CRÓNICAS DE EÇA DE QUEIRÓS PUBLICADAS NA «GAZETA DE NOTÍCIAS», DO RIO DE JANEIRO. Nesta crónica, sobre o fim do ano de 1880 Eça
escreve sobre o Natal, que se tinha tornado em Inglaterra, por influência do
príncipe Alberto, marido da rainha Vitória, uma festa familiar. O que
contrastava com os países
católicos onde o 25 de Dezembro não era mais do que uma festividade importante do calendário
litúrgico, sem nenhuma outra conotação que não fosse a religiosa. Eça de
Queirós já tinha abordado o assunto numa das suas crónicas enviada, nos finais da década de
70, para o
jornal do Porto «A Actualidade», na perspectiva das crianças.
O
NATAL O
Natal, a grande festa doméstica da Inglaterra, foi este ano triste – dessa
tristeza particular que oferece, por um dia de calma ardente, a praça deserta
de uma vila pobre, ou dessa melancolia que infundem umas poucas de cadeiras
vazias em torno de um voltará mais... O que
nos estragou o Natal, não foram decerto as preocupações políticas, apesar da
sua negrura de borrasca. Nem a rebelião do Transval em que os Boers debutaram
por exterminar o 94 de linha, um dos mais experimentados e gloriosos regimentos
da Inglaterra e que ameaça ensanguentar toda a África do Sul numa guerra de raças;
nem a situação da Irlanda, que já não é governada pela Inglaterra, mas pelo
comité revolucionário da Liga Agrária – seriam inquietações
suficientes para tirar o sabor tradicional ao, plum-pudding do Natal. As
desgraças públicas nunca impedem que os cidadãos jantem com apetite: e misérias
da pátria, enquanto não são tangíveis e senão apresentam, sob a forma
flamejante de obuses rebentando, inuma cidade sitiada, não tirarão jamais o
sono ao patriota. Não;
o que estragou o Natal, foi simplesmente a falta de neve. Um Natal como este que
passámos, com um sol de uma palidez de convalescente, deslizando timidamente
sobre uma imensa peça de seda azul desbotada, um Natal sem neve, um Natal sem
casacos de peles, parece tão insípido e tão desconsolado como seria em
Portugal a noite de S. João, noite de fogueiras e descantes, se houvesse no chão
três palmos de neve e caísse por cima o granizo até de madrugada! Um
desapontamento nacional! Para
compreender bem o encanto da neve deste famoso Natal inglês, basta examinar
alguma das pinturas, gravuras ou oleografias, que o têm popularizado. O
assunto não varia na paisagem repetida: é sempre a mesma entrada dum parque,
de aparência feudal, por vésperas do Natal, antes da meia-noite; o céu pesado
de neve suspensa parece uma, gaza suja: e a perder de vista tudo está coberto
da neve caída, uma neve branca, fofa, alta, que faz nos campos um grande silêncio.
Junto à grade do parque, uma mulher e duas crianças, atabafadas nos seus
farrapos, com lampiões na mão, vão cantando as loas; e ao fundo, entre as
ramagens despidas, ergue-se o maciço castelo, com as janelas flamejando,
abrasadas da grande luz de dentro e da alegria que as habita. E toda
a poesia do Natal está justamente nessas janelas resplandecendo na noite nevada. Felizes
aqueles para quem essas portas difíceis se abrem! Logo ao entrar na antecâmara
os tectos, as ombreiras, os espaldares das cadeiras, os troféus de caça,
aparecem adornados das verduras do Natal, das ramagens sagradas do carvalho céltico;
e pelas paredes, em letras douradas, ondeiam os dísticos tradicionais –
Merry Christmas! Merry Christmas! alegre natal! alegre natal! e o mesmo
grito se repete nos shake-hands que se dão ao hóspede. Sob a
chaminé estala e dança a grande fogueira do Natal: a sua luz rica faz parecer
de ouro os cabelos louros, e de prata as barbas brancas. Tudo
está enfeitado como numa Páscoa sagrada: dos retratos dos avós pendem ramos
de flores de Inverno, as flores da neve, e todas as pratas da casa cintilam
sobre os aparadores, numa solenidade patriarcal. Dos grandes lustres balança-se
o ramo simbólico do mistletoe, o ramo do amor doméstico: e ai das
senhoras que um momento pararem sob a sua ramagem! Quem assim as surpreender tem
direito a beijá-las num grande abraço! Também, que voltas sábias, que estratégia
complicada, para evitar o ramo fatídico! Mas, pobres anjos! ou se enganam ou se
assustam, e a cada momento é sob o mistletoe um grito, um beijo, dois
abraços que prendem uma cinta fugitiva... E o
piano não se cala nestas noites! É alguma velha canção inglesa, em que se
fala de torneios e cavaleiros, ou uma dança da Escócia, que se baila, com o
gentil cerimonial do passado. E por
corredores e salas, as crianças, os bebés, com os cabelos ao vento, vestidos
de branco e cor-de-rosa, correm, cantam, riem, vão a cada momento espreitar os
ponteiros do relógio monumental, porque à meia-noite chega Santo Claus, o
venerável Santo Claus que tem três mil anos de idade e um coração de pomba,
e que já a essa hora vem caminhando pela neve da estrada, rindo com os seus
velhos botões, apoiado ao seu cajado, e com os alforges cheios de bonecos. Amável
Santo Claus! Por um tempo tão frio, naquela idade deixar a cabana de algodão
que ele habita no país da Legenda, e vir por sobre ondas do mar e ramagens de
florestas trazer a estes bebés o seu natal! Também,
como eles o adoram, o bom Claus! E apenas ele chegar, como correrão todos, em
triunfo, a puxá-lo para o pé do lume, a esfregar-lhe as decrépitas mãos
regeladas, e oferecer-lhe uma taça de prata cheia de hidromel quente - que ele
bebe dum trago, o glutão! Depois abrem-se-lhe os alforges. Quantas
maravilhas!... Mas
destas personagens que aparecem pelas consoadas, o meu predilecto é Father
Christmas – o papá Natal. Esse,
porém, só pode ser admirado em toda a sua glória, quando se abre a sala da
ceia: então lá está sobre o seu pedestal, ao centro da mesa – que lhe põe
em torno, com os cristais e os pratos, um amável brilho da auréola caseira.
Bem-vindo, papá Natal! Boas noites, papá Natal! O
respeitável ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado de neve, as
mãos escondidas nas largas mangas de frade, o olho maganão e jovial, esgarça
a boca num riso de felicidade sem-fim, e as suas enormes barbas de algodão
pendem-lhe até aos pés. Todas
as crianças o querem abraçar, e ele não se recusa, porque é indulgente. E
quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarcal riso se escancara; as
bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe, e ali está,
bonacheirão e venerável, com a importância de um Deus tutelar e amado, como a
encarnação sacramental da alegria doméstica. E no
entanto fora, na neve, as pobres crianças cantam as loas: e com vigor as
cantam! É que elas sabem que não serão esquecidas: e que daqui a pouco a
grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao peso de toda a sorte de coisas
boas, peças de carne, empadas, vinho, queijos – e mesmo bonecas para os
pequenos; porque Santo Claus é um democrata, e, se enche os seus alforges para
os ricos, gosta sobretudo de os ver esvaziados no regaço dos pobres. Tudo
isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado. O Natal com uma
lua cor de manteiga a bater numa terra tépida de Primavera, torna-se apenas uma
data no calendário. O lume não tem poesia íntima; não há loas; Santo Claus
não vem; o papá Natal parece um boneco insípido; não se colhe o mistletoe.
Não há mesmo a alegria de abrir a janela, e pôr no rebordo, dentro duma
malga, a ceia de migalhas do Natal para os pardais e para os outros passarinhos,
que tanta fome sofrem pelas neves. Enfim não há Natal! Foi o que sucedeu este
ano... Resta
a consolação de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o essencial;
pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto, e se se não tiritou
toda a noite entre quatro farrapos, é perfeitamente indiferente que nos
castelos as damas bocejassem. Nem eu
sei realmente como, a ceia faustosa possa saber bem, como o lume do salão
chegue a aquecer – quando se considere que lá fora há quem regele, e quem
rilhe, a um canto triste, uma côdea de dois dias. É justamente nestas horas de
festa íntima, quando pára por um momento o furioso galope do nosso egoísmo -
que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de simpatia
universal, e que a consciência da miséria em que se debatem tantos milhares de
criaturas, volta com uma amargura maior. Basta então ver uma pobre criança,
pasmada diante da vitrine de uma loja, e com os olhos em lágrimas para
uma boneca de pataco, que ela nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços
- para que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável.
Deste sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o
egoísmo parte à desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser
alguns revolucionários endurecidos, dignos do cárcere e a miséria continua a
gemer ao seu canto! Os filósofos
afirmam que isto há-de ser sempre assim: o mais nobre de entre eles, Jesus,
cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-nos, numa palavra
imortal, que teríamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revoluções
sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia – mas as revoluções passam e
os pobres ficam. Neste
momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os servos do ducado
de Leicester estão morrendo de fome, e o duque de Leicester está retirando
anualmente, do trabalho duro que eles fazem, quatrocentos contos de réis de
renda! É verdade que a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque
de Leicester se arriscasse a visitar o seu ducado de Irlanda, receberia, sem
tardar, quatro lindas balas no crânio. E o
resultado? Daqui a vinte anos os trabalhadores de Leicester estarão de novo a
sofrer a fome e o frio – e o filho do duque de Leicester, duque ele mesmo então,
voltará a arrecadar os seus quatrocentos contos por ano. Não
é possível mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter um
proletariado faminto numa burguesia farta; mas surge logo das entranhas da
sociedade um proletariado pior. Jesus tinha razão: haverá sempre pobres entre
nós. Donde se prova que esta humanidade é o maior erro que jamais Deus
cometeu. Aqui
estamos sobre este globo há doze mil anos a girar fastidiosamente em torno do
Sol, e sem adiantar um metro na famosa estrada do progresso e da
perfectibilidade: porque só algum ingénuo de província é que ainda
considera progresso a invenção ociosa desses bonecos pueris que se
chamam máquinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas e
difusas que se denominam sistemas sociais. Nos
dois ou três primeiros mil anos de existência trepámos a uma certa altura de
civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo numa cambalhota
secular. O tipo
secular e doméstico de uma aldeia Ária do Himalaia, tal como uma vetusta tradição
o tem trazido até nós, é infinitamente mais perfeito que o nosso organismo
doméstico e social. Já não falo de gregos e romanos: ninguém hoje tem
bastante génio para compor um coro de Ésquilo ou uma página de Virgílio;
como escultura e arquitectura, somos grotescos; nenhum milionário é capaz de
jantar como Lúculo; agitavam-se em Atenas ou Roma mais ideias superiores num só
dia do que nós inventámos num século; os nossos exércitos fazem rir,
comparados às legiões de Germânicos; não há nada equiparável à administração
romana; o boulevard é uma viela suja ao lado da Via Ápia; nem uma Aspásia
temos; nunca ninguém tornou a falar como Demóstenes: - e o servo, o escravo,
essa miséria da antiguidade, não era mais desgraçado que o proletário
moderno. De
facto, pode-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu venerável pai
– o macaco; excepto em duas coisas temerosas – o sofrimento moral e o
sofrimento social. Deus
tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogá-la num dilúvio.
Mas afogá-la toda, sem repetir a fatal indulgência que o levou a poupar Noé;
se não fosse o egoísmo senil desse patriarca borracho, que queria continuar a
viver, para continuar a beber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não
sermos...
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Fontes:
As cartas de Inglaterra foram publicadas pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1880 a 1896; Eça de Queirós, «III - O Natal», in Cartas de Inglaterra, Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão, 1905, págs. 45 a 54; Eça de Queirós, «IV - O Natal», in Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, (fixação do texto e notas de Helena Cidade Moura), Lisboa, Livros do Brasil («Obras de Eça de Queiroz»), 1970, págs. 41 a 48.
A ler: Maria Filomena Mónica, Eça de Queirós, Lisboa, Quetzal Editores, 2001 Na Internet: Eça de Queirós no Serviço de Referência da Biblioteca Nacional
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