feira, que me fossem enviados todos os esclarecimentos possíveis
acerca dos chamados «adiantamentos» à casa real. Pedi esses
esclarecimentos com a maior urgência e, sendo possível, para o dia
seguinte. Eles não vieram, porém, nesse dia, nem no imediato, nem ainda
hoje. Mas
o que é mais grave é que o Sr. Ministro da Fazenda, tendo tido a palavra
sobre o projecto em discussão, para responder ao Sr. Conde de Paçô
Vieira, não proferiu uma única palavra de explicação, não teve uma única
palavra de cortesia, para empregar uma expressão muito do agrado de S.
Ex.ª, para dizer qual o motivo por que não havia deferido o meu
requerimento, feito em nome da lei, como fiscal dos actos do Poder
Executivo, para que fosse enviada, o mais cedo possível, a esta Câmara,
a nota dos adiantamentos feitos à casa real, explicando quando foram
feitos, por quem autorizados, em benefício de que pessoas, e em que
circunstâncias, e, sobretudo, quais as providências que o Sr. Presidente
do Conselho - em vista da carta do chefe do Estado, de 16 de Maio, que S.
Ex.ª considerava uma carta de alforria - havia necessariamente de ter
tomado, para fazer responder os responsáveis por esses crimes, e para
fazer entrar nos cofres do Estado todas as somas adiantadas, ou desviadas,
com os respectivos juros da lei ou com os que fossem pagos em qualquer
estabelecimento de crédito, se o Governo aí houvesse levantado o
dinheiro destinado à família real. O
Governo, porém, recusou-se a dar qualquer informação a este respeito; e
é ainda sobre esse mistério, sobre esse ponto de interrogação, quer
relativamente ao quantitativo, quer ao destino, quer às ocasiões desses
adiantamentos, quer ao nome dos ministros que os autorizaram, que me vejo
forçado a dirigir-me ao Governo e à Câmara, fazendo-lhes duas observações
essenciais. Quanto
à Câmara, basta notar que o artigo 48.º do projecto não faz distinções,
para se concluir que não basta a palavra do Governo, ou do seu chefe,
qualquer que seja a convicção com que este fale, para ficar arredada da
disposição desse artigo a regularização dos adiantamentos à casa
real. O artigo é vago: compreende todas as despesas ilegais que foram
feitas até agora; e, como autoriza a abertura de todos os créditos
necessários para se encerrarem as respectivas operações, é claro que,
enquanto não se determinar o contrário, enquanto não se fizer emenda ao
artigo, fica qualquer governo autorizado por ele a regularizar e
legalizar, fraudulentamente, tudo quanto se concedeu criminosamente ao rei
e aos seus parentes. Poderá não o fazer o Sr. João Franco, se for
governo, ou enquanto o for; mas já não têm a mesma obrigação os
outros executores da lei. E assim, se a comissão de fazenda quer fazer
com que o artigo 48.º não abranja os créditos à casa real, tem que
declará-lo expressamente no próprio artigo, porque, se vai ao Poder do
Sr. Hintze Ribeiro ou o Sr. José Luciano de Castro, podem, em nome das
razões de Estado, de que falou o Sr. Penha Garcia, fazer incluir nesse
artigo os adiantamentos à família real. Não
apresento emendas ao projecto, nem sequer a este artigo, porque não quero
associar o meu nome a tal projecto, que rejeito in limine. Cumpre,
porém, à maioria ter estas observações em atenção, a fim de não
ficar maculada na sua dignidade com a execução possível deste artigo em
absoluta divergência com as declarações do Sr. Presidente do Conselho
de Ministros. Quanto
ao Governo, quero levantar a frase do Sr. Presidente do Conselho, quando
disse ontem na Câmara dos Pares que, tendo feito a sua célebre declaração
dos adiantamentos há oito dias, não viu o País circunstância alguma
grave que o fizesse convencer de que a Nação ficara sobressaltada com a
sua revelação. Ora
S. Ex.ª deve ter em atenção que, em assuntos destes, quantos menos
factos anormais S. Ex.ª vir, tanto mais grave é a situação do País. Não
tenha o Sr. Presidente do Conselho ilusões. O
País está, não só profundamente alarmado, mas profundamente irritado e
resolutamente decidido a não consentir nos propósitos do Governo a este
respeito. O
Sr. Presidente do Conselho pode e deve ser obrigado a trazer à Câmara, o
mais cedo possível, os documentos relativos aos adiantamentos. É
a opinião pública que o exige: ela o obrigará, em nome da lei, a trazer
à Câmara esses documentos, que são da Nação, e eu iria, em nome dela,
arrancar ao Ministério, se tivesse meio de o fazer. Em
todo o caso eu quero desde já dizer a S. Ex.ª, em resposta à sua
declaração de que serão regularizados os créditos da casa real, que o
País não consentirá nessa regularização. O
País não consentirá em nenhum aumento da lista civil; não consentirá
em nenhuma regularização de dinheiros desviados criminosamente dos
cofres públicos. O
País não transige com crimes, nem com criminosos; nem admite ao Sr.
Presidente do Conselho que S. Ex.ª se coloque no papel de encobridor,
transformando assim a sua vida pública e a sua própria vida pessoal, de
sorte a não poder continuar a merecer o conceito em que é tido pelos
seus amigos e pelos seus adversários, que o respeitam. Nos
legem habemus.
Nós temos lei! Não se trata agora de adiantamentos a um funcionário público
qualquer nos termos gerais e usuais, como disse o Sr. Conde de Penha
Garcia. Trata-se
de verdadeiros desvios de dinheiro, contra lei expressa. Esta lei é a de
28 de Junho de 1890, para a qual chamo a atenção da Câmara e do País
inteiro. Que
diz a lei? Ouça a Nação! Depois de fixar em réis 525.000$000 as dotações
e alimentos de toda a família real, diz expressamente o artigo 6.º: «Nenhuma
outra quantia além das mencionadas, qualquer que seja a sua natureza ou
denominação, será abonada para as despesas da casa real.» Não
há nada mais claro, não há nada mais terminante, não há nada mais
imperativo. Além
do que está determinado na lei, isto é, réis 525.000$000 por ano,
nenhuma outra quantia, qualquer que seja a sua denominação ou natureza,
pode ser abonada à família real. Se
alguma foi abonada, foi-o fraudulentamente; foi retirada fraudulentamente
dos cofres do Estado. Praticou-se
um crime, que ninguém pode desculpar, que o chefe do Governo não pode
encobrir. S.
Ex.ª, que põe a salvação pública acima de tudo, sabe que desviar
dinheiros, contra lei, da sua justa aplicação, é um crime, que um homem
de bem não pode regularizar, nem desculpar, nem esconder à Câmara, seja
por muito, seja por pouco tempo. É
um facto acerca do qual não se admitem nem se aceitam arrependimentos. O
País, diz o chefe do Governo, tem-no acreditado na sua nova fase de
arrependimento. Tem
o Sr. Presidente do Conselho esta presunção, embora possa enganar-se. Eu
quero, porém, deixar-lhe ainda por algum tempo semelhante ilusão. Fia-se
S. Ex.ª em que o País, estando realmente sequioso de liberdades e de bons
costumes, acreditará em que ele deixou de ser carrasco das liberdades públicas
de 1895 e 1896? Admitamos
isso por instantes. No
que, porém, o País não acredita, nem acreditará jamais, é que, em
questões de dinheiro, possa haver alguma espécie de arrependimento útil. Se
assim como S. Ex.ª fez a Lei de 13 de Fevereiro, com a qual calcou as
liberdades públicas, assim como fez o juízo de instrução criminal, com
o qual deixou os homens de bem à mercê de um esbirro; assim como fez a
reforma da Carta Constitucional em ditadura', tivesse desviado um ceitil
dos cofres públicos, com conhecimento da Nação, não podia voltar ao
Poder, sem que fosse apedrejado e repelido ignominiosamente. Repito:
em questões de dinheiro não há arrependimentos nem contrições. Quando
se trata de uma Nação tão pobre como a nossa, tão cheia de fome e de
desgraças, como Portugal, desviar dinheiro é um crime tão insusceptível
de toda a espécie de arrependimento, que não pode o Sr. Presidente do
Conselho, sem manchar os seus próprios lábios, querer fazer acreditar à
Câmara que o rei é também um arrependido em questões de dinheiro, como
S. Ex.ª o diz ser cm questões de liberdade. Mas
o que é sobretudo singular, Sr. Presidente, é que o chefe do Governo não
conheça a gravidade da situação - não já da sua própria, mas da
mesma monarquia - ao apresentar descarnadamente este problema dos
adiantamentos, que tem de ter uma solução radical, como radical foi,
também, a maneira como se malbarataram os dinheiros públicos. Basta
para isso notar em que condições falou o chefe do Estado na Sociedade de
Geografia e o alarme que as suas palavras causaram. Sabe-se
por declaração do Sr. João Franco que o rei combinou com ele, logo em
Maio, desempenhar-se na Câmara esta tragicomédia do arrependimento. Pois
bem! O
arrependimento do rei ficou bem claro, no dia em que falou na Sociedade de
Geografia, declarando, ainda antes de estar regularizada a sua situação,
de ter restituído o que indevidamente recebeu, que era necessário que o
País tivesse uma administração honrada e honesta. Pedir
uma administração honesta e honrada quem não teve ainda a honestidade e
a honradez de pagar à Nação o que indevidamente desviou dos cofres públicos
... é, pelo menos, assombroso! O
PRESIDENTE - Observo a V. Ex.ª que tenho dado provas da maior tolerância,
do que toda a Câmara é, por certo, testemunha. Tenho portanto autoridade
para pedir ao Sr. Dr. Afonso Costa que não discuta mais a pessoa do rei. V.
Ex.ª não tem empregado expressões injuriosas e, por isso mesmo, tenho
consentido em que V. Ex.ª, contra o disposto no Regimento e na Carta
Constitucional, se tenha referido ao augusto chefe do Estado. A
discussão, porém, vai tomando um caminho tal, que a mesa receia que V.
Ex.ª profira qualquer expressão que a obrigue a intervir, o que seria
muitíssimo desagradável. Nestas
condições, peço a V. Ex.ª, a. , que tem já um discurso de cinco
quartos de hora, que não diga nem mais uma palavra a respeito de el-rei.
É um pedido que dirijo ao ilustre Deputado, em nome do Regimento, da lei
e em meu próprio nome. S.
Ex.ª, como administrador, ou procurador nosso, tem o dever de trazer à Câmara
as contas dos adiantamentos feitos, e dizer depois quais as pessoas que
aproveitaram com eles. A
Nação ordena, e declara indispensável, que essas pessoas reponham as
quantias desviadas, com todos os juros, sem excepção de uma só verba;
declara formalmente que não consentirá no aumento da lista civil, nem em
qualquer regularização, nem em outro modo acomodatício de pagamento. E
mais ordena o povo, solenemente, que, logo que tudo esteja pago, diga o
Sr. Presidente do Conselho ao rei: -
Retire-se, Senhor, saia do País, para não ter de entrar numa prisão, em
nome da lei! ... VOZES - Ordem! ordem! (Levanta-se sussurro.) O PRESIDENTE (agitando a campainha) - Peço ordem. (A agitação aumenta progressivamente. Todos os deputados estão de pé.) AFONSO
COSTA (conseguindo dominar o tumulto) - Por muito menos crimes do que os
cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em Franca, a cabeça de Luís
XVI! O
PRESIDENTE (agitando a campainha) - Peço ordem. Ou o Sr. Dr.
Afonso Costa retira as últimas expressões empregadas, ou terá de lhe
ser aplicado o Regimento. AFONSO
COSTA - Por muito menos rolou no cadafalso a cabeça de, Luís XVI. (Grande
sussurro e agitação.) O
PRESIDENTE - Proponho à Câmara a censura regimental ao Sr. Deputado
Afonso Costa. (Consultada,
a Câmara resolveu afirmativamente.) O
PRESIDENTE - A Câmara resolveu aplicar ao Sr. Deputado Afonso Costa a
censura, com suspensão de exercício das suas funções de deputado.
Convido V. Ex.ª a sair. JAIME
DE SOUSA - Sr. Presidente: V. Ex.ª diz-me o que se votou? VOZES
- Não se ouviu nada! (Trocam-se
muitos apartes.) AFONSO
COSTA - Eu respondo pelos meus actos! (O
ilustre deputado diz outras frases que não são ouvidas.) O
PRESIDENTE - V. Ex.ª não pode falar. Convido-o a retirar-se do edifício
das cortes. (Recrudesce
o tumulto.) VOZES
- Saiamos todos! O
PRESIDENTE - Está suspensa a sessão. Convido todas as pessoas presentes,
que não são deputados, a ausentarem-se da sala. (Recusando-se
o Sr. Dr. Afonso Costa a aceder ao convite da presidência, entra na sala
a força armada, que o acompanha até fora do edifício. Com o Sr. Dr.
Afonso Costa saem nessa ocasião da sala os Srs. Deputados Alexandre
Braga, António José de Almeida, João de Meneses, João Pinto dos
Santos, José Augusto Moreira de Almeida e António Centeno e o par do
Reino Sr. João Marcelino Arroio.) |
Fonte : Oliveira Marques, A. H., Obras de Afonso Costa, Discursos Parlamentares, I: 1900-1910, Lisboa, Europa-América, 1973, págs. 158-183;
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