Diários do capitão Coignet

 

Extrato dos diários do capitão Coignet que se refere ao ano de 1800, quando sapador de infantaria esteve em Espanha, devido ao fim da Campanha de Itália, preparando-se para participar na invasão de Portugal que acabou por não ter lugar, no decurso da Guerra de Espanha de 1801, e mais tarde entrou para a Guarda Consular francesa. 

 
Guarda Imperial

Lilliane e Fred Funcken © Castermann

Oficial, tambor e porta-bandeira dos Granadeiros da Guarda Imperial de Napoleão I, continuadora da Guarda Consular

2.ª ÉPOCA

 

1. CAMPANHA DE ITÁLIA[...]

 

Nos Estados de Veneza


A alegria era geral, bons quartéis. A nossa meia-brigada1 fora designada para tomar Veneza acompanhada de um regimento de caçadores a cavalo e o general que comandava a expedição chamava-se, creio, general Gardanne2, não tenho certeza, mas só tinha um braço. Mandou fazer lanternas para caminharmos durante a noite, para esconder a nossa marcha em direcção ao inimigo. De dia permanecemos escondidos nos canaviais e foi preciso fazer pequenas pontes sobre grandes valas para passarmos a nossa artilharia e a nossa cavalaria. Nestes pântanos apenas existiam cabanas de pescadores, e à força [de] coragem chegámos ao local designado. Encontrámos um grande rio que corria ao longo de um dique ou barreira que separa o mar deste rio e que se encontra com os quatro rios que vão dar ao mar, em frente de Veneza. Estes são os rios de Itália e da România que formam pés de galinha onde todas encontram o mar e foi necessário tomar todos estes rios para obrigar Veneza a render-se pela sede.

Havia na estrada principal, calçada, um corpo de guarda avançado e os austríacos ocupavam-no, e foi necessário tomá-lo. E, frente a este posto avançado dos redutos, a um quarto de légua, que estava frente ao rio, colocou-se uma sentinela na estrada. E, lentamente, a sentinela que falava alemão, e conheceram-se. O nosso pediu-lhe tabaco e o alemão pediu madeira. E o nosso [disse]-lhe: "Virei trazê-la com dois camaradas meus quando sair de serviço”. Os nossos granadeiros foram-se embora com madeira e trouxeram tabaco. E no dia seguinte prometeram trazer-lhes uma grande quantidade com o que eles fiaram encantados. "Dar-vos-emos tabaco".
De manhã, cinquenta granadeiros carregados de madeira chegaram sendo bem recebidos e agarraram nas armas dos austríacos e fazem-nos prisioneiros. Imediatamente a trincheira é aberta e as peças de artilharia são colocados em bateria. E os austríacos ficam a saber que a paz foi feita, retiram e deixam-nos tomar os rios por astúcia. Era uma boa posição de apoio para vir a Mântua juntar-se ao seu corpo. Deixaram-nos as nossas coisas e nós tomámos todos os rios da Itália e da Romagna3 e todos os barcos que desciam até atingir o mar, carregados de mercadorias e de farinha. Toda a pescaria da Romagna estava em nosso poder: dois barcos cheios de enguias e de peixes. Tivemos um barco à nossa discrição e comemos molhos para todos os gostos...

Quando os venezianos ficaram com sede, vieram procurar água e o general disse-lhes: "Podem ir buscar as chaves de Veneza, preencher este papel que vos dou e dar-vos-ei água”. E eles foram forçados a render-se pela sede e ele teve tudo que queria. Tinha-nos prometido três francos por dia, mas as contas dele foram logo resolvidas connosco, não nos dando nem um um tostão: enviou tudo para casa. Trouxe-nos de volta para o canal de Veneza, em frente de Veneza, e o general Clausel4 assumiu o comando da nossa brigada. Ficámos ali pouco tempo. Mântua rendeu-se e nós vimo-los passar em frente de nós5, e oito dias depois recebemos ordem para ir para Verona celebrar a paz. É um lugar muito bonito e leram-nos na ordem do dia que a nossa meia-brigada fora destinada para Paris. Que alegria! Passámos pela bela região de Veneza e por Itália. Não era possível ver nada mais bonito. Até Turim é extraordinário. Atravessámos o Monte Cenis e chegámos a Chambery e de Chambéry para Lyon.

Quando este velho regimento chegou à praça Bellecour, todos os incríveis6, com os seus óculos, nos perguntavam se vínhamos de Itália, "Sim, senhores. – Você tem sarna? - Não, senhores." E limpando os óculos nas mangas, respondiam: "É incrível!" Não queriam alojar-nos na cidade, mas o general Leclerc7 obrigou-os a dar-nos aquartelamentos na cidade e a seguir, foram dados sete licenças por companhia, para os mais antigos. Que alegria para os soldados mais velhos! Nunca o cônsul as deu durante o seu reinado, a não ser nesta época.


Em Espanha

 

No dia seguinte fomos informados de que não íamos para Paris, como esperávamos, mas para Portugal. O general incorporou-nos nos 40.000 homens do seu exército, tivemos que nos resignar e a partir num estado deplorável: fardas feitas de todos os feitios. Mas ainda era a República, e fomos para Baiona, e a estrada era muito longa, e sofremos com o calor.

Chegámos à ponte de Irún e entrámos nos climas quentes. Os nossos camaradas descobriram um ninho de cegonhas e apanharam as duas mais pequenas, e as autoridades vieram pedi-los ao coronel e o alcaide disse-lhe para os entregar, que estes animais eram necessários nestes climas para matar cobras e lagartos, e que havia envio para as galés no seu país; por isso se veem em toda parte, e as planícies estão cheias delas e deambulam pelas cidades. Colocam rodas velhas em postes muito altos onde fazem ninhos nos beirais dos edifícios e das casas.

Chegados à nossa primeira etapa, os nossos soldados encontraram vinho de Málaga a três tostões a garrafa e beberam-no como se fosse leite matinal e caíram mortos de bêbados. Foi necessário requisitar carros para os levar como bezerros, porque estavam como mortos e, oito dias depois foi necessário dar de comer aos nossos bêbados; a sopa não permanecia nas colheres, o soldado não podia beber a sua ração devido ao vinho ser tão forte.

Chegamos a Vitória, uma bela cidade, e daí fomos para Burgos. E de Burgos a Valladolid, cidade grande e bonita, onde ficámos muito tempo em locais cheios de vermes. São os piolhos que enchem as camas dos soldados que ao bater da palha os faz sair como balas. Três quartos dos espanhóis tiram os piolhos com pinças e atiram-nos ao chão dizendo: "Aquele que te criou, que te alimente!” Vejam lá como este povo é sujo.

Tive a sorte de ser nomeado sapador. Tinha uma barba farta e fui escolhido pelo coronel para fazer parte dos sapadores e fomos fardados de novo: farda de gala e de serviço, e fomos aquartelados em casas de burgueses, onde nos poderíamos livrar dos vermes. Mas era preciso fecharmo-nos, com medo de sermos mortos durante a noite. Era necessário garantir a nossa própria segurança.

Andando ao longo do rio, conheci dois padres franceses emigrados que estavam num estado de completa miséria. Abordaram-me e pediram-me notícias de França. Eu disse-lhes se só tinha passado e disse-lhes que se dizia que os emigrantes seriam chamados e que se eles quisessem ver o general Leclerc ele poderia dar-lhes notícias recentes, que seriam bem recebidos, que o general era cunhado do Primeiro Cônsul. Foram no dia seguinte e receberam boas notícias. Encontraram-me e agarram-me a mão e disseram-me que era o seu salvador. Duas semanas depois receberam ordem de regressar a França, e fui abraçado por estes infelizes proscritos que [me] nomearam seu salvador. Dei-lhes o conselho de se disfarçarem, com medo que fossem insultados no seu regresso a França, e recebi as despedidas deles.

De Valladolid fomos para Salamanca, cidade grande, onde ficámos muito tempo a realizar revistas e a fazer a pequena guerra. A nossa vanguarda chegou com a sua frente à fronteira de Portugal; mas a guerra não teve lugar. Trouxeram dezassete carros bem escoltados e a paz foi feita sem nos termos batido e voltámos para França por Valladolid. Ao sair desta cidade, os espanhóis mataram alguns estafetas a golpes de cajado, e tiveram mesmo o descaramento de vir roubar as nossas bandeiras ao posto da guarda, em casa do coronel, num vilarejo perto de Burgos, e tiveram a ousadia de vir tomar as nossas bandeiras. Estando os homens a dormir, a sentinela gritou: "Às armas!" e já era tempo. Deixaram a aldeia e foram atacados pelos nossos granadeiros que os mataram à baioneta, sem misericórdia. Aqui está este povo fanático.

Chegámos a Burgos e partimos [para] Vitória. E de lá cruzámos a fronteira para chegarmos a Baiona, a nossa cidade de fronteira. Seguimos todas as etapas até Bordéus, onde estacionámos durante algum tempo.

Fui alojado em casa de uma velha senhora que estava doente. Apresentei-me com o meu boleto e ela ficou um pouco assustada ao ver a minha barba. Tranquilizei-a o melhor que pude e respondeu-me: "Tenho medo dos militares. – Não tema, minha senhora, não lhe peço nada. E o meu camarada é simpático8. – Bem, recebo-vos e terão boa alimentação e boa cama”. Boas acomodações! Depois do jantar, chamou-me por intermédio da sua criada de quarto: "chamei-o para lhe dizer que estou sossegada, que é uma pessoa que se tem comportado bem em minha casa e que recomendei que o tratassem bem. – Agradece-vos, minha senhora, nós não sairemos senão amanhã para nos passarem revista. – Os senhores vêem-me em mau estado. São os infortúnios que experimentei. Robespierre mandou guilhotinar catorze pessoas da minha família e o patife obrigou-me a dar-lhe trinta mil francos em jóias e pratas e exigiu que eu dormisse com ele para salvar a vida do meu marido e no dia seguinte mandou-o decapitar. São estes, meu caro senhor, os infortúnios da minha família, o malandro foi punido, mas tarde demais".

Saímos para irmos para Tours pelas etapas prescritas e lá, fomos inspecionados pelo general Boyer9 (?), que nos passou em revista e nos apresentou um velho soldado que tinha servido oitenta e quatro anos como simples soldado na nossa meia brigada. E o cônsul dera- lhe como reforma a mesa do general, toda a sua vida – tinha cento e dois anos – e o seu filho era major. Trouxeram-lhe um cadeirão, estava fardado de oficial, mas não tinha ombreiras. Havia um sargento do seu tempo que tinha trinta e três anos de serviço.

 

2. A Guarda Imperial

 

De guarnição em Le Mans

 

Depois de deixar esta bela cidade de Tours, que começou a tomar guarnição em Le Mans, no Departamento do Sarthe, que se pode dizer é a melhor guarnição da França. A bela Guarda Nacional veio ao nosso encontro e foi uma alegria para a cidade ver um bom e velho regimento de guarnição na cidade que havia sido profanado pelos Chouans10 e as paredes do quartel ainda estavam manchadas com o sangue de vítimas que foram assassinados pelo Chouans.

E fomos postos em habitações burguesas durante dois meses tendo sido recebidos como irmãos e arranjaram o quartel onde fiquei um ano. O coronel casou-se com uma senhora de Alençon muito rica e foram festas para a cidade, os convites foram numerosos. Fui escolhido para levar esses convites às casas no campo. O coronel foi generoso com o regimento, todos os oficiais foram convidados.

Ao fim de três meses, a caserna agradeceu os gastos feitos com ela, e fizeram-se três padiolas com forradas de veludo, cheias de pães-de-leite, levadas por seis sapadores. A mulher do coronel fez o peditório e o meu capitão, nomeado comandante, levou a nossa bonita pedinte. O tambor-mor era o Suíço e eu carregava o prato da coleta e a senhora fazia as vénias.

O peditório chegou aos novecentos francos para os pobres, todo o regimento foi à missa. Foi trazida uma padiola no comando do pão abençoado, foi levado ao coronel e, em seguida, dividimos em partes e [colocámos] um ramo de loureiro em cada parte e um convite. E dois sapadores levavam o grande cesto cheio de pão benzido, e fui designado para acompanhar os dois sapadores que carregavam a cesta, eles ficavam à porta e eu agarrava numa porção e na carta e apresentava-me, e davam-me seis francos e nunca menos de três francos.

Esta grande caminhada pela vila e pelas casas de campo valeram-me cem escudos e o coronel quis saber se eu tinha sido bem recompensado. Esvaziei os meus bolsos e ele, quando viu todo aquele dinheiro, dividiu-o em duas partes e disse: "Esta é a sua metade e a outra dividirá com os sapadores". Os dois carregadores não sabiam nada do que se tinha passado e eu levei-os para o quartel e perante o sargento e o cabo, pus o dinheiro na mesa. Ficaram todos confusos com a alegria de me ver a pôr o dinheiro sobre a mesa. "Roubou a caixa do regimento? Para quem é todo este dinheiro? Perguntou o sargento. – É para nós, dividam-no, é do peditório do pão benzido. "Deu quinze francos para cada um. Como eles ficaram felizes comigo! Apertaram-me a mão e eu tive os meus quinze francos, e os meus cento e cinquenta francos eram uma fortuna para mim.

Quiseram-me presentear, mas eu opus-me " não quero. Amanhã, eu pago uma garrafa de aguardente e é tudo o que se deve despender, e sou eu que pago, está a ouvir meu sargento? – Nada a dizer, disse, ele é mais sensato que nós". No dia seguinte fui buscar uma garrafa de conhaque, e eles ficaram muito felizes. Este belo jantar fez com que o coronel me desse uma moeda de ouro por ter passado a noite. O baile só terminou de dia. Pusemo-nos à mesa às três horas e eu fui bem recompensado.

Quinze dias mais tarde recebi uma carta de Paris e fiquei surpreendido, que felicidade! Era da minha querida irmã que me tinha descoberto devido à investigação feita pelo seu patrão, que tinha um parente no Departamento de Guerra e ela tinha ficado a saber pela nossa terra que uns comerciantes de cavalos de Coulommiers me tinham levado e que eu poderia ter ido para o Departamento de Seine-e-Marne. E descobriram-me na 96.ª meia-brigada. Não podia ter ficado mais feliz ao saber que a minha irmã tinha sido encontrada! Desde os sete anos que ela estava perdida com o meu irmão mais novo. Foi uma alegria saber que estava em Paris, cozinheira dum chapeleiro da Praça de Pont-Neuf.


Regresso a Paris na Guarda

 

O Conselho de Administração do regimento tinha recebido ordens para fornecer uma lista dos soldados que tinham direito à cruz11 e eu fui nomeado com os oficiais que tinham direito à recompensa militar. O meu comandante Merle e o coronel chamaram-me para me informar que eu tinha sido nomeado com os oficiais e que tinha sido enviado para o Ministério da Guerra. "Obrigado, senhor. – O coronel e eu pedimos para que se cumprisse a promessa que o Primeiro Cônsul lhe fez em relação à Guarda e eu assinei o pedido com o coronel, porque isso é-lhe devido".

Quinze dias depois, o coronel chamou-me: "Eis que a boa notícia chegou! Está nomeado para a Guarda: iremos fazer as contas e poderá partir. Vou dar-lhe uma carta de recomendação para a general Hulin12, [que] é meu grande amigo. Vá dizer ao seu comandante, ele ficará feliz de ouvir isso".

Como eu estava feliz de ir para Paris, e de poder abraçar a minha querida irmã que não via desde os sete anos de idade e que feliz destino me tinha trazido para o pé dela! De regresso ao meu comandante que me felicitou pelo sucesso do requerimento que tinham feito em meu nome: "Se algum dia for a Paris, pedir-lhe-ei para o ver. Não perca tempo, volte para o quartel".

Dei a boa notícia a todos os meus camaradas e eles disseram-me: "Vamos todos acompanhá-lo” O sargento e o cabo disseram: "Vamos todos acompanhar o nosso bravo sapador”. E, depois das contas feitas, parti com 200 [francos] nos bolsos – que era uma fortuna para um soldado.

Deixei Le Mans, no Departamento da Sarthe, e estava na boa companhia dos meus bons camaradas, com o sargento e o cabo à frente. E a uma légua foi preciso parar para nos despedirmos, e eu trouxe comigo o desgosto de todos os meus companheiros. E cheguei a Paris em 2 de Germinal do ano XI [23 de março de 1803], ao quartel dos Feuillants13, perto da praça Vendôme. Esta passagem corria ao longo da nossa caserna até ao Palácio das Tulherias, e quase não se podia andar lado a lado. Era conhecido pelo quartel dos Capuchinhos.

Fui colocado na terceira companhia do primeiro batalhão. O meu capitão chamava-se Renard; tinha apenas um defeito, era muito pequeno. Em recompensa, tinha uma voz possante; era grande quando dava ordens, e era resistente. Foi sempre o meu capitão. Levaram-me a casa dele.
Recebeu-me com afabilidade. A minha barba fê-lo rir e pediu-me para a tocar. "Se fosses mais alto, colocava-te nos sapadores, mas tu és muito pequeno. – Mas, capitão, eu tenho uma espingarda de honra! – É verdade? – Sim, meu capitão. – Isso é diferente. – Fui chamado pelo ministro da Guerra14, que me escreveu para Le Mans a chamar-me para a Guarda. Tenho uma carta para o general Hulin do meu coronel e uma carta para o irmão dele negociante de tecidos na Porta de Saint-Denis. –

Bem, vou pedir uma audiência ao ministro da Guerra em teu nome e acompanhar-te-ei. Mantenho-te na minha companhia, e amanhã ao meio-dia levo-te ao Ministério, e logo veremos. – Foi ele quem me encontrou junto do meu canhão em Montebello15. - Ah! Tens de me contar isso! Quero ver se amanhã se o ministro te reconhecerá! – Eu não tinha barba em Montebello, mas ele tem o meu nome, porque escreveu-o num pequeno caderno verde. – Bem, até amanhã! Ao meio-dia apresento-te".

Retirei-me e, no dia seguinte ao meio-dia fomos ao Ministério da Guerra. Ele foi anunciado e fomos apresentados ao ministro. "Hei! Capitão trazes à minha presença um belo sapador. O que é que ele quer? – Foi o senhor que lhe escreveu para Le Mans para ele vir para a Guarda. Qual é o teu nome? - Jean-Roch Coignet. Era eu que estava junto ao canhão em Montebello. – Ah! Eras tu? – Sim, meu general. – Recebes-te a minha carta? – É o meu coronel, o senhor Lepreux. – É verdade. Vai à secretaria do outro lado da rua, e pede a pasta dos oficiais do conselho da 96.ª meia-brigada. Diz o teu nome e traz-me o papel que eu assinei para ti".

Peço na secretaria. Eles olharam para a minha barba, em vez de tratarem de mim. A barba tinha mais de trinta centímetros de comprimento e pensavam que era falsa. "É natural?" Disse o chefe. Puxei-a: "Vê, disse-lhe, está bem fixa ao queixo, e bem forte. – Olhe, meu caro sapador, aqui está uma folha digna de si. – Muito obrigado". Levei a folha ao ministro que me disse: "Estás a ver como não me esqueci de ti? Vais usar uma pequena máquina, [disse] tocando a minha farda. E tu, Renard, receberás amanhã, às dez horas, uma carta para ele e cumprimentá-lo-ás; um soldado a toda a prova. Vê lá se o manténs na tua companhia".

Agradeci ao ministro e saímos imediatamente para irmos ter com o general Davout, coronel-general dos granadeiros a pé. Recebeu-nos muito bem. "Trazes-me um sapador com uma bela barba. – Gostaria de mantê-lo na minha companhia", disse o Capitão Renard. Ele tem uma arma de honra. – Mas é muito pequeno!”. Pôs-me ao lado dele: "Não tens altura suficiente para os granadeiros. – Eu gostava de o manter, meu general. – Bem, então é preciso enganar a craveira16. Quando for passar pela craveira, coloca-lhe baralhos de cartas nas meias. Vamos ver, disse ele, falta-lhe quase centímetro e meio17... Bem, como vês é só preciso colocar-lhe dois baralhos em cada pé, e ele terá as seis polegadas18 necessárias e tu acompanha-lo. - Ah! Claro, meu general. – Se for aceite, será o mais pequeno dos meus granadeiros. – Meu general, ele vai ser decorado. – Ah! Isso é diferente. Faz o melhor que puderes para conseguir que ele passe".

Saímos para ir arranjar os baralhos para colocar nas meias. O meu capitão fez isso rapidamente. Era vivo como um peixe e conseguiu o que pretendia. Naquela noite, mantive-me hirto como uma sentinela na bitola e o meu capitão que me endireitava pensava que me fazia crescer. Finalmente, consegui as minhas seis polegadas devido aos baralhos. Consegui e o meu capitão ficou feliz, e foi admitido na sua companhia. Estava orgulhoso do resultado. "Vai ser necessário cortar essa bela barba. – Peço autorização para a manter quinze dias: queria fazer algumas visitas antes de a cortar. – Dou-vos um mês. É preciso fardar-vos e depois é preciso exercitar. – Obrigado pela sua interesse comigo. – Vou inscrever-vos nos registos a partir de ontem, para o pré. – Peço autorização para levar as minhas cartas. – Claro," disse ele.

Mandou chamar o seu sargento-ajudante e disse-lhe: "Esta é um pequeno granadeiro. Temos de o por ... Você tem o mais alto, agora, vai ter o mais pequeno. – Bem, ele neste momento está sozinho, é um bom camarada. Podemos dizer o mais baixo com o maior". E heis me com um camarada que tinha mais de dois metros e que foi meu camarada de cama". Dê autorização a Coignet para fazer as suas visitas, e mande dar-lhe imediatamente o sabre dele para poder ir e vir". O sargento-ajudante levou-me para a minha camarata e apresentou-me aos meus camaradas e vi um granadeiro que se riu quando me viu tão pequeno. "Bem, disse, aqui está o meu camarada de cama. – Bem, disse ele, posso escondê-lo no meu casacão, para fazer contrabando”. Fez-me rir e o jantar foi servido. Não comíamos juntos, cada um tinha a sua tigela. Dei dez francos ao cabo. Toda a gente ficou encantada com o meu procedimento e o cabo disse: "Temos que lhe comprar uma tigela de sopa. Amanhã você irá com o seu camarada”.

No dia seguinte fomos comprar a minha tigela, e presenteei o meu camarada de cama com duas garrafas de cerveja. De volta ao quartel, pedi autorização para sair até à chamada do meio-dia. "Vá", disse-me o meu cabo.

Corri ou voei para ver a minha querida irmã na praça de Pont-Neuf, a viver em casa de um chapeleiro à esquerda perto da ponte, no endereço que ela me tinha dado. Mostrei a carta que o dono da casa teve a amabilidade de me escrever. E ficaram surpreendidos de ver uma barba como a minha. "Sou o soldado a quem teve a amabilidade de escrever para Le Mans. Venho ver a minha irmã Mariana, aqui está a sua carta. – É verdade, vamos lá, disse-me. Espere um momento, a sua barba pode assustá-la". Voltou, e disse:" Ela está à sua espera. – Eu vou consigo". Cheguei ao pé duma mulher gorda e disse-lhe: "Sou o teu irmão, vem-me beijar sem medo". Ela veio a chorar feliz de me reencontrar. Disse-lhe: "Tenho duas cartas do meu pai, datadas de Marengo". E o patrão disse-me: "Foi uma coisa viva. – É verdade, senhor. – Mas, disse ela, o meu irmão mais velho está aqui, em Paris. – É possível? – Sim, sim, disse, ele vai cá ver-me ao meio-dia. – Ah! Que alegria! Estou na Guarda Consular. Vou correr à chamada e regresso para o ver, à uma hora estou de volta"

Agradeci ao patrão e corri à chamada e regressei o mais rápido possível. O meu irmão já tinha chegado e a minha irmã disse-lhe que eu estava na Guarda do cônsul. "Tem cuidado para não te dares com um soldado, disse ele, não vá desonrar-nos, temos sido muito infelizes. – Mas, meu amigo, disse ela, ele virá a seguir à chamada, vai vê-lo". Quando cheguei, ela escondeu-o e eu perguntei: " Então, minha irmã! O meu irmão Pedro, não está cá? – Sim, disse ela, mas ele disse-me que podia não ser meu irmão. – Ah! Respondi-lhe, então tenho de lhe dizer que foi ele quem me levou de Druyes para me levar para Etais para trabalhar e as dores que tinha no braço". Quando disse isto, saiu do esconderijo e atira-se a mim, e eis-nos os três nos braços uns dos outros, a chorar tão fortemente que todos a gente da casa acorreu para ver este espetáculo pungente a ver três infelizes reencontrarem-se dezassete anos mais tarde. Todo a gente ficou consternada ao ver esta cena. A alegria e a dor foram tão grandes que o meu irmão e a minha irmã não a conseguiram superar. Perdi os dois. Enterrei a minha irmã seis semanas mais tarde e o meu irmão não conseguiu suportar esta perda. Mandei-o de regresso à terra onde acabou por morreu. Perdi-os no espaço de três meses. São tristezas que não consigo esquecer.

 


1. Nome dado aos regimentos franceses após a amálgama dos antigos regimentos do exército real com os batalhões de voluntários, saídos dos corpos da Guarda Nacional, realizada em 1794.

2. Gaspard Amédée Gardanne (1758-1807). General desde 1795 distinguiu-se nas batalhas de Bassignano, em 19 de maio de 1799 e, no ano seguinte, na batalha de Marengo, em 14 de junho de 1800. Com o fim do armistício entre as forças francesas e austríacas, serviu sob as ordens do general Brune na campanha de Itália de finais de 1800. Nada diz que tivesse perdido um braço.

3. Região a sul de Mântua

4. Bertrand Clausel (1772 –1842). General de brigada em 1795 serviu em Itália de 1798 a 1800. Comandou uma divisão durante a Terceira Invasão Francesa de Portugal.

5. As tropas que se rendiam saiam da fortaleza sitiada por uma porta normalmente com armas, bandeiras e tambores; desfilavam perante as tropas que as tinham cercado, depositando o material bélico em local estabelecido previamente, normalmente perto do local onde se encontrava o general comandante da força atacante.

6. Os incroyables ou muscadins, nome relacionado com o almíscar (musk), perfume obtido do cervo-almiscarado, ou de noz-moscada, eram jovens que se vestiam extravagantemente em reação ao jacobinismo. Eram conotados como monárquicos.

7. Charles Leclerc (1772-1802). General desde 1797, tinha casado nesse mesmo ano com Paulina Bonaparte, irmã mais nova de Napoleão Bonaparte. Nomeado comandante-chefe do Exército de invasão de Portugal em 1801, não chegou a concretizar o intento, sendo nomeado comandante da expedição ao Haiti, onde morreu.

8. Os soldados eram alojados aos pares, porque cada cama servia para dois.

9. Possivelmente o general Charles Joseph Boyé (1762-1832). General de brigada em Maio de 1795 é reformado em junho de 1799, mas faz a campanha da Alemanha de 1800, sendo colocado na lista de adidos no final do ano.

10. Chouans era o nome coletivo dado aos camponeses e artífices revoltados da Bretanha e Normandia durante os primeiros tempos da Revolução Francesa.

11. Cruz da Legião de Honra instituída por Napoleão Bonaparte em maio de 1802.

12. Pierre-Augustin Hulin (1758-1841). Sargento da Guarda Suíça do rei de França, Membro da Guarda Nacional de Paris, participou na tomada da Bastilha. Preso por moderado, foi libertado com a queda dos jacobinos. Participou na primeira campanha de Itália tendo sido promovido a coronel de estado-maior, esteve em Espanha em 1801, como chefe de estado-maior da divisão Rivaud. Membro do tribunal militar que julgou o duque de Enghien e o condenou. General de brigada desde 1801, era comandante dos granadeiros da GuardaConsular.

13. Convento da ordem monástica beneditina criada na abadia cisterciense de Notre-Dame de Feuillant. Ordem com uma regra muito austera as casas francesas tinham sido separadas do resto da ordem em 1630. Foi a partir dessa altura que o convento parisiense começou a desenvolver-se. A ordem foi dissolvida em 1791 sendo ocupada pelos serviços administrativos da Assembleia Nacional, sendo também o local de um clube político monárquico moderado, defensor da constituição, conhecido pelo Club des Feuillants. O quartel ficava na rua Saint-Honoré entre o Palácio das Tulherias e a Praça Vendôme.

14. Alexandre Berthier, ministro da Guerra desde o golpe de Estado de novembro de 1799 que colocou Napoleão Bonaparte no poder em França. Tinha sido chefe de estado-maior do  Exército de Itália.

15. Batalha travada em 9 de junho de 1800. Nesta batalha Coignet ilustrou-se ao capturar um canhão aos austríacos e recebeu por isso uma espingarda de honra.

16. La toise no original. A toesa era uma unidade de medida de um metro e noventa e cinco centímetros de acordo com o padrão francês de Paris.

17. Seis linhas no original. Linha: de acordo com o padrão francês tinha 2,256 mm.

18. Seis polegadas perfaziam 1,62m. O tamanho necessário para entrar na Guarda era, em princípio, de 1,78m.

Fonte:

Jean Mistler (ed.), Les cahiers du capitaine Coignet, Paris, Hachette, 1968

A ver também:

  • Outras histórias
    A lista completa de documentos pessoais ordenada alfabeticament
    e.

| Página Principal |
| A Imagem da Semana | O Discurso do Mês | Almanaque | Turismo histórico | Estudo da história |
| Agenda | Directório | Pontos de vista | Perguntas mais frequentes | Histórias pessoais | Biografias |
| Novidades | O Liberalismo | As Invasões Francesas | Portugal Barroco | Portugal na Grande Guerra |
| A Guerra de África | Temas de História de Portugal | A Grande Fome na IrlandaAs Cruzadas |
| A Segunda Guerra Mundial | Think Small - Pense pequeno ! | Teoria Política |

Escreva ao Portal da História

© Manuel Amaral 2000-2012