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RECORDAÇÕES
DO PRÍNCIPE LICHNOWSKY O príncipe Lichnowsky, oficial do Exército prussiano, aristocrata de origem polaca, politicamente conservador - tinha combatido com os Carlistas, os legitimistas espanhóis, entre 1838 e 1840 - visitou Portugal em 1842, não ficando com uma grande impressão do país, nem sobretudo da sua classe política que, no fim deste trecho, considera como muito ignorante e profundamente falsa. A crítica ao país faz-se com base, já não em Voltaire e Montesquieu, mas sim em Chateaubriand, que tendo passado por Portugal e Espanha, no período da emigração devido à Revolução Francesa, defendeu que o atraso dos países ibéricos se devia à incapacidade das elites governarem os seus respectivos países. Mas as suas descrições do país são muito interessantes, e mostram quão diferentes eram as vivências na Europa de meados do século 19.
Quando
domina o terrível calor que
durante o dia paralisa no Verão todo o homem, quem não é negro nem
aguadeiro deve, tanto quanto é factível, tratar de todos os seus negócios
muito cedo, muito tarde ou de noite. O mesmo acontece com o comer, cette
manière agréable de satisfaire à un
besoin imperieux, como disse urna mulher
gastrónoma muito instruída e espirituosa, que sempre foi muito amável
para comigo e que deve aqui reconhecer-se de novo, se tiver tempo
para ler este humilde bosquejo. A alta sociedade e as classes ociosas
jantam em Portugal perto das oito horas da noite. Aceitei também esta
hora e devorava então um jantar sofrivelmente mangeable,
ainda que em geral o modo de cozinhar em Portugal seja pesado e gorduroso
e os homens deteriorem o que a terra e o mar lhes oferecem dotado das
melhores qualidades; pelo contrário, todas as frutas cruas ou de conserva
são óptimas, os vinhos preciosos, mas muito fortes, mesmo os que em
Lisboa se usam como vinhos de mesa - o tinto «Colares» e o branco
de Arinto. No interior do país o vinho é mau em muitos lugares; no
distrito do Porto, o vinho fraco, que se exporta pouco, é agradável;
chama-se vinho maduro do Alto Douro, em contraposição do vinho
verde; que tem um sabor detestável. Como todos os povos meridionais, os
portugueses dão grande apreço à sobremesa; não necessito mencionar as
frutas de todas as zonas e principalmente as laranjas célebres no mundo
inteiro, de cujo sabor formamos pouca Ideia quando comemos o fruto de
casca grossa, agro e filamentoso, que é cultivado nas nossas estufas
setentrionais, entre a geada e o estrume, em árvores encarceradas; ou as
denominadas tangerinas italianas das lojas de confeiteiro da Alemanha do
Norte, as quais por causa do transporte têm de ser colhidas antes de
estarem maduras. Em,
contraposição destas magnificências, o leite e todos os lacticínios são
muito maus. As vacas, como em Espanha, são ordenhadas com parcimónia e
somente no monte, com o receio que há geralmente de prejudicar aos
vitelos obrando doutro modo; e por isso bebe-se muito leite de cabra e
come-se manteiga velha e rançosa. A predilecção pelo ranço é quase
geral entre os portugueses; e por isso gostam só do azeite que tem
adquirido pelo correr do tempo um travo desagradável. Quando, há algum
tempo, o embaixador da Áustria recebeu de Espanha urna remessa de azeite
novo de Espanha, provaram-no os empregados da Alfândega de Lisboa para
conhecerem o conteúdo das vasilhas e admiraram-se altamente do extraordinário
paladar do diplomata do Norte, que gostava de azeite sem cheiro e que não
requeimasse a língua. Às, loucuras gastrónomas, que têm em particular todas
as nações e que consistem as mais das vezes em mandar vir de longes
terras, e por um preço elevado, objectos que no próprio país se
encontram, e de muito melhor qualidade, a estas loucuras pertence o facto
de em quase todo o Portugal, e principalmente nas grandes cidades,
consumir-se exclusivamente queijo holandês em grande quantidade, ao passo
que na serra da Estrela se preparam excelentes queijos por um preço módico,
semelhantes ao stilton inglês, e muito preferíveis ao queijo prato. Ser-me-á
permitido dizer uma palavra sobre os cães vagabundos de Lisboa, em
desabono dos quais tanto se tem dito na Europa e que todavia já não
importunam tanto como acontecia antecedentemente, visto que de vez em
quando se têm aplicado como remédio contra esta praga alguns profícuos
banhos de sangue; pouco antes da minha chegada tinham-se morto novecentos
numa
semana. São, porém, muito protegidos pelos habitantes mais necessitados,
principalmente dos bairros mais montanhosos e elevados da cidade, gente
naturalmente preguiçosa, que, para limpar suas casas dos sobejos da
cozinha e de toda a outra espécie de imundície, aproveitam o meio mais fácil
e pronto: à noite lançam tudo à rua sem a menor distinção; o sólido
sai imediatamente pela porta da rua e o líquido desce das janelas com o
prévio grito de «água vai!». Nos bairros mais elegantes, nas praças e
nas ruas largas da cidade baixa é verdade que não acontece isto, mas é
frequentíssimo esse uso repugnante nos becos tortuosos e nas estreitas
travessas da cidade alta. E por isso que os cães se hospedam aí à sua
vontade, espojam-se ao sol para fazerem a sua sesta nos estreitos
passeios, de maneira que é indispensável ou passar-lhes por cima ou
enxotá-los. De noite divagam pelas ruas, uivando lamentosamente. Se alguém
infelizmente vem ao encontro deles, enquanto devoram a sua hedionda refeição,
acreditam logo provavelmente que se pretende alcançar no seu grémio a
honra de comensal e então acometem cavaleiros, e peões, com um ladrar
furioso e nem sempre se limitam a estas pacificas demonstrações de
indignação. Estes animais nauseabundos, que somente se encontram em
Lisboa, têm-se aí de tal modo naturalizado que há muito poucos
portugueses que concedam a possibilidade da sua extirpação total. Quando
em um dia exaltava as vantagens de uma tal medida, opinaram alguns indivíduos
presentes, aliás distintos e respeitáveis, que não se poderia lograr
isso, que não era exequível. Foi apenas o atilado duque de Palmela que,
com a sua fisionomia constantemente prazenteira e onde se não sabe se é
o riso se é o escárnio que deve ler-se, ousou asseverar que de modo
algum chegaria à altura de um dos trabalhos de Hércules a empresa de se
ver livre desses brutos vagabundos. A
mania política tem acometido todos os habitantes da capital, desde o
fidalgo e o par do Reino até às fezes da plebe. Apenas os pobres pretos
das possessões portuguesas de África, que passeiam aos milhares pelas
ruas de Lisboa, são os únicos que não discutem em política, ao menos
segundo me consta; mas também não são tratados como homens pelos
portugueses, porém como uma raça ruim de animais domésticos. Caiam,
durante o máximo ardor do sol, as paredes exteriores das casas e no fim
das corridas de touros lançam-se contra a fúria exacerbada daqueles
animais. Quando chegam a envelhecer, arrastam-se mendigando pelas ruas de
Lisboa, contaminados de enfermidades nauseabundas; com barbas encanecidas
que produzem um efeito hediondo nos seus rostos negros. Os
terrenos na direcção do vale de Zebro para o interior do país
apresentam uma triste aparência. Um solo coberto de areia fina, dum
amarelo-claro, prolonga-se desde a praia até à montanha de Palmela e à
serra da Arrábida. Pinheirais e matos de alecrim e de zimbro cobrem esta
superfície arenosa por onde o trânsito é sumamente penoso. Ao longo dos
caminhos, gigantescas piteiras estendem em todas as direcções os seus
braços pontiagudos; muitas dessas folhas, em meia putrefacção, caem por
terra e contribuem para aumentar o aspecto de abandono agrícola que
apresenta esta região selvática. A maior distância junto à serra vêem-se
cactos de grande altura e algumas solitárias palmeiras; aí é a cultura
um pouco melhor e as quintas muradas, as romeiras e loureiros dão indício
de mais laborioso desvelo e mais pingue vegetação. O solo eleva-se pouco
a pouco na direcção da serra, a qual se prolonga com variadas ondulações
até ao cabo de Espichel. No ponto mais elevado, sobre uma montanha cónica,
existe o mosteiro ou o castelo de Palmela, que é visível a remotíssima
distância. A montanha é fragosa, nua, escarpada, de arrojados contornos
e forma superiormente uma pequena planura onde se acha situado o castelo,
cujas grandiosas dimensões me fizeram recordar de Santo Estêvão de
Gormaz, o célebre castelo feudal junto ao Douro, na Castela Velha.
Palmela foi durante muitos séculos o lugar de residência do prior-mor da
ordem militar de Santiago. Actualmente está deserto e abandonado, pois
que as comendas e priorados das três ordens militares foram abolidos
juntamente com os conventos. Antigamente, os jovens cavaleiros eram
obrigados a passar algum tempo como noviços no castelo junto ao prior-mor,
e havia ali também um hospício onde eram recolhidos e sustentados os
cavaleiros destituídos de meios. Já tudo isso acabou: hoje a antiga
fortaleza é somente habitada por alguns veteranos que nos receberam com
semblante melancólico quando entramos a porta. O castelo foi edificado
pelos mouros e teve então grande importância; nos últimos tempos,
todavia, perdeu toda a espécie de consideração. Algumas obras
exteriores desmoronadas e uma dupla linha de muralhas poderiam ainda hoje
permitir resistência a um ataque de arma branca; contudo não se explica
facilmente a razão por que D. Miguel colocou ali uma guarnição em pé
de guerra, não sendo possível de modo algum sustentar um sítio regular
naquela posição, nem havendo ninguém decerto que intentasse essa operação
militar de que se não tiraria resultado algum vantajoso. O
interior compreende um espaçoso recinto formado por urna torre de
bastante altura, pela muralha interna e pelas casas do prior e dos
cavaleiros; a primeira destas é habitada por um velho oficial que serve
de governador; a outra está devoluta e deveria ser muito alegre no tempo
em que ali viviam vinte jovens cavaleiros. Seis peças de artilharia
velhas e inutilizadas jazem desmontadas sobre os baluartes: o edifício
inteiro é totalmente falto de beleza arquitectónica. Em um dos ângulos
da muralha do recinto, encontra-se uma pequena porta; no momento em que se
chega junto dela, abre-a repentinamente o veterano cicerone e subitamente
daquela imensa altura dilata-se a vista sobre o verdejante e pomposo vale
de Setúbal. Creio
que não há porção de terra alguma no mundo que encerre um maior número
de laranjeiras, as quais, dispostas em renques apertados, enchem o vale
inteiro como se fora um só pomar, formando um contraste pitoresco com a
escarpada montanha e com as selváticas penedias da Arrábida. O vale de
Setúbal fornece a maior quantidade das mais belas laranjas de Portugal,
que são cultivadas cuidadosamente em grandes quintas, pois que
propriamente bosques de laranjeiras, isto é, multidões dessas árvores
dispostas sem ordem alguma e crescendo livremente não se encontram em
parte alguma, pelo menos em, toda a península Ibérica; são sempre
terrenos fechados, cingidos de muros ou de sebes, onde as árvores estão
plantadas em compridas linhas paralelas: o proprietário que possui cinco
a seis mil laranjeiras, quase sempre distribuídas em vários pomares, é
tido por um homem abastado. No vale de Setúbal há alguns centenas de mil
laranjeiras, cujo crescimento e grandeza podem em geral ser comparados com
os das nossas árvores frutíferas de vinte anos de idade. Os pomares são
contíguos uns aos outros, de maneira que, observados da altura do castelo
de Palmela, parecem um único laranjal, onde se vêem aparecer, a
espaços,
as paredes alvejantes das casas de campo, das aldeias e das igrejas,
formando fundos pitorescos encravados naquela vasta extensão de folhagem
verde-escura. Este vale inteiro tem impresso o cunho da propriedade de uma
cultura de longos anos e de uma pacífica e verdadeira alegria, por modo
tal que não é fácil observar o mesmo. em outros pontos de Portugal.
Contudo, afastando as vistas dali e olhando a alguma distância numa direcção
oposta, a cena muda completamente; para um lado, prolongam-se como urna
espécie de deserto as áridas e requeimadas charnecas do Alentejo, até
perderem-se em remoto horizonte; mais à esquerda, para além dos
pinheiros e dos areais, alongam-se as vistas por esse espaço dilatado
onde as águas do Tejo se misturam com as do Oceano, divisando-se ao longe
o vulto de Lisboa debilmente desenhado e envolto em urna atmosfera
vaporosa; uma poesia melancólica derrama-se por todo este quadro; aparece
de novo completamente o aspecto belo, mas triste, do Portugal dos nossos
dias pomposo, mas fatigado já de viver, tal como se antolha, contemplado
do alto da Pena. O
sol mergulhava-se no mar naquele momento e dourava os contornos das ruínas
de Tróia, que existem defronte de Setúbal em uma língua de terra que se
avança do areal: descemos então da montanha de Palmela por uma vereda íngreme
e atravessamos o vale por entre pomares de laranjeiras, cujos ramos vinham
cruzar-se sobre o nosso caminho. Não pude resistir à tentação de
colher e devorar imediatamente um desses formosos frutos. As laranjas
portuguesas são muito maiores do que as de Malta e de Maiorca, não têm
a casca tão fina, mas conservam-se muito melhor. Nos últimos tempos tem
diminuído a procura, pois que as ilhas do Mediterrâneo, as costas do
norte de África e os Açores fornecem esta fruta em grande quantidade. Por
isso também diminuíram muito de valor os pomares à roda de Setúbal;
contudo esta povoação ocupa o lugar mais importante entre as vilas
portuguesas, não só pela sua grandeza e pelo número de seus habitantes,
que monta a 16.000 (segundo Balbi 14.826), mas também por causa do seu
comércio que é muito considerável, principalmente com Lisboa e Porto. Só
no fabrico de sal se empregam regularmente 2.000 homens; cada um deles
ganha ordinariamente dezoito vinténs por dia e às vezes mais; no último
ano subiu ò salário a um cruzado novo, pelo que houve uma tão grande
concorrência de jornaleiros que os campos ficaram abandonados. O sal é
recolhido em grandes receptáculos rectangulares, que têm tripés de
profundidade e estão situados ao largo do mar e do rio Sado por uma
extensão de nove léguas; têm a denominação de marinhas, A água do
mar ë introduzida nestes receptáculos por meio de canais que se dividem
em muitas ramificações: quando o receptáculo está cheio fecha-se o
canal. Em alguns lugares corre primeiro a água para grandes reservatórios,
governos, donde é derivada para as marinhas. Quando; em virtude do ardor
do sol, a água secou inteiramente, retira-se o sal em Junho por meio de pás
e empilham-no dentro de barracas de madeira ou amontoam-no ao ar livre
resguardando-o da chuva com urna camada de junco que lhe sobrepõem. O sal
é feito em grão muito grosso, adquire pouca humidade com o contacto da
atmosfera é limpo, muito branco, e de excelente qualidade para a salga do
pescado. Tive ocasião de reconhecer pela comparação que o sal de Setúbal
é muito mais forte e mais claro do que o de Aveiro e mesmo do que o célebre
sal de Cádis. Todos
os anos vêm regularmente holandeses, franceses, russos e prussianos (de
Dantzig) carregar ali a quantidade que necessitam; a preferência que as
grandes casas de comércio daquelas nações dão a Setúbal funda-se
principalmente em que este mercado de sal é o único das costas da Europa
em que os preços são constantemente invariáveis. Pagas todas as
despesas, o moio é posto na praia por 1000 réis. O custo da condução
até a bordo paga-o o capitão por uma tarifa conhecida e fixa. Em consequência
destas vantagens é muito natural o como preferiram o porto de Setúbal as
nações acima mencionadas, saindo os seus navios unicamente para carregar
sal. A respeito, porém, dos americanos houve uma mudança, por motivo dos
secundários interesses; há dez anos que se abastecem de Cádis, para
onde mandam anualmente de 100 a 200 navios, apesar do' sal de Setúbal ser
mais barato e melhor e oferecer mais segurança no comércio; porém, os
direitos de ancoragem e o custo do Iastro são aí tão consideráveis que
os americanos que transportam o algodão tornam uma porção de ferro como
lastro e desembarcam juntamente em Cádis a carga e o lastro. Actualmente
entram ainda por ano no porto de Setúbal de 400 a 500 navios e carregam
80 até 100.000 toneladas. Doze destes navios exportaram no último ano
laranjas e cortiça; todos os outros levaram unicamente sal. O
comércio total entre a Inglaterra e Portugal monta anualmente a 1.100.000
libras esterlinas aproximadamente; o valor dos vinhos exportados sobe (uns
anos por outros) à quantia de 900.000 libras esterlinas, além do que se
exportam frutas (250 navios no último ano), sal, azeite e cortiça. A
importação consiste principalmente em lanifícios; estes montam à
quantia de quase 400.000 libras esterlinas anuais, do que todavia só uma
pequeníssima parte é consumida no país; o resto passa como contrabando
para Espanha. O aço e as quinquilharias formam o segundo ramo de importação.
Em louçarias e em vidros já a Inglaterra não pode fazer senão poucas e
más vendas, visto que desde muito tempo os produtos boémios, saxónios e
silésios têm adquirido uma fundada reputação e têm em seu favor as
vantagens do preço módico e excelência da qualidade. Em
geral as importações e exportações equilibram-se. Na verdade, se o
povo fosse mais trabalhador e industrioso, se os campos se cultivassem
devidamente e se se erigissem fábricas, então Portugal poderia ocorrer
ao menos em grande parte às suas necessidades; porém, seriam necessárias
para isto tantas condições difíceis de atingir que, por muitos anos
ainda, não é lícito pensar em semelhante prosperidade. Antes de tudo é
indispensável que desapareça, ou ao menos se torne inofensiva, a mania
das mudanças e das revoluções que é própria dos habitantes das
grandes cidades e dos seus caudilhos; devem todos esquecer-se e
consolar-se da perda do Brasil que, com os seus tesouros, sustentava e
enriquecia a mãe-pátria e a tornava preguiçosa, apática e incapaz de
qualquer esforço. A
pouca distância das Caldas das Taipas encontramos um grande cavalheiro
dos arredores que nos foi indigitado pelo meu guia miguelista como um dos
mais zelosos partidários do seu rei expulso. Este desgraçado príncipe
conta particularmente no distrito de Braga mais amigos dedicados do que no
resto do país, visto que foi ele, desde muito tempo, a única pessoa
regente de Portugal que residiu em Braga e porque o clero, que nessas
terras possuía grandes bens e avultados benefícios, exerce aí ainda
hoje um influxo considerável; os frades expulsos, pela maior parte
oriundos daqueles sítios, regressaram, depois da abolição dos seus
conventos e mosteiros, para o lar paterno, e naturalmente mantiveram entre
os seus parentes aquele seu modo de pensar; contudo, é também inegável
que o maior número dos camponeses e caseiros dependentes dos domínios
eclesiásticos achavam-se muito melhor sob a antiga autoridade do que
actualmente, ligados a ambiciosos especuladores que, tendo à custa de
somas diminutas entrado na posse de ricas herdades, agora com sofreguidão
e extorsões de toda a espécie esforçam-se por ganhar, no menor tempo
possível, cento por cento do preço da compra, para, no constante receio
de um regresso à antiga ordem de coisas, abandonarem os edifícios
deteriorados e o solo exausto a quem mais oferecer. Nos
países estrangeiros acredita-se comummente que um embaixador inglês em
Portugal é uma espécie de procônsul romano na corte dos reis tributários
de África ou de Ásia; estas opiniões têm-na propagado, particularmente
entre todos os fazedores de política., ou declamações de muitos jornais
acerca da influência predominante e opressiva da Inglaterra. Uma curta
residência no país é suficiente para reconhecer o exagero de tais
asserções. Na verdade, a posição do embaixador inglês é mais
considerável do que a dos representantes das outras potências, que pouco
ou nada se inquietam acerca de Portugal e que durante mais de dez anos
tinham deixado de conhecer as circunstâncias do seu governo, cedendo só
ultimamente à urgência de uma necessidade imperiosa para de novo enlaçar
as relações por tanto tempo interrompidas. Pelo que diz respeito a
esses, não há, pois, motivo para se fazerem comparações. Porém, mesmo
em presença dos embaixadores de França e de Espanha, apesar das ligações
de família e relações de vizinhança, mantém-se por si mesma a
supremacia do diplomata britânico, simplesmente, naturalmente, e mesmo
sem que para isso ele contribua com grandes esforços. Com
excepção dos miguelistas, que quase geralmente se conservam tranquilos
ou se reúnem aos pouco numerosos anarquistas nas revoltas e nas eleições,
há actualmente três partidos activos nas câmaras; digo intencionalmente
nas câmaras e não no povo, porque este; e particularmente fora das
grandes povoações, é quase totalmente indiferente. Os três partidos
nas câmaras são os setembristas, os cartistas propriamente ditos e os
cartistas dissidentes. Os primeiros estiveram à frente do governo depois
do dia 9 de Setembro de 1836; há entre eles caracteres distintos e do
fundo do coração adictos à causa monárquica, homens que têm prestado
ao seu país os maiores serviços, por modo que admira vê-los inscritos
em um partido imperfeitamente constituído, indefinível para si mesmo, e
que percebe tão pouco os seus próprios interesses que, mesmo no tempo em
que vigorava a sua constituição, os seus de cedidos adversários
sucessivamente se foram apoderando das posições mais importantes. Os
setembristas em geral não são republicanos; desejariam, porém, reduzir
quase à nulidade as prerrogativas da corte, concedendo-lhe somente uma
autoridade nominal.. Dilataram irreflectidamente a aplicação do princípio
eleitoral a todas as rodas da máquina política; a sua constituição
tinha as mesmas deficiências e erros que ainda persistem hoje em dia na
constituição belga e principalmente na origem eleitoral de ambas as câmaras,
donde resulta faltar ao movimento, à tendência para a mudança e à
turbulenta actividade da segunda câmara a compensação de um defensor
natural da estabilidade, vindo a ser deprimida a primeira câmara à condição
de acessório impotente da segunda. Ninguém acreditou jamais, nem em
Portugal, nem fora dele, na duração da constituição de 1838. Porém,
apesar disso, a prova maior da sua debilidade forneceu-a a sua queda rápida
e pacífica. Cartistas conhecidos, como Rodrigo da Fonseca Magalhães e
Costa Cabral, estavam no Ministério; as eleições de 1840 tinham já
reconduzido às câmaras um grande número de senadores e deputados
cartistas, o que foi por muitos considerado corno o primeiro passo para a
restauração da Carta; foi mesmo sugerido por alguns restabelecer em
vigor aquele código por meio de um acto regular e em harmonia com a
coroa; contudo este arbítrio deixou de ser aceito. Finalmente, Costa
Cabral partiu para o Porto; a Carta foi ali proclamada em 27 de Janeiro de
1842 e dentro em treze dias foi reconhecida por todo o reino como o pacto
fundamental do Estado. Os descontentes todos não deixaram de propalar que
Costa Cabral se dirigira ao Porto em perfeita harmonia com Suas Majestades
e em virtude de secretas promessas da coroa; e que tudo o que
ulteriormente aconteceu fora a consequência dessas instruções
superiores. Todavia, tal opinião é inteiramente falsa e destituída de
fundamento e deve antolhar-se logo como absurda para quem medianamente
conhece os factos e lhes analisa as relações. Ninguém, nem mesmo os
amigos de Costa Cabral, previa o que devia acontecer; talvez ele próprio
ignorasse-os sucessos que o esperavam. Costa
Cabral, mais do que todos os outros, tem conhecido as tendências e as
necessidades do seu país, e é forte e poderoso porque reúne em si o que
falta à maioria dos seus compatriotas. Não pode de modo algum ser intenção
minha negar a primeira das qualidades, e aquela sem a qual não há
prosperidade possível no mundo, a um povo que tão gloriosamente figurou
em anais de muitos séculos; todavia em Portugal, apesar de tantas revoluções,
intrigas e facções políticas, é muito para surpreender o como raras
vezes se resignam os chefes de partido a comprometer-se pessoalmente e a
tornarem-se, por assim dizer, responsáveis com o seu corpo e com a sua
vida. A simpatia, a dedicação por uma convicção política cessam
ordinariamente quando periga a segurança individual; nesta terra parece
que os homens activos e enérgicos, os que a si próprios se sacrificam, são
ainda mais raros do que nos outros países. Contudo, estas qualidades,
necessárias em todas as situações políticas, alcançam uma importância
muitíssimo maior, quando são indispensáveis a fortaleza física e o
valor militar, quando o punhal dos insurgentes, os decretos sanguinários
das sociedades secretas e as revoltas do povo ameaçam todos aqueles que
se esforçam pelo restabelecimento da ordem. Valor desta espécie ninguém
o nega ao actual ministro do reino, nem mesmo os furiosos jornais
oposicionistas, cujas desenfreadas diatribes fazem bem ver que a liberdade
de imprensa é. para eles uma dádiva muito recente, de que ainda se não
sabem aproveitar. Os redactores destas folhas temerárias parece que
exultam de regozijo por poderem dizer tudo o que lhes passa pela cabeça,
como excitados por urna ebriedade voluptuosa, destituídos de razoáveis
pensamentos e abandonados a um imaturo entusiasmo, segundo a clássica
expressão do meu amigo Dahlmann. Duas
exprobrações têm sido feitas a Costa Cabral, principalmente fora do país:
a sua mudança de cor política e a sua ingerência nas sociedades
secretas. Urna lista dos juramentos das câmaras de pares francesa e tudo
o que nestes últimos anos tem sido publicado para defesa das denominadas
defecções necessárias seriam talvez a melhor resposta à primeira acusação;
e decerto a rígida. escala dos governos monárquicos puros não deve
achar aplicação alguma nessas nações em que ministérios, constituições
e mesmo dinastias substituem-se mais rapidamente do que naqueles se muda o
pessoal da chancelaria-mor. Pelo
que respeita às sociedades secretas, se não é impossível a sua extirpação
em Portugal, é certo, pelo menos, que elas têm tão grande e tão
poderosas ligações, tanto pessoais como materiais, que proíbem até o
pensar na sua abolição. O seu influxo é inegável, a sua propagação
universal e as suas tendências inteiramente diversas da
acção filantrópica e regular de outros sistemas de maçonaria. A tendência
das lojas portuguesas é exclusivamente política e até aqui tem sido
preponderantemente revolucionária. Entre
os muitos portugueses com que tratei, só mente encontrei um que não fala
nunca em política diante de pessoas estranhas e, contudo, teria ele muito
para contar, e poderia ter a certeza de que havia de ser escutado todas as
vezes que quisesse: falo do duque de Palmela. Não me acho em estado de
decidir se é unicamente uma inclinação que lhe ficou desde o tempo do
Congresso de Viena, o deleitar-se em falar acerca das artes e da
literatura, assim como outro grande estadista da mesma época se entretém
de preferência com as descobertas industriais, com as máquinas e com
anedotas licenciosas. Porém,
seguramente, a conversação do espirituoso duque não se torna por isso
menos interessante, visto ter ele proficiência em diferentes ramos, ser
muito erudito e muito versado no conhecimento das belas artes, tendo uma
louvável liberalidade com que se esforça em resistir à completa decadência
dos muito admiráveis restos que ficaram a Portugal da sua grandeza
passada. As suas edificações e restaurações no convento da Arrábida,
entre Setúbal e o cabo Espichel, são uma prova do que deixo dito. O
duque de Palmela estava residindo no seu palacete do Lumiar quando eu
cheguei a Lisboa; as nossas cartas cruzaram-se e fiz-lhe por isso uma
visita baldada. Quando, uma manhã veio ter comigo, rapidamente,
furtivamente; um homenzinho de insignificante estatura, rosto pálido,
nariz adunco e feições decididamente italianas; a sua figura não
inculca nem distinção nem autoridade. Apenas uns olhos vivíssimos e um
singular sorriso dão indício de uma individualidade acima do comum. Não
acredito que jamais agradasse a alguém este sorriso, ainda que o duque é
tido por magnânimo, amigo dos seus amigos e benéfico mesmo em certos
casos. Talvez que esse sorriso seja uma qualidade diplomática, assim como
o rir estrondoso que um diplomático da Hungria empregou com sucesso em
Inglaterra e no continente e que ainda emprega talvez. O duque de Palmela,
apesar da sua figura pouco importante, apresenta-se de um modo magnífico,
quando na abertura das Câmaras se entroniza, com um traje espanhol, na
sua elevada cadeira da presidência. Os
motivos de gratidão de que o duque de Palmela é credor, para com a rainha e com o estado presente de Portugal, são incontestavelmente
grandes e reconhecidos em todo o país. Durante a emigração prestou os
mais valiosos serviços na Inglaterra e na ilha Terceira, como presidente
da regência e corno ministro dos negócios estrangeiros, portando-se
sempre com a maior actividade, perseverança e Inteligências Depois do
desembarque na costa do Mindelo, e na formação de uma regência provisória
em Lisboa, cooperou constantemente com o maior zelo. Ainda nos anos de
1834 e 1835 presidiu o concelho de ministros e teve a pasta dos negócios
estrangeiros. Em combinações ministeriais viu-se, pela última vez,
figurar o seu nome durante os poucos dias que passaram desde a revolução
no Porto, neste ano, até à completa restauração da Carta. Actualmente,
é presidente da Câmara dos Pares, cargo que já exerceu em 1833 e que na
verdade traz ligada a si uma grande dignidade; porém que exime o nobre
duque de toda a espécie de responsabilidade, ficando fora do alcance de
todas as flutuações ministeriais. Isto mesmo será talvez a posição
que ele desejava. O duque de Palmela está hoje muito rico, muito saciado
de louros e dignidades a sua popularidade acha-se mais seguramente
estabelecida e, decerto, sem uma vantagem positiva; não pretenderá
expor-se a perder todas essas coisas tão belas e tão substanciais.
Quando se tem vegetado nas tribulações e na miséria, quando no exílio
se têm padecido necessidades quase sem esperança, então aprende-se a
apreciar duplamente as alegrias e vantagens de uma vida cómoda e agradável
e deseja-se também fazê-la completamente. Pareceu-me muito claramente
que era este o fundamento do proceder do duque, principalmente quando
essas disposições estiverem a ponto de produzir uma crise ministerial e
já então achei que o seu comportamento era inteiramente justificável e
até muito natural. Agora que passou esta época e que, sem a sua presença
no ministério, o gabinete se conserva arme e poderoso, agora
principalmente, aquele proceder é de todo excelente e uma prova segura de
grande juízo prudencial. Finalmente, o duque de Palmela padeceu e
trabalhou muito; deve agora descansar. Está próximo dos seus 62 anos
deidade e pode lançar com prazer as vistas sobre sua prolongada vida, que
não passou nem destituída de glória nem de resplendor.
Fonte: Príncipe Lichnowsky, Portugal: Recordações do ano de 1842, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844. Lichnowsky, Portugal em 1842, Lisboa, Edição de Agostinho da Silva (Antologia - Introdução aos Grandes Autores, 4.ª série), 1942.
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