REI D. CARLOS, O MARTIRIZADO

Ramalho Ortigão faz o elogio histórico do rei D. Carlos, mas também das soluções que ele e os seus amigos - Os Vencidos da Vida - tinham feito tempos atrás através da apresentação de um programa a que deram o nome de Vida Nova. Não é tanto um elogio da actuação política de D. Carlos, mas o enaltecer da sua vida intelectual - científica e artística -, assim como da sua vida familiar. 

 

Ramalho Ortigão
Ramalho Ortigão

“Tenho grandes imperfeições como homem e como rei. Os meus defeitos procedem de duas causas: primeira, a hereditariedade na gestação do meu ser; segunda, a influência do meio em que nasci e me criei. Considero como primeiro dos meus deveres de pai eliminar ou, quando menos, restringir, por meio da educação mais atenta e escrupulosa, no temperamento, no carácter e na inteligência os meus filhos, a intervenção dos elementos que actuaram na minha tão imperfeita compleição.”

 

Estas austeras palavras, que poderiam ser lema de todos os que têm a missão de criar homens e de educar nações, são do rei D. Carlos, por ele dirigidas a Mousinho de Albuquerque1 no dia em que, na cidadela de Cascais, o nomeou aio do príncipe2 que hoje repousa com ele na imobilidade eterna.

Mousinho preparava a esse tempo a história que projectava escrever de seu glorioso avô. Eu fornecera‑lhe da Biblioteca Real da Ajuda e da minha exígua colecção particular várias obras, que depois da morte dele pela sua viúva me foram restituídas. Repetidas comunicações de estudo sobre a história do nosso tempo haviam estabelecido entre nós íntimas relações de espírito que me autorizam a afiançar que são absolutamente verídicas, se por ventura não são textualmente autênticas, as palavras que reproduzo como esquema da biografia do finado rei, por ele mesmo delineada em dois traços: influências herdadas, influências adquiridas. Tais serão os dois capítulos que a história terá de preencher antes de evocar a revelada figura daquele que, vítima do inflexível dever, morto no seu posto de honra, hoje entra na posteridade pelo pórtico do martírio.

É muito avançada a minha idade, e são muito recentes os factos sobre que terá de elaborar-se a história do reinado findo, para que jamais possa eu faze-la documentalmente.

Ai dos velhos que, violando as leis providenciais que regulam o equilíbrio e a evolução do sentimento humano, se arrojam a tomar parte no conflito das opiniões militantes! A missão dos da minha idade é guardar a torre ebúrnea, onde das pelejas e dos naufrágios da vida se recolhem os dispersos elementos de serenidade, de poesia e de beleza, que são o património ideal do homem e a dignificação da vida:

Oiço, porém, e leio nas gazetas, que, a seguir ao acto canibalesco e serem espingardeados como feras à esquina de uma rua de Lisboa o Rei D. Carlos I e o rei (por alguns momentos) seu filho D. Luís II, se acha regulado, por acordo comum das opiniões, um salutar regime de acalmação geral. Creio se ainda bem compreendo a língua dos periódicos - que sinceramente se trata de rejeitar todos os ódios e de acolher todas as simpatias. Esta consideração me anima, sem receio de melindrar os que me são indiferentes, a consagrar estas linhas unicamente aqueles que estimo. – “On ne doit ecrire que de ce qu'on aime” - diz um dos mestres do meu espírito3.

 

Era, até há cerca de dois anos, voz corrente, expressão, ao que parece, de um convencimento geral, que a política portuguesa desgarrara do seu rumo.

O acordo de dois partidos, revezando-se sucessivamente no poder, dizendo-se um liberal e outro conservador, segundo o regime inglês, falhara inteiramente na sua reiterada aplicação prática.

O jogo permanente dessa rotatividade representativa, com vinte anos de funcionamento automático, desgastara todas as engrenagens, boleara todos os ângulos, puíra todas as arestas, safara todos os cunhos que caracterizavam o sistema. Quem eram os liberais que, pela contribuição de novas ideias, se propunham acelerar a energia propulsora do parlamentarismo no sentido do mais rápido progresso? Quem eram os conservadores incumbidos ele coordenar a marcha e de manobrar os travões do maquinismo?... Ninguém o saberia dizer, porque nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos.

Um facto sumamente grave preocupava no entanto a atenção dos que isoladamente contemplavam a integral concatenação dos acontecimentos. Esse facto era a composição da sociedade, lentamente, surdamente, progressivamente contaminada pela mansa e sinuosa corrupção política. Quantos sintomas inquietantes! A indisciplina geral, o progressivo rebaixamento dos caracteres, a desqualificação do mérito, o descomedimento das ambições, o espírito de insubordinação, a decadência mental da imprensa, a pusilanimidade da opinião, o rareamento dos homens modelares, o abastardamento das letras, a anarquia da arte, o desgosto do trabalho, a irreligião, e, finalmente, a pavorosa inconsciência do povo.

Contra esta ordem de coisas, a que se chamou o “progresso da decadência” era unânime a opinião do público, incluindo a dos mais íntimos amigos do rei, que o acusavam de indolentemente se abandonar ao “não-me-importismo” constitucional, dando-lhe como exemplo e estímulo a voluntariosa intervenção nos negócios públicos de seu prestigioso tio D. Pedro V. A teoria do “engrandecimento do poder real”, enunciada por alguns intelectuais do grupo a que pertencia Oliveira Martins, o que era, no íntimo da sua palpável inconstitucionalidade, senão um desenvolvimento da convicção de todos os espíritos independentes acerca da estéril e perigosa passividade do poder moderador? O erro da neutralidade monárquica perante o escândalo da administração pública corrigia-se coerentemente com a rectificação atrevida de uma fórmula consagrada: “O rei reina e tem obrigação de governar”.

Cumpre consignar ainda, em complemento da história dos últimos vinte anos, a que tão resumidamente me refiro, que nunca o supremo e dominante facho da ciência se ergueu tão alto e alumiou tão longe.

A síntese sociológica acompanhará em sua luminosa órbita a ascensão maravilhosa da síntese orgânica.

A crítica histórica exercera-se particularmente na correcção de numerosas teorizações deduzidas da uma errada observação de fenómenos. Assim, por exemplo, o da Revolução Francesa, de que nitidamente se separou a parte declamativa, a parte lendária e a parte filosófica.

A Revolução foi a ablação formidável da gangrena que devorava o velho mundo; mas não passou de uma tentativa malograda como reconstituição social do mundo moderno.

A declaração dos direitos do homem, - uma utopia. A liberdade como alicerce fundamental de qualquer espécie de governo, - um equívoco grosseiro e funesto. Só o princípio da autoridade técnica, culta, esclarecida e honesta, prevalece e dirige. Os povos modernos não se governam por anacrónicas constituições e por importunos códigos. Não se contentam com palavras. Governam-se por interesses. Integrar os interesses económicos com os interesses morais e com os interesses estéticos, e pôr, quanto possível, de acordo o interesse de cada um como interesse de todos, eis a missão da política.

Estudou-se clinicamente a psicologia dos parlamentos, e Nordau4 demonstrou com exactidão algébrica que o resultado de votos nunca pôde representar senão uma opinião de medíocres, O sufrágio é a indirecta exclusão da superioridade. Por isso, a tendência da sociologia moderna é para combater a tirania dos parlamentos, estabelecendo tribunais supremos encarregados de manter a lei fundamental, alargando os regimes provinciais e conferindo aos municípios a faculdade do referendo.

Fez-se ainda o processo histórico das ditaduras; resultando que as há de varias espécies. Há ditaduras funestas como a de Robespierre. Há ditaduras reparadoras como a de Turgot. Há ditaduras "fatais" como a que Rousseau no Contracto Social prevê como desenlace impreterível de toda a democracia absoluta. A ditadura tanto pode, pois, ser um mal, como ser um bem, segundo as circunstâncias que a determinam e as condições em que ela se exerce.

Devo dizer ainda que, durante o período histórico a que me estou referindo, se fundou nas mais poderosas nações da Europa, na Inglaterra e na Alemanha, a nova doutrina política do Imperialismo, um de cujos traços mais característicos é subordinar à interferência directa da opinião pública a fiscalização das assembleias representativas.

Tal é - creio eu - sobre a base dos factos, a perspectiva de ideias em que se produz o último ministério do Rei D. Carlos e se destaca a figura do ditador João Franco5.

 

“É um selvagem, desajeitado para as cortesias palacianas, sem brilho pessoal que desperte emulações ou invejas. Não quer nada para si. É um trabalhador terrível. O rei aperta-lhe a mão. Adopta incondicionalmente o seu plano de governo. Promete-lhe ter coragem. Ambos se enternecem. Quanto à sua política, propriamente dita, quem a saberá? Quem ousará dizer o que ele faria se durasse? O seu ministério foi evidentemente um prefácio. O seu defeito é um ardor descomunal e selvático. Foi um tirano, déspota, quase um rei. O seu trabalho, a sua rigidez impôs-se de tal modo ao rei e aos ministros que teve carta-branca para fazer o que quis. Quis fazer em três anos toda a sua revolução, e tentou realizá-la demasiadamente á pressa: reformas económicas, reformas políticas, reformas municipais, refundição da instrução pública, severo regime de contabilidade, supressão de adiantamentos e de antecipações orçamentais, todas as portas do favoritismo do estado implacavelmente cerradas não só á influencia dos políticos, mas até ao prestígio das senhoras. Para curar as chagas sociais ele principia por as pôr á vista: descaroamento contra o qual os feridos oportunamente invocam a sensibilidade das almas delicadas e compadecidas. Ousa levantar a vista para a organização e para o regime tributário da casa real. Foram tais os gritos que não se prosseguiu. O parlamento intratável, resistindo às reformas mais úteis, deu-lhe o primeiro golpe. Então se constituiu a liga geral dos seus inimigos, e se fechou em torno dele o círculo do ódio. Fizeram-se todas as pressões sobre o ânimo do rei. Era forçoso enforcar o déspota. Tudo o hostiliza. São todos toureiros, ele só o touro. Um amigo diz-lhe:

- Serenidade, prudência! Não é o amor do bem público que tu tens, é a raiva. (Impulsividade, vesania, epilepsia.)

Ele respondia:

- “Durarei pouco”.

- É manifesto que ninguém está contente, nem sequer o próprio rei, que se mostra apreensivo e sombrio. Ele quereria sobretudo ser amado. Ao amor do seu povo, sinceramente, honradamente, se consagrara, e o povo não lhe tributa senão desgosto. Contraste curioso: o estrangeiro admira, e mostra-se convencido de que o país encontrou pela primeira vez um homem que o dirija.

 

Os que acabam de ler as precedentes linhas me farão talvez a imerecida honra de supôr que nelas se contem, a feição por feição, delineado por mim, o retrato de João Franco. Não. As linhas que intercalo em aspas na minha narrativa, são meramente, palavra a palavra, o retrato de Turgot, traçado por Michelet, (Histoire de France -Tome XVII. - Louis XV et Louis XVI. - Chapitre XIII. - Ministère Turgot » ). Para rectificação de qualquer equívoco dou em nota as palavras de Michelet na mesma língua em que ele as escreveu.

 

Quem foi Turgot, o original desse retrato devido àquele dos historiadores franceses que mais fervorosamente amou o povo, e com mais apaixonada e épica eloquência defendeu as liberdades da sua pátria?

Turgot, um dos santos do calendário dos positivistas, cuja comemoração eles celebram, juntamente com a de Campomanes, no dia 20 do mês de Dezembro de cada ano, foi como ministro de Luís XVI um dos maiores benfeitores da humanidade e dos melhores amigos da França. A história política do mundo inclina-se reverentemente perante a sua imaculada memória, e o mesmo Michelet, num belo gesto de piedosa genuflexão, inicia o capítulo que na sua obra lhe consagra por estas comovidas palavras: “Une voix intérieur m'avertit et me dit: qui est digne aujourd'hui de parler de Turgot?6.

Se a obra do seu ministério, extra-parlamentar e despótico, se houvesse consumado, se não houvesse trepidado e sucumbido a coragem que Luís XVI lhe prometera ter, o eixo da história moderna se haveria necessariamente deslocado, e à humanidade se pouparia talvez o sangue derramado nos patíbulos da Revolução.

Turgot não passou pelo martírio infligido a João Franco. Caiu menos tragicamente que ele. O rei D. Carlos não era o tíbio e pusilânime Luís XVI. E toda a sua definitiva glória reside nessa diferença entre o rei de França e o rei português. No meio da hostilidade geral Luís XVI, apavorado e lacrimoso, abraçado ao seu primeiro-ministro, perguntava: “Não haverá com efeito de que nos acusem, razão por que nos condenem?” D. Carlos não precisa de que o amparem e lhe acalentem o brio. Este homem raro, verdadeiro temperamento de herói, que em qualquer disposição de espírito ou de corpo, sem a mais leve trepidação de nervos, enfiava à pistola sucessivas balas por buracos de fechaduras, era, assim como refracta rio à fadiga, inacessível ao susto. Perfeito cavaleiro à Bayard7, sem medo e sem mancha, firme na consciência do dever cumprido, e fiel á palavra dada, profundamente convicto de que mais uma vez servia o bem da sua pátria mantendo inexoravelmente no poder o último ministério do seu reinado, ele transpõe o Rubicão, intemerato e sorridente. E, de certo, nunca boca mais pura e mais firme repetiu a heróica palavra de César: Alea jacta est.

Luís XVI fizera a Turgot no princípio do seu governo a solene promessa de nunca mais requerer do erário adiantamentos de dinheiro. Apesar desse compromisso, num dia do mês de Maio de 1776, uma pessoa da corte apresenta-se no Tesouro com um vale do rei na importância de meio milhão. Turgot, não querendo pagar, vai ter com o soberano, que lhe diz vexado:

- Arrancaram a minha assinatura. Não pude negar-me.

- E agora? - pergunta Turgot - Não pague, resolve o rei.

Turgot não pagou. Três dias depois achava-se destituído.

Porque morreu na guilhotina Luís XVI? Temerária pergunta, porque não é licito a ninguém afirmar seguramente o que sucederia no futuro, uma vez alterados os factores que o determinaram no passado. A história, porém, mostrando-nos que o governo de Turgot poderia ter evitado a revolução francesa, permite-nos com alguma plausibilidade dizer: Luís XVI morreu porque demitiu Turgot, entregando assim a coroa à camarilha, que por seu turno a entregou ao Terror. Contradição flagrante na lógica das coisas: em circunstâncias análogas, Luís XVI morre por ter tido a fraqueza de demitir Turgot; D. Carlos morre por ter cumprido o arriscado mas patriótico dever de não demitir João Franco.

 

Disse que “por mais uma vez” arriscando a vida, o rei D. Carlos julgou servir a sua pátria, porque de outros precedentes serviços a pátria lhe deve reconhecimento e gratidão.

Foi ele que, em sucessivas viagens a nações estrangeiras, pela variedade dos seus conhecimentos e das suas ideias gerais, pela facilidade em falar as línguas, pelo envolvente encanto do seu trato, pela sua bondade ilimitada, e pela despresumida e primorosa elegância das suas maneiras, em contacto não só com chefes de Estado, com soberanos e com príncipes, mas com sábios e artistas, estabeleceu entre o espírito português e o espírito europeu um conhecimento recíproco, uma afectuosidade carinhosa, uma entente cordiale, enfim, que nunca outrora se deu. Neste ponto de vista, a sua projectada viagem ao Brasil seria o mais belo coroamento da sua obra de internacionalidade, de simpatia e de paz. Nenhuma dúvida de que o seu exemplo seria seguido por outros chefes de Estado, e esta seria a mais doce maneira de modificar a fórmula um tanto restrita e antiquada de Monroe8 – “a América aos americanos”, antepondo-lhe o aforismo mais lato, mais sociável e mais fraternal – “O mundo aos homens”.

É inteiramente incontestável que a nossa política externa, na qual a sua influência pessoal actuou mais directa e desafogadamente do que na política interna, foi durante o seu reinado habilidosamente conduzida, fazendo subida honra à diplomacia portuguesa em todas as chancelarias da Europa e da América. Confirmação póstuma: Morre em Lisboa o chefe de um dos Estados mais pobres e mais humildes, ainda há pouco manifestamente desdenhado da amizade de todas as potências, e em torno deste ataúde reúne-se o mais numeroso concurso de príncipes e de embaixadores que tem visto o mundo. A que se deve o incomparável tributo de uma tal homenagem senão ao incomparável prestígio do que morreu?

Foi ele de todos os poderes do Estado o que mais se interessou pela cultura e pelos progressos da ciência moderna, não só favorecendo pela sua simpatia e dedicação os altos estudos experimentais, mas colaborando pessoalmente neles com aturada diligência e exemplar ardor. A especialização científica é um dos seus títulos à consideração do futuro. A sua obra de naturalista, compreendendo as preciosas colecções zoológicas e de aparelhos de pesca expostos ao público em Portugal e no estrangeiro, bem como os seus livros Investigações científicas a bordo do iate Amélia faz subida honra ao seu método científico e à gravidade dos seus estudos. Os inventários das suas explorações oceanográficas, das suas pescas e das suas sondagens nos mares de Portugal, cujas profundidades determinou e descreveu, compreendem numerosas espécies, umas raríssimas e outras inteiramente novas na nossa fauna abissal, de capital interesse para a história da vida na profundidade das águas. É certamente de considerável brilho para a mentalidade de um rei a honra de concorrer com tão valiosa contribuição para a obra colectiva de companheiros que se chamam Humbold, Darwin, Jussieu, Agassiz, Geoffroy Saint-Hilaire. Das Investigações científicas por Carlos de Bragança a Academia Real das Ciências ainda há poucos dias recebia notificação de haver ficado completo, e inteiramente escrito do punho de El-Rei, o terceiro e último volume da série.

Ocioso acrescentar que foi ele ainda quem deu às ciências e ás instituições militares os principais impulsos que fizeram do Exército Português o brilhante exemplar de disciplina, de perícia e de intrepidez, que em mais de um lance da nossa história contemporânea, tem admirado o mundo.

Da sua influência pessoal provém ainda o revivido culto da bandeira, a estima da marcialidade, o amor e a honra da farda, virtudes militares que antes do seu reinado se tinham consideravelmente abastardado.

Ninguém mais escrupulosamente do que ele, soube evitar um dos escolhos da realeza: o abuso da sumptuosidade dispendiosa. Nunca foi dissipador, nem perdulário, nem libertino. Afortunadamente casado por amor com uma senhora exemplar, em quem a virtude é um nunca desmentido atributo de família e de raça, a sua casa foi sempre um inexcedível modelo de ordem, mantida pelos mais rigorosos regulamentos, definindo todas as atribuições e todas as responsabilidades perante os mais minuciosos inventários. Era a revivescência contemporânea da administração famosa da antiga Casa de Bragança, da qual D. António Caetano de Sousa tão curiosas regras de economia domestica coligiu e publicou nas Provas da sua História Genealógica.

Com o produto do último corte de cortiça nas suas herdades do Alentejo, D. Carlos pagara, bem recentemente ainda, os últimos encargos da casa ducal, que herdara empenhadíssima, e lega inteiramente desafrontada aos seus sucessores.

A educação de seus filhos, da qual tão grande e brilhante parte cabe à Rainha, é claro testemunho da mais alta perfeição que pôde atingir a puericultura e a pedagogia na criação de dois homens. A escolha das suas aias, do seu insigne preceptor Kerausch e dos seus mestres, recaiu na flor da competência. Nos exames periódicos das disciplinas que estudavam e a que os dois príncipes anualmente satisfaziam em patriarcais solenidades de família, o que escreve estas linhas teve, como honra inerente ao cargo literário que exercia, ocasião de admirar a poderosa seiva de conhecimentos que progressivamente desenvolviam a capacidade mental desses dois espíritos. Na que tinha de ser a ultima dessas provas ouvi largamente discorrer aquele que o destino tão sacrilegamente roubou à gloria do seu reino e à mocidade do seu tempo, aquele que sua mãe com tão justificado orgulho podia, como obra prima da sua esclarecida ternura, dar por exemplo a todas as mães portuguesas.

O ponto proposto era “os grandes efeitos de pequenas causas na história da civilização”. Esse moço, a quem mal pungia a barba, alentadamente constituído, posto que ainda rosado e louro como um menino, falando correntemente quatro ou cinco línguas, acabando de passar por brilhantes exames de física e de matemática, gravemente incluso, reflectido, concentrado, velando o olhar, como um mármore em que as pupilas parece verem unicamente para dentro, e de quando em quando comprimindo na mão a testa vincada, num gesto de contenção profunda, esclareceu pausadamente, prolongadamente, a sua tese, com a mais variada profusão de ideias, de factos e de raciocínios. Erudição assombrosa na sua idade. Lembro-me de que ele principiou por estabelecer, com desenvolvimento de muitos dados técnicos, a influência do primitivo uso da roupa branca, origem de trapo, na fabricação do papel, na indústria do livro, na irradiação do pensamento impresso. Terminou, ao findar o prazo da sua prova, referindo-se à acção das enfermidades físicas sobre a mentalidade humana, analisando pormenorizadamente para esse efeito, a história do pensamento monárquico de Luís XIV - antes e depois da fístula. Refiro-me a este pormenor porque ele claramente revela que da educação dos novos príncipes portugueses absolutamente se banira a cláusula Ad usum Delphini. No século de Luís o Grande, Bossuet recuava oratoriamente perante a trivialidade da expressão «caldo de galinha» Numa corte do século XX, louvores a Deus, o próprio Delfim, com a mesma simples indiferença com que discutiria um assunto de cortesia ou de protocolo, não hesita em enumerar e discutir como factor histórico a mais secreta afecção mórbida do Rei Sol. E é sob este rigoroso critério de completo exame e de inteira crítica que se ensinam estudantes e se educam homens.

Havia na personalidade do Rei D. Carlos um fundo singular de acanhamento orgânico, que ele publicamente encobria sob a máscara de uma altivez postiça. Na convivência íntima ele era mais do que afável, era terno, e a sua bondade chegava a ser humilde. Todos os seus criados o atestam: ele era o amo “que nunca ralhou”.

Idealmente refugiado no culto da pintura, em que foi exímio, atingiu uma das mais altas eminências a que pode ascender o espírito: foi consagrado “artista". O que distingue o artista dos outros homens não é, em rigor, o modo como executa um dado trabalho técnico, mas sim o modo como demonstra pensar e sentir. Artista é aquele que, ou por um maravilhoso instinto nativo que se chama o génio, ou por uma intensa, humilde e profunda contemplação da natureza eterna, consegue reduzir o vago e poético sentimento da beleza a uma noção sintética, dominativa e irrevogável. Artista é aquele que, pela exteriorização concreta do seu sentimento individual, verdadeiramente «reina» sobre o sentimento informe, abstracto e disperso da multidão, guiando-a e conduzindo-a pela concórdia estética à simpatia universal.

Nunca as pompas da realeza e os cerimoniais da corte captaram a predilecção dos seus gostos simples. A sua casa do Vidigal, que ele mesmo edificou e em cujo retiro rural tanto se comprazia, em nada se diferença da de qualquer mediano lavrador alentejano. Aí frugalmente se alimentava da rude cozinha local, e habitualmente vestia, como os seus abegões, a jaqueta de burel e os ceifões de pele de borrego, podendo dizer na língua chã, predilecta do fundador da sua dinastia:

- “A mim todo o alimento me sustenta, todo o pano me cobre, toda a roupa me serve”.

Muitas outras afinidades de temperamento e de espírito o assemelhavam em bonomia àquele dos Braganças que a João Pinto Ribeiro, anunciando-lhe em Vila Viçosa que em poucos dias seria rei e procurando como vassalo beijar-lhe a mão, respondia:

- “Não, João Pinto, por enquanto não... Não compremos a couve enquanto não tivermos a carne para a panela”.

Não quis, de resto, D. Carlos I, como D. João IV, ser, no último período do seu reinado, o “procurador dos desperdícios do reino”, “o mais zeloso homem do bem público”?

É certo que num momento trágico, pasmo e horror do mundo, todo o seu programa soçobrou inundado no seu próprio sangue. Mas para o valor de sentimentos e para o valor de ideias que importância tem o êxito, o contingente, o falaz, o estúpido êxito?... Quantas e quantas vezes, através das imanentes justiças da História, não tem sido a derrota dos vencidos a condenação dos vencedores! Cumpre saber esperar. O Evangelho o ensina: “A árvore não dá flor enquanto a semente não tenha apodrecido no seio da terra”.

 

*

 

Não terminarei sem comovidamente agradecer à Gazeta de Notícias ter-se de tão longe lembrado de mim, seu antigo colaborador, para no dia seguinte ao do assassinato do rei e do príncipe me pedir pelo telégrafo o presente artigo. Trata-se de um bem modesto tributo de saudade a dois mortos e de homenagem a um vivo, depois de vencido ferozmente insultado na derrota, escarnecido na dor, ultrajado na desgraça. Da pena de um escritor que, jamais em vida deles, exaltou potentados ou cortejou triunfadores, não poderia em verdade confiar-se encargo mais do que este honroso e belo.

 

RAMALHO ORTIGÃO.



1 Herói das campanhas de África ao aprisionar o chefe vátua Gugunhana em Dezembro de 1895, suicidou-se em Janeiro de 1902. Tinha sido nomeado aio do príncipe D. Luís em 1898.
2 D. Luís Filipe (1887-1908).
3 Ernest Renan, Souvenirs d'enfance et de jeunesse (1883).
4 Max Nordau, escreveu o livro Degenaração (Entartung, 1892), onde atacou os efeitos da arte «degenerada», assim como da urbanização rápida na degeneração do corpo humano.
5 João Franco Castelo Branco (1855-1929), governou desde Maio de 1906 até 4 de Fevereiro de 1908.
6 Uma voz interior adverte-me e diz-me: quem é hoje em dia digno de falar de Turgot?
7 Pierre Terrail (1473-1524), cavaleiro de Bayard, cavaleiro sem medo e sem mácula, personagem dos romances de cavalaria, tornado célebre pelo livro La très joyeuse et très plaisante histoire du gentil seigneur de Bayart, le bon chevalier sans peur et sans reproche, le gentil seigneur de Bayart, publicado originalmente em Paris em 1527.
8 James Monroe (1758-1831), 5.º presidente dos Estados Unidos da América, a afirmação foi feita numa mensagem ao Congresso em 1823.

Fonte:

Ramalho Ortigão, Rei D. Carlos, o Martirizado, Lisboa, A Editora, 1908 

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