Napoleão Bonaparte, primeiro Cônsul

Napoleão Bonaparte, primeiro cônsul

 

DISCURSO DE NAPOLEÃO BONAPARTE.

 

Exposição apresentada ao Corpo Legislativo sobre os motivos para ratificar o Tratado de paz 1 feito em Madrid a 29 de Setembro de 1801 entre a República Francesa e o Príncipe Regente de Portugal, debaixo da mediação da Espanha

 

 

Esta exposição ao corpo legislativo do executivo francês sobre o tratado de Madrid de 1801, foi evidentemente escrita por Napoleão Bonaparte, pois só ele se poderia lembrar do que tinha escrito sobre Portugal, quando após a batalha naval de Aboukir, que isolou o exército francês que comandava no Egipto, descobriu a existência de navios portugueses na baía.

O mais interessante desta exposição é que ela é, ainda hoje, duzentos anos depois, a base da análise sobre as relações políticas e económicas de Portugal com a Grã-Bretanha, criadas pelo Tratado de Methuen de dezembro de 1703. De facto, o texto, ao ser publicado em França em 1864, serviu a Luz Soriano, Latino Coelho e outros autores portugueses do século 19, como base para a sua visão do domínio britânico em Portugal. 

O Tratado foi ratificado pela França em 19 de outubro de 1801, e tornado decreto em 10 de dezembro seguinte, após ter sido discutido no Corpo Legislativo em 30 de novembro e votado no Tribunado em 2 de dezembro.

 

«Qualquer monopólio ou privilégio exclusivo em proveito de alguma nação nos mercados de outra, não prejudica somente às mais nações que afasta desses mercados, mas ainda à que o concede pois lhe tira o recurso de achar pela concorrência preços mais vantajosos.»

 

Cidadãos legisladores.

- O Tratado que tenho a honra de vos propor é mais um acto que devemos às sábias medidas tomadas pelo Governo, e à valorosa dedicação dos exércitos da República.

Não será difícil demonstrar-vos as vantagens que oferece para a honra e prosperidade das duas nações.

Compreendem-se nele três disposições principais.

Pela primeira se restabelece a paz e a amizade entre a República francesa e o reino de Portugal; e as relações políticas entre as duas Potências ficam no mesmo estado que antes da guerra.

Pela segunda determinam-se os limites futuros entre a Guiana francesa e a portuguesa. Não era possível escolher outros melhores num país quase deserto, do que os rios e as montanhas; e era natural que a França, com possessões nessa parte muito menos extensas que as de Portugal, fizesse aproximar esses limites ao antigo ponto em que se haviam fixado.

Enfim a terceira dispõe que se negociará entre ambas as Potências um Tratado de comércio e de navegação, que há de lixar definitivamente as relações comerciais entre a França e Portugal; mas entretanto restabelecer-se-ão as comunicações: os cidadãos e súbditos das duas Potências gozarão igual e respectivamente, nos Estados de uma e de outra, de todos os direitos de que aí gozam os das nações mais favorecidas; os géneros e mercadorias provenientes do solo e das fábricas de cada um dos dois Estados serão admitidos reciprocamente sem restrição, nem sujeição a qualquer direito que não pese igualmente nas mercadorias e géneros análogos importados por outras nações; e os panos franceses poderão imediatamente ser introduzidos em Portugal na condição das mercadorias mais favorecidas.

Estas estipulações provam que o Governo não ultrapassou os limites da moderação; não quis nada contrário ao interesse de uma nação que pediu a nossa amizade. A mais estrita justiça prescrevia completa reciprocidade; limitou-se a pedi-la: abre novos mercados à indústria francesa, mas não quer engrandece-la por meio de privilégios ou de um monopólio; pretende fazê-la alcançar por nobre emulação o grau de prosperidade a que deve chegar. Se o Governo francês houvesse consultado somente o direito da força, poderia ter exigido mais de Portugal: julgou, pelo contrário, que quanto menos poderosa estava essa nação, menos conveniente nos era enfraquece-la.

Portugal já era há muito uma Potência independente, quando em 1581 passou para o domínio espanhol. Os Portugueses já haviam dobrado o cabo da Boa Esperança, aberto novo caminho ao comércio das Índias, e enchido com o seu nome esse rico país, onde se assinalaram por inúmeras façanhas e formaram os primeiros estabelecimentos europeus. Tinham descoberto o Brasil, e começado a fundar nessa parte da América uma colónia rica.

Não puderam as demais Potências da Europa ver sem receio, que se reunia aos reinos de Espanha uma monarquia tão vantajosamente situada para fazer uma grande parte do comércio do mundo, e que possuía os mais ricos e vastos estabelecimentos em ambos os hemisférios.

Assim quando os Portugueses em 1640 tentaram restituir ao trono a casa de Bragança, receberam poderosos socorros, mas nenhuma Potência lhos ministrou mais eficazes que a França.

Entre as duas nações formaram-se então relações de amizade, que só esfriaram no começo do século 18.

Quando o neto de Luís XIV passou à Espanha, o Governo português, assustado por ver naquele trono um Príncipe da casa de Bourbon, entregou-se, por assim dizer, à Inglaterra, e acedeu a estipulações que lhe arruinaram a indústria e tornaram quase nulas as nossas antigas relações com ele.

O Tratado de 27 de dezembro de 1703, confirmado em 1713, entregou o comércio de Portugal ao monopólio dos negociantes e fabricantes ingleses, enquanto as mais nações foram, para assim dizer, excluídas dele.

Admitiram-se em Portugal todos os panos de lã da Grã-Bretanha, com a condição de serem recebidos na Inglaterra os vinhos portugueses pagando somente os dois terços dos direitos que pagassem os vinhos de França.

Por meio deste Tratado fizeram os Ingleses que as fábricas portuguesas primeiro definhassem, e depois se aniquilassem: tornaram-se fornecedores e agentes gerais do comércio de Portugal, e quase todas as riquezas que este extraía das suas colónias vinham por conta dos Ingleses e passavam pelas suas mãos; desta sorte se reduzia Portugal a uma simples colónia da Inglaterra, a um mercado quase privativo para sua indústria.

Debalde um ministro esclarecido indignado com semelhante escravidão, desenvolveu uma energia e tenacidade pouco vulgares, não poupando coisa alguma para libertar o seu país: o génio e a firmeza não deixaram traços tão profundos que os Ingleses não pudessem recobrar, depois que ele foi demitido, uma grande parte da sua influência. De certo que não tinham maior quinhão no comércio das suas próprias colónias do que tiveram no de Portugal.

Não só as suas manufacturas achavam saída neste reino, mas ainda os Ingleses serviam de intermediários entre Portugal e os mais povos manufactores da Europa; e como não entravam sem proveito por terceiros nestas transacções, o seu lucro era uma perda real tanto para Portugal, como para os outros povos manufactores.

Não era mais feliz o Governo português nas providências para assegurar a sua independência política; só tinha fracos meios de defesa, e achava-se reduzido a contar com os socorros da Potência em cuja dependência se colocara.

Os Portugueses, naturalmente plácidos e tratáveis, sensíveis à honra e amigos da glória, afáveis com os estrangeiros, e amantes das ciências e das artes, não deveriam ter visto na revolução francesa senão o rapto de um povo generoso para a liberdade: mas o Governo português estava muito dependente da Inglaterra para deixar de seguir o seu exemplo.

O navio francês Saint Jacques, confiado no direito das gentes, entrou no porto de Santiago, contando achar ali amizade e protecção da parte dê uma nação que não nos havia declarado guerra: foi aprisionado, confiscado e vendido. Portugal mandou depois os seus exércitos para nos combaterem nos Pirenéus: juntou os seus navios aos das esquadras inglesas, e apresentou-se mais declaradamente no número dos nossos inimigos.

Depois da paz de Campo Formio Portugal receou que os exércitos franceses se dirigissem para as suas fronteiras, atravessando o território espanhol. Enviou um embaixador a Paris, que concluiu e assinou um Tratado definitivo, mas o Governo português recusou ratificá-lo, e essa recusa devia naturalmente aumentar o rancor já produzido pela guerra entre as duas nações. Portanto viu-se desde essa época que as esquadras portuguesas cruzaram diante de Malta e de Alexandria: e lembra-nos que o general do exército do Oriente, à vista dos navios portugueses, declarou na ordem do dia do exército que chegaria tempo em que a nação portuguesa havia de pagar com lágrimas de sangue a afronta que fazia à República francesa.

O Tratado de Luneville, que pacificou o continente, dava ocasião de se obterem do Governo português as satisfações que havia direito de lhe exigir. Concluiu-se em Madrid uma convenção entre a Espanha e a França, pela qual se estabeleceu que Sua Majestade o Rei de Espanha e a República francesa formariam um exército combinado para obrigar Portugal a desligar-se da aliança com a Inglaterra, e a deixar que as tropas espanholas e francesas ocupassem a quarta parte do seu território até à paz definitiva.

Esta convenção não tinha por fim satisfazer um vão sentimento de orgulho, ou simplesmente vingar ofensas, que verdadeiramente deixam de existir desde que é possível castigá-las; mas era uma parte da vasta combinação política, que se ligava desde o Báltico até ao Hanover, do Hanover até aos confins de Otranto, e cujo laço comum era a paz geral.

O Governo francês cumpriu as suas promessas: uma divisão com artilharia numerosa atravessou os Pirenéus comandada pelo general Leclerc. O general Saint-Cyr, oficial de mérito distinto, foi mandado para junto do general espanhol para concertar todas as operações de guerra.

Começaram as hostilidades mas depois de duas ou três escaramuças, em que se empenhariam quatrocentos ou quinhentos homens de parte a parte, o general espanhol concluiu em nome do seu Governo o Tratado ele Badajoz, em que lhe esqueceu de exigir o primeiro e principal interesse da Convenção de Madrid.

O Primeiro Cônsul fez saber imediatamente, que da sua parte não podia ratificar o Tratado de Badajoz; que esse acto era contrário à política geral e ao interesse dos aliados: que estava em oposição formal com a convenção de Madrid; e que a consequência imediata deste Tratado para S. M. C., resolvendo-se a ratificá-lo separadamente, seria a perda da Trindade. O Gabinete de Madrid passou avante, ratificou separadamente o Tratado de Badajoz, e assim sacrificou a Trindade.

Depois da pacificação de Espanha continuámos a ficar isolados muitos meses em guerra com Portugal. Teríamos empreendido e realizado sós o que pela Convenção de Madrid a Espanha devia fazer de acordo connosco; haveríamos obtido, até à paz definitiva, a ocupação da quarta parte do território português; mas os acontecimentos precipitaram-se, as negociações começadas há muito em Londres, chegavam à sua madureza; o Governo deu as suas ordens, e assinou-se a paz com Portugal dois dias antes da assinatura dos preliminares em Londres.

O Governo francês procurou regular com Portugal as nossas relações comerciais de modo útil a ambas as nações, e fixar pelo Tratado os limites entre a Guiana francesa e a portuguesa, com bastante cuidado para prevenir qualquer contestação futura. Para conseguir o primeiro objecto pediu a Portugal a reciprocidade, que este não podia recuar sem prejuízo de seus próprios interesse.

Todas as nações precisam mais ou menos umas das outras; e quer tenham de comprar quer tenham de vender, nada lhes convêm mais que chamar aos seus mercados o maior número de compradores e vendedores. Qualquer monopólio ou privilégio exclusivo em proveito de alguma nação nos mercados de outra, não prejudica somente às mais nações que afasta desses mercados, mas ainda à que o concede pois lhe tira o recurso de achar pela concorrência preços mais vantajosos.

As disposições do Tratado são portanto conformes aos princípios por que têm de se dirigir todas as nações comerciantes, e se essa, disposições devem operar felizes mudanças nas nossas relações comerciais com Portugal, as duas nações devem igualmente congratular-se.
Quanto aos limites entre as duas Guianas, podemos dizer que a Convenção do 1700 os fixou no rio Amazonas, visto que os Portugueses se obrigaram por esta Convenção a derrubar todos os fortes que tinham na margem esquerda daquele rio; o Tratado de Utrecht determinou-os posteriormente de um modo incompleto, cheio de contradições, e que originou controvérsias continuadas até agora.

A Guiana francesa é a colónia que unicamente nos resta no continente da América, enquanto os ingleses, espanhóis, portugueses e holandeses ali possuem vastos e ricos estabelecimentos, considerados por eles como valioso meio de prosperidade.

Caiena, porto principal da ilha deste nome, é a capital da Guiana francesa. Diminuída pela cultura a insalubridade do clima, bem conhecida a navegação para aquela colónia, já o seu nome não causa terror. Acham-se aí naturalizadas as mais ricas produções da Ásia e dos seus arquipélagos, às quais a transplantação deu uma vegetação mais abundante, mais vigor e fecundidade que no seu país natal. A Guiana cria gados, madeiras e outros produtos com uma abundância que só tem por limite o número de homens que se pôde empregar nos trabalhos e na guarda dos rebanhos.

Além de cem léguas, partindo da beira-mar pouco se conhece desse país que ainda não experimentou a cultura: encontram-se nele dispersas algumas tribos de nações selvagens, que se têm afeiçoado aos franceses, porque as havemos tratado com humanidade e brandura: negociámos com aqueles selvagens, esperando que os progressos da cultura elevem o valor das terras interiores da Guiana.

Esta colónia está longe de um estado de prosperidade: mas não deixa por isso de ter grande importância para nós, quer a consideremos em relação aos socorros que pode prestar a Caiena e às outras nossas colónias, quer a contemplemos como um país novo, destinado a receber no futuro os nossos concidadãos, que por desejo de fortuna, pelas desgraças, ou pela inquietação natural de muitos homens, se afastarem da mãe pátria.

Seria erro pensar que os Europeus não podem habitar a zona tórrida; o Amazonas, o maior rio do universo, serpenteia paralelo à equinocial, a dois ou três graus sul desta linha, com que se confunde na sua foz; e Lacondamine, que lhe percorreu todo o curso, não achou o calor insuportável. Este modifica-se à proporção que se entra nas terras altas, e a beleza do país dá-nos a esperança de fundar ali realmente uma colónia importante.

De certo que só com poderosos auxílios chegarão a realizar-se estas esperanças; mas primeiro que tudo era conveniente determinar os limites ainda incertos da colónia.

Se no Parlamento inglês se levantou discussão sobre os meios de conciliar esta demarcação com o Tratado preliminar concluído entre a França e a Inglaterra, que aceita a integridade das possessões portuguesas, não pode esta discussão fazer surgir sérias dificuldades; é evidente que a cláusula do Tratado preliminar não se referiu senão à invasão de que Portugal estava ameaçado pelo exército francês, que se achava nas suas fronteiras.

Não pode, além disto, aplicar-se esta cláusula à determinação de limites, que tem sido constantemente discutida. Importava a Portugal e à França prevenir toda a contestação futura; e não se pode, sob nenhum aspecto, considerar a disposição que tem por fim este objecto, como um ataque à integridade do território de Portugal.

Enfim, a única vantagem para a França será possuir sem contestação um território que está hoje inculto, mas que pode, pelo, cuidados e protecção de um Governo ilustrado e sempre cuidadoso da prosperidade pública receber prontos e grandes melhoramentos, sem causar inveja nem saudades a Portugal, a quem fica muito mais território do que pode cultivar

As novas relações entre os dois países tornar-se-ão mais activas; as recíprocas vantagens que delas tirarem concorrerão para aproximar dois povos destinados a estimarem-se e amarem-se; e Portugal recobrará na Europa a posição que convêm a um estado que deve zelar a sua independência e prosperidade.

Em vão pretenderiam alguns homens, animados por antigas paixões e insensíveis aos clamores da humanidade, ver prolongar uma guerra que já custou sangue e tesouros à Europa; os seus murmúrios não prevalecerão sobre a sabedoria que, enfim, preside nos conselhos dos Governos.

Podemos esperar que dentro em pouco um último Tratado porá termo a todas as desgraças da guerra, e que Tratados fundados na justiça e no interesse comum assegurarão por largo tempo os inapreciáveis benefícios da paz.


Notas:

1. As cláusulas deste Tratado foram nomeadamente anuladas pelos artigos adicionais do Tratado de Paris de 30 de Maio de 1814.

 

Fontes :

Júlio Firmino Júdice Biker, Suplemento à Colecção dos Tratados, Convenções, Contratos e Actos Públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais Potências desde 1640 ..., tomo XIII, Lisboa, Imprena Nacional, 1878 , págs. 394-411;

Jules de Clerq, Recueil des Traités de la France depuis 1713 ..., Tome 1.er: 1713-1802, Paris, Amyot, 1864, págs. 457-463.

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