DAS MEMÓRIAS DO MARQUÊS DE FRONTEIRA

Como o Marquês assentou praça em 1818 e fez a recruta. Ou como "apesar do serviço militar" havia "tempo para tudo" no princípio do século XIX.

Marquês de Fronteira
O 7.º Marquês de Fronteira

Conclui a primeira parte destas minhas memórias com a minha apresentação ao Marechal Beresford e escolha que este fez do Regimento de Infantaria n.º 4 para a minha estreia na carreira militar. Principiarei, pois, esta segunda parte pelo meu assentamento de praça em 9 de Maio de 1818.

Em companhia do Coronel Póvoas apresentei-me no quartel do Regimento de Infantaria n.º 4, em Campo de Ourique, e fui recebido pelo Coronel Armstrong, que estava almoçando, rodeado de toda a sua família. Uma das suas filhas ainda vive e tive o gosto de a ver em Lisboa há poucos anos, sendo já viúva, na companhia duma filha e dum filho; quando me apresentei a seu pai, era ela então uma criança.

O Coronel, não só pela recomendação do Marechal, más porque já me conhecia, tendo-me encontrado na sociedade, acolheu-me com toda a urbanidade, designando-me a 1.ª a companhia de granadeiros, para assentar praça. Fui imediatamente apresentar-me ao capitão Pedro José Frederico que, tendo sido soldado recrutado, chegara aquele posto pela sua bravura e bom comportamento nas campanhas peninsulares e que morreu Brigadeiro reformado, tendo sido Coronel do Regimento 18 no sitio do Porto em 1832.

A sua companhia de granadeiros era a mais bela companhia do Exercito português. Conduziu-me ele ao quartel da ordem onde encontrei o ajudante e o antigo padre capelão do Regimento respeitável pelas suas qualidades, como eclesiástico, e pelos seus longos serviços como capelão do corpo, tendo perdido uma perna no assalto de Badajoz. O ajudante era o tenente Rosado, hoje Major reformado e bem conhecido nesta capital; passava por um dos melhores ajudantes dos corpos de infantaria.

As bandeiras que estavam no quartel da ordem eram as mesmas que o Regimento tinha tido durante a Guerra Peninsular e viam-se todas crivadas pelas balas.

Passei depois à caserna da companhia e apresentei-me aos oficiais subalternos e ao primeiro-sargento, todos da Guerra Peninsular e feridos no campo de batalha. O primeiro-sargento era o veterano de todos eles, soldado do tempo de Gomes Freire; tinha ensinado a recruta ao capitão, mas, menos feliz do que ele, marchou com o corpo de exercito do Marquês de Alorna para França, onde foi condecorado com a legião de honra e ganhou o posto de alferes na batalha de Moscovo; voltando, porem, para Portugal, depois da paz geral, tornou à sua triste condição de primeiro-sargento na mesma companhia a que pertencia em 1808, quando deixou a pátria. Era o sargento Monteiro que todos os oficiais da época conheciam.

O Tenente-coronel era o Marquez de Valença, que estava doente, e Majores os distintos oficiais Rosado e Mendonça.

Deram-me logo um impedido para me ensinar a recruta, o qual veio morar para minha casa. Era ele quem formava à direita da companhia e por isto se pode julgar da sua altura; foi, por muito tempo, o cabo sinal do regimento; chamava-se Trindade.

Tive oito dias para me fardar, mas eu corri logo a casa do alfaiate, porque tinha o maior gosto em vestir o uniforme.

Chegou a desejada noite do baile do Marechal. Fardei-me com a ajuda de meu irmão, que, apesar do desgosto que tinha de não poder também fardar-se, me aconselhava em que altura devia pôr a espada. Depois de me ver vinte vezes ao espelho, parti para o Quartel-general, no Pátio do Saldanha, muito contente e vaidoso pela minha nova posição. Entrando nas salas do Marechal, parecia-me que todos admiravam o meu uniforme e o ar marcial do novo cadete, mas hoje tenho a consciência de que ninguém deu por mim. O uniforme era o mais modesto e simples que ali se via e faço hoje uma triste ideia do meu ar marcial, nessa época.

O baile começou e eu procurei ocasião de dançar o mais que pude com a minha noiva, de quem recebi cumprimentos, bem como de sua mãe, pelo meu novo traje.

Os meus contemporâneos perseguiam-me, por eu ser de infantaria, o que não era moda naquele tempo, chamando-me carango.

O Marechal, encontrando-me numa das salas, levou-me pelo braço, e apresentou-me a algumas senhoras, principiando pela bela Viscondessa de Juromenha. O embaraço que eu mostrava era mais duma menina saída dum convento, do que dum cadete de Granadeiros. Não duvido que pretendesse mesmo fugir das mãos do Marechal, tal era o acanhamento em que estava.

Desde este dia, nunca mais larguei o uniforme. Lembro-me de que, no dia seguinte, fiz imensas visitas, principiando pelo Grilo, indo de uniforme e montado num belo cavalo.

Entrei na recruta. Era primeiro instrutor do corpo o ajudante Rosado, mas pertenci à esquadra dum dos meus camaradas mais antigos, o cadete Corte Real. A corporação dos cadetes, no Corpo, era numerosa, porque éramos dezasseis, e muitos deles andaram comigo na recruta. Adiantei-me no manejo de armas e na escola de pelotão, para o que muito contribuiu o instrutor que tinha em casa, e, sendo dado por pronto, fiz a primeira guarda na praça do Terreiro do Paço, sendo a guarda comandada pelo meu capitão. Tive o maior gosto neste primeiro serviço que fiz, sendo ele aliás um dos mais secantes e que, de futuro, muito me aborreceu, pois muitas guardas e sentinelas fiz naquela praça.

A guarda foi acompanhada, desde o quartel até ao Terreiro do Paço, pelos meus camaradas cadetes e por uma quantidade de oficiais, que jantaram comigo, dando eu um verdadeiro banquete.

Durante o dia fiz todas as sentinelas que me competiram, e as da noite paguei-as, o que, segundo o costume, era permitido aos cadetes pelos comandantes das guardas. Parece-me que as pagava com mão generosa, porque ainda este ano (1861), entrando numa tenda em Paço de Arcos, para me refugiar da chuva, reconheci no tendeiro um meu antigo camarada e vi que ele com saudade se recordava das boas gratificações que eu lhe dava para me fazer as sentinelas.

Os exercícios em ordem de marcha é que muito me cansavam por causa da mochila; mas o bom do meu capitão valia-me nestes apuros, não exigindo de mim que levasse nela a roupa da ordem e permitindo que a levasse cheia de palha.

O General Pamplona era o comandante da minha Brigada, e o General Archibald Campbell o da Divisão. A ambos eles me apresentei e fui bem acolhido.

Havia frequentes exercícios de Brigada e de Divisão, umas vezes no Campo Pequeno, outras em Belém, no Campo das Freiras. As marchas a uma tal distancia, com uma arma e mochila e depois de duas horas de exercício de fogo, era serviço muito duro e forte para mim, atendendo à minha constituição e idade, mas o destino quis que eu pudesse resistir a estes e a outros maiores trabalhos que sofri como soldado.

Em um belo dia houve no Campo das Freiras um exercício de brigada na presença do Marechal Beresford. Era a Brigada comandada pelo General Pamplona e os corpos que a compunham, Caçadores 10 pelo Capitão Queiroz, irmão do actual Conde da Ponte de Santa Maria, o meu Regimento pelo seu Coronel e o Regimento 13 pelo Coronel Gattinara. Foi um belo exercício e que mereceu os elogios do difícil Marechal Beresford. Creio que daquela Brigada apenas existem hoje duas pessoas: o Major Rosado e eu. Naquele dia estive para morrer de cansaço, depois de três horas de exercício de fogo e duma marcha violenta do quartel para o Campo. Devo a vida, sem dúvida, ao Coronel e aos cuidados do cirurgião-mor do meu Regimento, porque houve momentos em que me sentia morrer.

Apesar do serviço militar, continuava eu na minha vida ordinária, tendo tempo para tudo. Não abandonava a casa da minha futura noiva nem as reuniões dos meus amigos; dormia pouco, porque o sono nunca me atormentou muito; e os meus poucos ou nenhuns cuidados me faziam sonhar um futuro de delícias.

 

Fonte:
D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto,
Memórias do Marquês de Fronteira  e d'Alorna ... ditadas por ele próprio em 1861,
revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrada,

Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926,
pp.175-178

A ver também:

| Página Principal |
| A Imagem da Semana | O Discurso do Mês | Almanaque | Turismo histórico | Estudo da história |
| Agenda | Directório | Pontos de vista | Perguntas mais frequentes | Histórias pessoais | Biografias |
| Novidades | O Liberalismo | As Invasões Francesas | Portugal Barroco | Portugal na Grande Guerra |
| A Guerra de África | Temas de História de Portugal | A Grande Fome na IrlandaAs Cruzadas |
| A Segunda Guerra Mundial | Think Small - Pense pequeno ! | Teoria Política |

Escreva ao Portal da História

© Manuel Amaral 2000-2008