DO LIVRO DO CORONEL HUGH OWEN


O Coronel Owen mostra como o exército liberal desembarcou no Mindelo e ocupou a cidade do Porto, e como é que as forças miguelistas, erradamente, foram respondendo ao desembarque das forças de D. Pedro.

Hugh Owen

O coronel Hugh Owen

CAPITULO VI

A defesa de Portugal. - Políticos de curta vista. - Erros dos miguelistas. - Invasão de D. Pedro. - Desembargue no Mindelo. - Os miguelistas retiram. - João Branco. - Poucas esperanças. - Inacção dos liberais. - O batalhão sagrado. - Os ilhéus desertam.

PELA linha extensa da costa, o país precisava de uma esquadra para se defender e pôde equipar quinze naus de guerra quando D. Pedro lutava com embaraços quase invencíveis para dispor de alguns barcos necessários à sua empresa. Mas sucedeu que o governo miguelista, tendo ofendido o governo francês, se recusou, teimosamente a explicações, que, apesar de exorbitantes e ultrajantes, facilmente iludiria com promessas nunca efectuadas. Deu assim a um inimigo poderoso, pretexto para se apoderar da esquadra portuguesa. À injusta conduta do governo francês responderam ministros de D. Miguel, políticos de curta vista, recusando anuir ás reclamações da França, na esperança de excitarem a Inglaterra contra a velha inimiga hereditária (1). Mas a Inglaterra sabia que não havia em França segundas vistas sobre Portugal, e o gabinete britânico tacitamente auxiliou a causa de D. Maria II permitindo a violência. Ficaram algumas velhas naus ao abandono – e o governo cruzou os braços ... Que se podiam concertar provou-se claramente, quando já não tinham de todo serventia. Se os ministros de D. Miguel preparam outra esquadra com os sete navios que apodreciam no Tejo, D. Pedro não conseguiria facilmente aproximar-se da costa com meia dúzia de barcos. E dado o caso de não impedirem o desembarque do exercito libertador nas praias do Mindelo, dispersariam facilmente os transportes carregados de mantimentos e de munições de guerra, não lhes consentindo descarregar na costa e muito menos o livre acesso à dificultosa barra do Douro.

Os miguelistas, explicou-se, deixaram desembarcar o exército, tencionando destruí-lo depois. Bom método na verdade, desde que se pudesse despender muito talento, muito dinheiro e muito sangue, o que era problemático e incerto com um exército de sentimentos duvidosos.

A 7 de Julho de 1832 ao cair do dia, os soldados estacionados nos telégrafos perto de Vilar do Paraíso descobriram a esquadra de D. Pedro fazendo-se de vela para o norte do Porto. Pelas nove da noite os tambores rufando nas ruas tortuosas da cidade anunciavam aos de dentro e de fora que tudo estava alerta e a postos. D. Pedro continuou na derrota até Vila do Conde e Viana, e na manhã seguinte, aproximando-se da costa, mandou Sá Nogueira à terra citar o comandante a que abaixasse as armas e se unisse à causa da rainha. Mas o brigadeiro general Cardoso, no extremo direito da linha realista, oficial respeitado pelo carácter integro, e em quem o governo miguelista descansava, nunca desde 1820 mudara de opinião. Respondeu insolentemente ao Sá Nogueira, dizendo-lhe que não conhecia D. Pedro senão como chefe de um bando de aventureiros, e que, se insistisse em semelhantes recados, fuzilava o portador. A esquadra retrogradou e ancorou no dia 8 na praia do Mindelo, a distancia de duas léguas do Porto, e pouco depois do meio dia começou o desembarque com a maior regularidade, na presença das tropas de Santa Marta, que mostrava pouca ou nenhuma vontade de molestar os novos hospedes (2). No instante em que a não de D. Pedro içou a bandeira real no mastro grande, a fragata Stag de Sua Majestade Britânica virou de bordo e deu uma salva de vinte e um tiros, a que D. Pedro correspondeu. Muitas pessoas que vigiavam da Senhora da Luz o sucesso do dia, recolheram à cidade, começando a trabalhar pela sua causa; outras, porém, apreensivas, cogitaram em planos de nova vida ...

A tropa formou na praia, tomando logo a melhor posição que o terreno oferecia. Trocaram-se alguns tiros – poucos. Já ninguém ignorava que o exército libertador contava menos de nove mil homens. E não acabava o susto e o pasmo dos liberais ao saberem que com tão pequena força vinha D. Pedro salvar a pátria da tirania e a eles e ás famílias da opressão. Lembravam-se das desgraças, da incompetência e da retirada de 1828, e olhavam uns para os outros em silêncio, e tristes como a noite. Por seu lado os absolutistas, extremamente assustados, apressavam-se a sair da cidade, fugindo de D. Pedro e da mortandade que julgavam certa, mas, fiados nos numerosos partidários e no exercito de D. Miguel, protestavam em altas vozes voltar brevemente em triunfo. Nem outra coisa era de esperar. Menos de nove mil homens para abrir caminho até Lisboa, com mais de oitenta mil na frente – e tropa regularmente fardada e armada!

Não obstante a desigualdade do número, sabida por toda a gente, a confusão dos absolutistas chegara ao auge: - Viram o estandarte real de D. Pedro? -perguntavam, chegando-se aos grupos embiucados no jozésinho. - Lá está tremulando no mastro grande... - E nesse único facto muitos leram a solução do conflito. - Nunca o exercito se baterá contra ele. - E apressavam a partida. - Ele é Pedro e basta! ... - E davam ordens para a carruagem, cavalos, machos e barcos. - Os malhados, e os pedreiros livres vêem com ele, e hão-de querer vingar-se dós zelosos serviços dos nossos imprudentes realistas. - E deixavam as casas, abandonando tudo. Os vizinhos liberais eram agora os seus melhores amigos: Vossa mercê sabe muito bem senhor Fulano, que eu nunca persegui ninguém; vivi sempre retirado. Não quero senão paz e sossego, e que possamos viver como bons irmãos. Que me importa a mim quem governa o país? -Estes e semelhantes ditos só excitavam compaixão, desprezo e riso. Como tinham mudado tão depressa da arrogância para a humildade; das paixões sanguinárias, da perseguição e da vingança, para sentimentos benignos de amor fraterno!

A classe média dos liberais, duvidosa da fortuna, parecia estupefacta: os que tinham a perder, tremiam ao lembrar-se da ameaça, tão repetida pelos miguelistas, de que a cidade seria saqueada se os obrigassem a retirar. Esconderam-se cuidadosamente em casa. Alguns mais atrevidos mal deitavam o nariz fora das janelas; outros, os indignos, que lisonjeiam todos os partidos sem se declarar por nenhum, corriam de porta em porta espalhando boatos favoráveis, e tentando por excessivas demonstrações de alegria e por extravagantes expressões de parabéns, abrir caminho à protecção futura: - Santa Marta – diziam – está em retirada através do Douro ... - Num instante mãos desconhecidas estilhaçaram as forcas da Praça Nova. Medida prudente, porque num momento de excitação, na entrada do exercito, não seria improvável que fossem novamente guarnecidas de vitimas . . . Era esta pelo menos a opinião dós miguelistas, e não oferece dúvida que foram eles próprios que tomaram rapidamente a precaução de as remover...

A populaça correu à cadeia para livrar todos os presos tanto criminosos como políticos. Alguns embuçados vigiavam pela calada a entrada do edifício: - Ele lá vem – bichanaram uns para os outros. - E logo as clavinas, tiradas para fora dos capotes, estenderam morto o carrasco, o despiedoso e sanguinário sabujo João Branco. Uma vez executada com tanto sangue frio essa acção de há muito concebida, os seus autores retiraram apressadamente e não consta de mais mortes. Presos de quatro anos encontraram-se enfim em liberdade. O exército, aparecendo no dia 9 com D. Pedro à frente, livrou-os da miséria e da fome, e à cidade da opressão e do terror. Mas que quadro triste o da entrada dos libertadores, para todos aqueles cujas cabeças não estavam enfumadas com o entusiasmo do momento! Sete mil e duzentas baionetas na fileira; artilharia – três peças ligeiras puxadas por homens; nem um cavalo para uso dos oficiais de estado-maior! O próprio D. Pedro montava num garrano que lhe tinham oferecido nesse mesmo dia. Fosse por não estarem habituados a marchar, fosse pelo peso das mochilas ou por qualquer outra razão, a tropa parecia esgotada de cansaço, principalmente os ilhéus, que se distinguiam pela cor queimada do rosto (3). O abatimento foi grande na gente capaz de reflexão, habituada a revistas de numerosos batalhões, de um exército que se sabia contar mais de oitenta mil homens. Desanimo ... Nem os presos políticos e os escondidos se apressavam, depois de tantos anos de prisão e privações, a pegar em armas em defesa da causa pela qual tanta miséria tinham sofrido. Muitos abandonaram-na de vez retirando-se. Outros requereram pedindo indemnizações, e receberam esta resposta: «pegue em armas e depois requeira»-golpe mortal nas esperanças dos que cuidavam apossar-se dos ricos benefícios e empregos dos ausentes, já chamados rebeldes. Alguns, achando-se logrados e julgando que os negócios não corriam bem, embarcaram para o estrangeiro à espera do resultado da contenda.

Santa Marta retirou do Douro, estabeleceu atiradores na margem do rio, e coroou as alturas com tropa. Os liberais picavam-se de desprezar essa gente, e dando armas e munições à canalha, começou um tiroteio de parte a parte tão inútil como continuado. E assim, se passaram dois dias, de confusão e desalento. Parecia que os recém-chegados estavam possuídos do mesmo espírito tão prejudicial à causa em 1828. Foi pelo receio de se comprometerem que não forçaram a passagem do Douro nessa mesma tarde ou pelo menos na madrugada do dia seguinte? Já a gente de Vila Nova, alguns milhares de partidários, se queixava amargamente dessa inacção. No terceiro dia enfim, a divisão ligeira sob o comando de Schwalbach atravessou o rio e calou o vergonhoso tiroteio, limpando o terreno por mais de uma legou na estrada de Lisboa. Depois voltou e ocupou Vila Nova durante alguns dias.

Sejamos justos notando a rigorosa disciplina e a moderação do exército liberal. Cria-se que vinham como tigres, matando todos os que resistissem, e vingando-se nos outros dos males infligidos ás famílias. Nas mesmas circunstancias nunca outro exercito se portou assim. Um batalhão. de oficiais supranumerários, imprimiu-lhe carácter e grandeza. Muitos deles, oficiais de cavalaria que tinham servido na guerra peninsular, marchavam na fileira de espingarda ao ombro. Quando foi necessário dispersa-los pelos corpos, o exército sentiu a falta de esse exemplo vivo.

Perceberam-se desde logo no pequeno exército as divergências de opinião que actuaram até ao último tiro dado no Porto. Na noite da chegada desertaram sete ilhéus, levantando o espírito acabrunhado dos oficiais e soldados miguelistas. Mas houvesse o que houvesse a pólvora falara, já os dois exercites se tinham batido, cortara-se o fio, o exército miguelista comprometera-se contra D. Pedro, e a guerra civil começava para só findar pelo total aniquilamento de um dos combatentes ...  


NOTAS:

(1)   O conde de Basto, ministro da marinha, considerava a esquadra francesa perdida, asseverando: - Deixem-nos entrar a barra e verão! ..: - Assim que viu os navios apresarem dez embarcações de guerra, escapando com dificuldade a nau D. João VI, meteu-se em casa, exclamando: - Os pedreiros livres têm pacto com o diabo!

(2)   A esquadra de D. Pedro, composta da fragata Rainha de Portugal, da. corveta Amélia, da escuna Terceira, dum barco a vapor e de dois transportes Eduard e Tyrian chega a S. Miguel a 22 de 1832; aporta à Terceira a 3 de Março. D. Pedro proclama aos por portugueses. Sai de Ponta Delgada a 27 de Junho com os seguintes navios: Rainha de Portugal, 56 peças, fragata D. Maria ll, 48 peças, corveta Amélia, 20 peças, brigues Regência, 16 peças, e conde de Vila-Flor, 16 peças, Liberal, 9 peças, escuna Faial, 15 peças, Graciosa, 11 peças, Terceira, 7, Coquette, 7, Esperança, 7, Eugénia, 10, Prudência, 8 e mais outro navio com 8 peças. Seguem-no 50 transportes com o batalhão de oficiais, o corpo de guias, os regimentos de infantaria 3, 6, 10 e 18, os batalhões de caçadores 2, 3, 5 e 12, o 1.º batalhão de artilharia, o batalhão académico, o batalhão de voluntários da rainha, o batalhão de marinha e o batalhão de atiradores portugueses.

(3)   «A maior parte da tropa, bem como os Oficiais traziam barbas compridas, a cujo costume, também o Imperador aderiu. A tropa estava bem vestida e aprovisionada, à excepção do regimento inglês, que estava quase nu». NAPIER.

 

Fonte:
Hugh Owen,
O Cerco do Porto contado por uma Testemunha - o Coronel Owen,
Porto, Renascença Portuguesa («Biblioteca Histórica, I»), 1915
pp.147-160.


A ver também:

.

| Página Principal |
| A Imagem da Semana | O Discurso do Mês | Almanaque | Turismo histórico | Estudo da história |
| Agenda | Directório | Pontos de vista | Perguntas mais frequentes | Histórias pessoais | Biografias |
| Novidades | O Liberalismo | As Invasões Francesas | Portugal Barroco | Portugal na Grande Guerra |
| A Guerra de África | Temas de História de Portugal | A Grande Fome na IrlandaAs Cruzadas |
| A Segunda Guerra Mundial | Think Small - Pense pequeno ! | Teoria Política |

Escreva ao Portal da História

© Manuel Amaral 2000-2008