DISCURSO DE ALMEIDA GARRETT
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As facções não têm aqui órgão;
todos somos de um partido. Mas, quando não é para se lamentar
profundamente que a tal ponto tenham as facções confundido as coisas mais
simples, sofismado os princípios mais claros, que até aqui cheguem ecos de
suas desvairadas e irracionais pretensões transmitidos por lábios, aliás
honestos, que eu suponho verdadeiros mas iludidos mas que repetem as fátuas
aberrações de um cérebro confundido, enredado no labirinto que à volta
de toda a gente de bem formam essas facções perversas para a desorientar e
perder! Iludidos!.. . Sim, sois iludidos vós
todos os que, desejando o bem, fazeis tanto Dia]; vós que, abdicando a razão
que Deus vos deu para guia de vossas acções, – o entendimento, a
vontade, as palavras, as opiniões, tudo sujeitais ao capricho de uma vã,
de uma falsa e morredoura popularidade; que cerrais os ouvidos à voz da
consciência, quando ela vos brada: É falso! e, conhecendo o erro
das turbas, sem coração nem piedade, bradais ás turbas: Têm razão! Sim, sois iludidos: e quem nestes vinte
anos de oscilação não tem sido? Todos o fomos, a todos nos têm enganado
as facções; todos, cuidando pregar as nossas doutrinas, temos sido
pregadores de falsa lei; todos, cuidando trabalhar em nossa lavoura, todos
temos granjeado a fazenda alheia; uns pelo Povo, outros pelo Rei, todos
lidando em vão na nossa causa, todos obedecendo, sem o sabermos, aos
motores encobertos que nos dirigem, que zombam de nossas fadigas, e se
divertem com estes movimentos de manequim em que nós sós nos afadigamos, e
eles sós aproveitam. Sic vos non vobis. Temos, temos todos, mais ou menos, abraçado
a nuvem por Juno; todos nos temos enganado com a espécie do bem, todos
erramos: porque o não confessaremos todos? Porque as facções não querem, porque
as facções nos aturdem os ouvidos, nos azoinam as cabeças, nos espicaçam
o coração, nos alvoroçam o amor-próprio: e excitando em nós quanto tem
de ignóbil, de pequeno e de vil a nossa pobre natureza, de seus imundos
vapores toldam o fraco lume da Razão divina que em nós está. É assim, é; porque as facções não
querem que se discutam as questões, não querem que nós saibamos o que
queremos. Querem-nos, a todos, neste vácuo escuro e de sempiterno horror cm
que tudo é desordem e confusão, em que vinguem a si mesmo se percebe, em
que uns bradamos contra os outros sem saber o quê nem porque bradamos, e
lutando nas trevas, digladiando-nos na escuridão, por fim nos destruamos
uns aos outros, raça fadada de Cadmo, - porque só nessa desordem e açougaria
pôde caber o momentâneo reinado das facções - só nesse momento em que não
há governo possível, de nenhuma forma, de nenhuma cor, de nenhum
principio. Portanto, venha de que lado vier, seja
qual. for o principio, a ideia política a que a ordem queira dar consistência,
organizando a sociedade, toda a facção contra ela se levanta. Nada há
louvável, nada há desculpável em quem uma vez falou em ordem. É a túnica
do Centauro que o lambe de chamas, e o devora de angústias. Tenha perdido a
mocidade e a saúde sobre os livros, – fica ignorante. Desempenhasse
honrada e zelosamente os cargos da republica, - é um peculador, um Verres.
Fosse bom pai, bom filho, bom esposo, cidadão útil, cristão temente a
Deus. - A um vão-lhe desenterrar os cadáveres dos pais, e com os ossos carcomidos
dos seus o apedrejam; a outro, vão-lhe devassar nos pecados da
sua gente para lhos lançar à cara como crime e afronta própria. -
Perdesse, um a um, na defesa da pátria os membros mutilados; -
resuscitar-lhos-hão de escárnio, e o motejarão por seus gloriosos
defeitos. Sente-se à direita ou à esquerda, tenha sido sempre leal aos
seus amigos políticos, e mais ainda aos seus princípios políticos; não
lia fraternidade de opiniões, não lia vínculos de amizade. Falou em
ordem? Morra por ela. Não lia epítetos injuriosos, não há alcunhas
chocarreiras, não há vitupérios que não mereça: é um monstro, é um
traidor, um insignificante, um fidalgote de aldeia que se quer aparentar
com as famílias da corte. - Que miséria! Que miséria na verdade! Quando e como
nos quisemos nós aparentar com essas famílias ilustres E quais são elas,
e aonde estão elas, essas famílias ilustres? Vai em quatro anos que os mais moços na
vida parlamentar aqui estamos sentados em nosso canto: quando procurámos a
vossa aliança política, homens dos extremos? Seria impugnando sempre
vossas erradas doutrinas, seria combatendo sempre os vossos argumentos,
denunciando sempre à opinião os vossos sofismas? Não nos combatestes vós
também sempre? Não ficámos, nós poucos e mal ouvidos, não ficámos nós
vencidos sempre pelos vossos votos? Convencidos dos vossos argumentos,
nunca. Em toda a discussão de princípios políticos – dos questionáveis
se entende – estivemos alguma vez de acordo? Deixastes vós jamais, em
todas essas ocasiões, de nos acusar, de nos denunciar como sustentadores
das mesmas doutrinas que defendemos hoje, que advogámos, sempre, que sempre
vos foram obnóxias? Mas vós prezais-vos de coerentes porque ainda hoje as
impugnais; e a nós porque ainda hoje as defendemos também, ousais-nos
acusar de versáteis e inconsistentes! E porquê? Porque hoje votámos com a
direita? A vós o pergunto, deputados da esquerda se os nossos princípios
achassem impugnadores no lado direito da Câmara, se alguma vez os tem
achado, não votaríeis vós, não tendes vós votado com eles? Pois o mesmo fazemos, o mesmo faremos
sempre: a coerência politica é de princípios não de pessoas; esta fé
professamos, por este único voto estamos ligados, aos nossos constituintes
o prometemos, de nós o espera a Nação a quem o jurámos. Onde está, no nosso actual
procedimento, onde esteve no que sempre fizemos, a prova desse fátuo desejo
de nos aparentarmos com vossas ilustres famílias, a quem
modestamente destes brasão e timbre, sem audiência de reis de armas -
Portugal, que não teria pouco que dizer na matéria? - Nós não; que vos não
disputamos a fidalguia, mas só o direito de primogenitura que usurpais
fraudulentos; e, com o poeta da Religião e da Liberdade, com esse grande génio
que Deus suscitou no meio da França para glória do Cristianismo e para açoite
dos tartufos políticos, nós vos perguntamos: «Quando foi que, Esaús da
liberdade, nós renunciámos ao nosso quinhão da herança?» Donde vos vem
o direito que vos arrogais – não só de primeiros, mas de filhos únicos? Ilustre família! E donde vos vem a
ilustração? Dos martírios da Liberdade? Também nós os padecemos. Da
gloria que adquiristes para a Nação? Afias por feitos de armas, não há
secção, não há fracçãozinha de partido em Portugal que não tenha
parte neles. Mas por letras... Oh! aí nos humilhamos nós diante de todos,
até de vós. Tristíssima e de mau gosto foi essa irónica
saudade com que, fingindo que só agora nos separávamos, de nós se
despediu um orador da extrema, com quem, ao vê-lo tão saudoso, pareceria
que sempre estivemos unidos em sentimentos e doutrinas politicas. Jamais o
fomos bem o sabe ele, nem ousará negá-lo, que lhe fora mister renegar
todas essas teorias obsoletas que aqui tem defendido sempre, contra nós que
lhas condenámos sempre, porque sempre as tivemos e demonstrámos absurdas.
Jamais os nossos votos se acordaram com os seus senão nas questões económicas
gerais, em que, reassumindo a sua natural razão, muitas vezes a tem o
ilustre deputado, e por tal o apoiou o centro. E bem sabe ele que em
semelhantes questões se pôde contar com os nossos votos. Nós não queremos dominar as votações,
mas queremos obstar ás votações cerradas de compadrio. Queremos votar com
a esquerda ou com a direita segundo tiver razão uma ou outra. Entendemos
fazer assim a nossa obrigação de centro, entendemos desempenhar assim uma
impopular mas indispensável função parlamentária; estamos certos de
seguir assim a opinião nacional que inquestionável, e provadamente –
quanto no governo representativo pode provar-se – com seus votos tem
confirmado ora o procedimento de uma, ora o de outra das duas secções do
partido constitucional. Nós entendemos assim o voto popular; e
se ele nos engana (o que não creio), culpai as vossas leis que lhe
regularam a expressão. E sobre quem ousaria o enfático orador,
tão precipitado em liberalizar títulos, sobre quem ousaria ele cuspir o de
bastardos? Não sei. Bastardos há de certo na casa da liberdade, bastardos
que a desonram espúrios que a desacreditam. Esses ramos degenerados de uma
árvore ilustre, esses que a todo o vento de opinião flutuam, hão-de ser
de certo os que na factura da Constituição querem um princípio, e
cavilham depois a sua execução nas leis orgânicas. Hão-de ser de certo
os que hoje acusam de liberticida uma lei, e que amanhã a defendem como
paladino de liberdade. Hão-de ser talvez os que serviram a tirania em
quanto ela era poderosa, que depois serviram a demagogia quando a julgaram
omnipotente, que hoje querem servir ainda – porque para servirem nasceram
– e já nem sabem a quem. Buscai-os esses homens não sei aonde;
procurai-os não sei onde estão... Mas não os haveis de achar no centro. Bastardos
hão-de ser da casa da liberdade esses Gracos ridículos, esses Publicolas
palhaços que ora se enfeitam da coroa cívica nos Comícios, ora das pérolas
de barão feudal nos palácios. Procurai-os, não sei onde os achareis. Aqui
não: não temos cá barões no centro. E não hão-de as facções vociferar quando se fala em ordem, ordem que é razão e justiça, ordem que, sobre tudo e mais que tudo, é verdade? - Não, que ele era doce invocar o nome de Jesus Cristo para só lhe tosquiar em vez de lhe apascentar o rebanho, e vir, horas mortas, ao altar comer as oblações da enganada piedade. - E a Ordem pulveriza de cinza o pavimento para mostrar no outro dia ao povo as pegadas dos seus embaladores... Não
que ele era doce invocando o nome do Rei, reinar mais que ele, e governá-lo
a ele, aclamar absoluto o seu poder por imediato a Deus, e transferi-lo todo
para uma Camarilha usurpadora. Não, que ele era mais doce ainda, mais
suave que tudo, dominar as turbas com a lisonja; dispor da força bruta, que
tanto mais serva e escreva é quanto mais cuida mandar; concentrar em si
todos os direitos, monopolizar toda a liberdade para si só; - ter as honras
de Catão e o poder de César; almoçar no fórum os rábanos do Fabrício,
e banquetear-se a noite nos temulentos palácios de Lúculo! E a emprazadora da ordem e os importunos
dos Doutrinários a patentear ao Povo estes mistérios Eleusinos, a abrir
diante de seus olhos as austeras, as desenganadoras páginas da história, a
mostrar-lhes aí como dos Gracos se fazem Catilinas, e dos Mários
ditadores, como o tribuno se converte sempre em áulico, o publícola em
palaciano, mal as turbas se fatigam de seu reinado nominal, e o Poder, por
sua natural tendência, ou se concentra no feixe consular, ou na vara
ditatorial, ou no diadema imperial, ou no simples bastão do protectorado -
em qualquer símbolo da Realeza que se destruiu mentindo, que mentindo se
restabelece. E há de se deixar falar a Ordem,
e há-de consentir-se que a oiça o Povo! Não: rufem-se-lhe as caixas da
anarquia, sumam-se esses brados de verdade como se sumiram os últimos
clamores de perdão com que a Real Vítima da França envergonhava do
cadafalso os seus algozes. E para essa França aponta a Ordem a
cada instante, e a mostra de exemplo e escarmento ao Povo! E lhe mostra
esses declamadores da Constituinte e da Convenção rasgando aos pés de
Bonaparte a Declaração dos direitos do homem; ajoelhados diante do
Papa na cerimonia cristã da sagração do novo ídolo, com a mesma devoção
com que ouviram no altar da pátria a sacrílega missa de um bispo apóstata,
com que nas profanadas basílicas, ébrios de vinho e de sangue, entoaram
diante da prostituta deusa da Razão seus asquerosos ditirambos ao som da
guilhotina reformadora! E o barrete frigio do Sans-cullote é coroa ducal
hoje; e os lictores de Robespierre andam agora na tábua, ou boleiam
agaloados as seges da casa do primeiro cônsul; e os mais furiosos
niveladores da república una e indivisível, disfarçadamente alardeiam,
diante do logrado povo de Paris, as fardas bordadas de criados do imperador
Napoleão! Mal do povo Português se não ouvir e
entender, ao menos a historia do seu tempo, para aprender nos erros alheios!
Mal dele se, em estrada taro conhecida e trilhada, não vir as pegadas de
sangue que os outros povos aí deixaram! Em tudo lho mentem a esta pobre Nação,
tudo lhe desfiguram para que ela não entenda. Pois, de que se trata agora?
De mudar a constituição, de destruir as leis existentes? Quem tal propôs,
quem tal sustentou? 0 que se tem proposto e nós advogamos, é dar
comprimento e desenvolvimento à Constituição do Estado, com a reforma das
leis orgânicas, não introduzindo leis novas (é falso; não destruindo as
antigas (é mais falso ainda); mas procurando emendar aqueles defeitos que a
experiência tem mostrado, e a cujo exame sincero só pode proceder-se com
ordem e tranquilidade, de nenhum modo entre clamores de praça, entre vaias
de açougue. E, a nós nos dizem que queremos rasgar
as leis! Rasgar as leis nós!... Quando o fizemos, quando aprovámos quem o
fizera? Para diante da Nação Portuguesa vos emprazamos, que bem sabe se de
nós o deve temer ou de quem. Pois não ouvimos nós aqui um ilustre orador do lado esquerdo da Câmara,
sem fazer justiça a seu próprio coração, abdicando o seu raciocínio
natural, soltar, em vez de argumentos que podia e sabia fazer, meros
sofismas em frases redondas e bem soantes? Nesse género de dizer lhe
reconheço inquestionável e superior talento. Verba et praeterea nihil
lhe chamou já outro orador que se senta ao meu lado. Dizem-se aqui, Senhores, proferem-se categoricamente e como axiomas,
absurdos tais que até são injuriosos para aqueles cuja causa se defende,
cujas opiniões se querem sustentar, cujos actos pretendem desculpar-se.
Assim dogmaticamente foi dito que o Poder criado pela Carta tinha sido
destruído. -Como, quando, quem destruiu o Poder criado pela Carta? A revolução
de Setembro! É falso, é calunioso. Não cometeu esse crime a revolução,
teve mais juízo que isso. Se a alguém veio tal desejo; se nesses obscuros
sótãos, se nessas escondidas aguas furtadas, onde, pelo testemunho do
mesmo orador com quem falo, sabemos que estavam covardemente agachados os anónimos
conspiradores, os envergonhados instigadores desse acto que nunca ousaram
confessar, nem depois que a tolerância e a adopção nacional, remindo-o da
culpa, converteu as suas consequências em legalidades nesses, (o que eu não
creio facilmente) houve tão atroz pensamento, tão impopular, tão
anti-português - não ousaram manifestá-lo ao Povo. Que seria da revolução
se tal fizessem! A revolução não destruiu o Poder criado pela Carta, o poder
constitucional do Rei na pessoa e dinastia de sua actual e augusta
Representante, e o do Parlamento nacional com duas Câmaras: confessou-o,
confirmou-o, proclamou-o desde o seu primeiro brado; e por isso achou
aderentes e defensores, que, sem tais protestos, todos saem em Portugal e
fora dele, nunca havia de encontrar. . . Aqui foi o Orador interrompido pelo Sr.
Deputado José Estêvão, que disse: - «O poder criado pela Carta era o Sr.
José da Silva Carvalho.» - O Orador continuou, apontando para o
deputado que o interrompera: Ali está, Senhores, a confissão ingénua de todas as minhas acusações;
naquelas palavras está o testemunho irrecusável de que todas as questões
aqui seio pessoais, de que tudo se reduz a mesquinhas, a miseráveis
considerações de indivíduos, que os mais graves objectos, que os maiores
interesses desaparecem diante destas pequenezas! Um homem é o princípio! A
três homens que se juntem, chama-se-lhes um partido! Ao simples ministro do
príncipe chamam-lhe um poder criado pela Constituição! O Poder criado pela Carta não se destruiu; mas a sociedade, já
desorganizada ou não organizada ainda para o novo poder, chegou mais perto
da dissolução: as pedras do edifício, ainda não cimentadas, e que mal se
tinham por sua justaposição, caíram muitas e desconjuntaram-se todas.
Quis arquitectá-las de novo este Código administrativo que agora vamos
reconsiderar: a experiência provou que não pôde; quantos a fizeram, o
declararam. E agora negam o que já confessaram, – agora falam contra o
que escreveram e assinaram; e o Código administrativo é a arca santa, é o
testamento da aliança em que não é permitido tocar. Tal é a matéria dos pretendidos argumentos com que nos combatem. A forma
não é somenos. Um dos meus amigos que tem lugar no centro, cortesmente
foi arguido de não entender os livros de Guizot, cujas palavras com a mesma
civilidade lhe disseram que só textualmente sabia traduzir. E logo o
mesmo polido orador, dando-nos, do alto de sua infalibilidade, a interpretação
autêntica das doutrinas do grande publicista e ordeiro francês,
resolvei. a questão do censo, declarando que ele era impossível em
Portugal, porque Mr. Guizot, tinha mostrado que as classes sociais eram
diversamente constituídas em Franca, do que na Inglaterra e nos Estados
Unidos. Não argumentou dessas diferenças para o que devia haver no modo e
quota do censo, não, para a proporcional diferença que a diferente
constituição das classes portuguesas demanda: não; concluiu que o censo
era impossível! Só o chamar a esta questão a questão do censo, é a maior das
muitas decepções com que a opinião pública cm Portugal anda ludibriada.
Por Deus, falemos um dia a verdade. - A questão que se trata é a da prova
do censo. São coisas muito diferentes. A questão do censo resolveu-a a
Constituição, não se pode tratar dela. Mas pode, deve e há-de se tratar
a da prova, porque no-lo manda a Constituição, porque o exige,
porque a quebramos, e ao juramento que lhe demos, se a não tratarmos e
resolvermos. Esta famosa e arteiramente complicada questão é todavia clara e simplicíssima:
reduz-se a saber se há-de estabelecer-se uma prova fixa, legal e verdadeira
do censo que a Constituição marcou, prova igual para todos, e
protegedora dos direitos políticos dos cidadãos, – ou se há-de ficar
como tem estado, inconstitucionalmente entregue ao arbítrio das autoridades
que, segundo a geral confissão de toda a Câmara e de todo o reino, por
querenças e malquerenças pessoais, por simpatias e antipatias de partido,
por ódiozinhos e amisadezinhas, por espírito de bairro e por compadrio,
encurtam e estendem, a seu capricho, a medida que têem nas mãos e que não
é aferida pelo vero-peso da lei. Esta é a sincera verdade: mas porque se não diz? Porque é necessário
caluniar os Ordeiros, e clamar que eles querem tirar os direitos ao Povo,
que para o excluir da urna propuseram a lei do censo. Nós não propusemos lei nenhuma de censo; torno a dizê-lo; a lei está
feita na Constituição. Porque se mente pois ao Povo? Porque se lhe não
diz: «Nessa constituição que reformámos, que jurastes, e que tanto dizem
que amais, foi feita esta lei: o vago em que ali está expressada tem dado
causa a mil fraudes e abusos, que todos (e note-se bem, todos) temos
reconhecido. É nossa obrigação e vosso interesse que lhe fixemos regras
claras e positivas.» - Mas isto era falar verdades lisas que não
aproveitam; e vale mais dizer: «Os Ordeiros inventaram esta quimera do
censo que não serve senão para vos excluir da urna e para a entregar nas mãos
do Poder.» - É uma falsidade, é uma calúnia: bem o sabe quem o diz; mas
diz-se. Até com a formação do actual ministério, e com a questão estrangeira quiseram enredar esta nossa questão da prova do censo. E já nós a tínhamos proposto nas Cortes Constituintes, e já na passada sessão ordinária a instaurou de novo a penúltima administração, e o Centro forcejou em vão por que se tratasse. E permanentemente devia ela ter sido nesta Câmara desde que se votou a Constituição. Não é nossa culpa se o não foi. Dizem-se em verdade aqui pasmosas e incríveis coisas! «Esta lei, clamam,
esta lei do censo vai excluir da urna os próprios defensores da
Legitimidade e da Liberdade, que deram o seu sangue por que nós gozássemos
desse direito.» . . . Se tal é, Senhores, se tal fosse, voto desde já
contra este, contra todos os projectos de um Ministério tão insolente que
tal ousa vir propor a uma Câmara de deputados portugueses. Mas é falso! e
quando lá chegarmos a essa questão (se nos deixarem chegar a essa ou outra
qualquer de verdadeiro interesse público) então veremos se uma lei necessária
para realizar a Constituição, sem a qual a Constituição é mentira, a
representação nacional um absurdo, pode excluir ninguém da urna. Então
veremos se os direitos políticos dos cidadãos de todas as classes podem
ser melhor qualificados pela ridícula infalibilidade de uma junta de paróquia,
de uma câmara muitas vezes nem eleita, de um conselho de distrito que nem
representa nem conhece o distrito, mas só a terra em que moram os seus
membros que, por moradores e não por sabedores, a tal conselho são
chamados. De toda a parte têem vindo os sofismas. À própria desgraçada Irlanda, à
última Bretanha se foram buscar; e entrados por contrabando, com ofensa das
pautas, do senso comum, aqui os trouxeram para combater verdades que nós
apresentámos francamente, despachadas na alfândega como tracto claro e
leal que são. «Vejam a Irlanda, olhem para a Bretanha» – exclamou,
veemente e triunfante, um orador do lado esquerdo: «quem as reduziu a esse
mísero estado em que se acham? A Ordem. Quem as oprime e avexa? Os
Ordeiros.» Pode-se ter o riso com este modo de argumentos, pode haver algum
mais contraproducente, mais para fazer compaixão? Exemplo das calamidades
da ordem, a Irlanda! A Irlanda que tem sido vítima da desordem, vítima de
um sistema exclusivo e faccioso! - (Tudo quanto é faccioso é exclusivo,
tudo quanto é exclusivo é faccioso.) Que contra seus hábitos e crenças,
contra sua fé e costumes, a quis sujeitar a uma religião repugnante, a uma
política especulativa e absurda ! Perguntem-no a O'Connell, perguntem-no ao
mestre agitador O'Connell, se os primeiros respiros folgados que soltaram,
se a primeira aurora de felicidade e liberdade que naquela votada ilha
apareceu, não foi quando a Ordem, impondo silencio ás facções
exclusivas; triunfou no parlamento Britânico, chamando à comunhão política
aqueles cidadãos que os facciosos faziam facciosos, como todos os partidos
exclusivos fazem. O mesmo direi da Bretanha, desgraçada e facciosa em quanto os facciosos de
Paris lhe queriam impor lima religião de loucos, uma lei civil de bárbaros,
- pacificada e obediente logo que, liberto dos facciosos, o governo da França
lhe levou, com a ordem, o regime da tolerância e da razão. E não seriam os absurdos facciosos os que dilaceraram e atrasaram aquelas
duas tão belas e ricas porções de dois grandes impérios? E não seria a
Ordem que as restituiu e chamou à civilização? A Ordem que desfaz o
exclusivo insultante e usurpador das facções, que dá a cada um o que lhe
é devido, que a todos os partidos chama indistintamente aos cargos, aos
empregos, ás honras, à protecção, à liberdade; que os não quer património
de nenhumas famílias privilegiadas como dantes eram, nem de nenhuns
partidos como hoje se queriam fazer. E tão mau é para o Povo que as
dignidades e funções públicas, que o gozo exclusivo de todos os direitos
andem de juro e herdade numa casta ou numa classe, como que andem enfeudadas
num partido ou numa seita. Ao Povo convêm, a Ordem exige, que os talentos e
as virtudes sejam chamadas sem distinção ao serviço do Povo e do Rei; e
que, assim como já não pode o Cristão velho excluir o Cristão-novo, nem
o fidalgo o peão, também não possa um partidário excluir a outro. - Ora
os Ordeiros querem anular esse veto usurpador e insuportável, que a própria
família liberal ia dividindo em tantas fracçõesinhas quantas eram já
quase os seus indivíduos – e este crime é imperdoável! É certamente,
nos tribunais facciosos deve sê-lo. | ||||
Parte 2/3 | ||||
Discurso do Sr. Deputado pela Terceira J. - B. de Almeida Garrett, na
discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, pronunciado na Sessão de 8 de
Fevereiro de 1840,
Almeida Garrett, visconde de, Maria de Fátima Bonifácio
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