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REI
D. CARLOS, O MARTIRIZADO Ramalho Ortigão faz o elogio histórico do rei D. Carlos, mas também das soluções que ele e os seus amigos - Os Vencidos da Vida - tinham feito tempos atrás através da apresentação de um programa a que deram o nome de Vida Nova. Não é tanto um elogio da actuação política de D. Carlos, mas o enaltecer da sua vida intelectual - científica e artística -, assim como da sua vida familiar.
“Tenho
grandes imperfeições como homem e como rei. Os meus defeitos procedem de
duas causas: primeira, a hereditariedade na gestação do meu ser; segunda,
a influência do meio em que nasci e me criei. Considero como primeiro dos
meus deveres de pai eliminar ou, quando menos, restringir, por meio da educação
mais atenta e escrupulosa, no temperamento, no carácter e na inteligência
os meus filhos, a intervenção dos elementos que actuaram na minha tão
imperfeita compleição.” Estas
austeras palavras, que poderiam ser lema de todos os que têm a missão de
criar homens e de educar nações, são do rei D. Carlos, por ele dirigidas
a Mousinho de Albuquerque1
no dia em que, na cidadela de Cascais, o nomeou aio do príncipe2
que hoje repousa com ele na imobilidade eterna. Mousinho
preparava a esse tempo a história que projectava escrever de seu glorioso
avô. Eu fornecera‑lhe da Biblioteca Real da Ajuda e da minha exígua
colecção particular várias obras, que depois da morte dele pela sua viúva
me foram restituídas.
Repetidas comunicações de estudo sobre a história do nosso tempo haviam
estabelecido entre nós íntimas relações de espírito que me autorizam a
afiançar que são absolutamente verídicas, se por ventura não são
textualmente autênticas, as palavras que reproduzo como esquema da
biografia do finado rei, por ele mesmo delineada em dois traços: influências
herdadas, influências adquiridas. Tais serão os dois capítulos que a história
terá de preencher antes de evocar a revelada figura daquele que, vítima do
inflexível dever, morto no seu posto de honra, hoje entra na posteridade
pelo pórtico do martírio. É muito
avançada a minha idade, e são muito recentes os factos sobre que terá de
elaborar-se a história do reinado findo, para que jamais possa eu faze-la
documentalmente. Ai dos
velhos que, violando as leis providenciais que regulam o equilíbrio e a
evolução do sentimento humano, se arrojam a tomar parte no conflito das
opiniões militantes! A missão dos da minha idade é guardar a torre ebúrnea,
onde das pelejas e dos naufrágios da vida se recolhem os dispersos
elementos de serenidade, de poesia e de beleza, que são o património ideal
do homem e a dignificação da vida: Oiço,
porém, e leio nas gazetas, que, a seguir ao acto canibalesco e serem
espingardeados como feras à esquina de uma rua de Lisboa o Rei D. Carlos I
e o rei (por alguns momentos) seu filho D. Luís II, se acha regulado, por
acordo comum das opiniões, um salutar regime de acalmação
geral. Creio se ainda bem compreendo a língua dos periódicos - que
sinceramente se trata de rejeitar todos os ódios e de acolher todas as
simpatias. Esta consideração me anima, sem receio de melindrar os que me são
indiferentes, a consagrar estas linhas unicamente aqueles que estimo. – “On
ne doit ecrire que de ce qu'on aime”
- diz um dos mestres do meu espírito3. Era, até
há cerca de dois anos, voz corrente, expressão, ao que parece, de um
convencimento geral, que a política portuguesa desgarrara do seu rumo. O acordo
de dois partidos, revezando-se sucessivamente no poder, dizendo-se um
liberal e outro conservador, segundo o regime inglês, falhara inteiramente
na sua reiterada aplicação prática. O jogo
permanente dessa rotatividade representativa, com vinte anos de
funcionamento automático, desgastara todas as engrenagens, boleara todos os
ângulos, puíra todas as arestas, safara todos os cunhos que caracterizavam
o sistema. Quem eram os liberais que, pela contribuição de novas ideias,
se propunham acelerar a energia propulsora do parlamentarismo no sentido do
mais rápido progresso? Quem eram os conservadores incumbidos ele coordenar
a marcha e de manobrar os travões do maquinismo?... Ninguém o saberia
dizer, porque nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a
não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando
muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o
copo de água aos contínuos. Um facto
sumamente grave preocupava no entanto a atenção dos que isoladamente
contemplavam a integral concatenação dos acontecimentos. Esse facto era a
composição da sociedade, lentamente, surdamente, progressivamente
contaminada pela mansa e sinuosa corrupção política. Quantos sintomas
inquietantes! A indisciplina geral, o progressivo rebaixamento dos
caracteres, a desqualificação do mérito, o descomedimento das ambições,
o espírito de insubordinação, a decadência mental da imprensa, a
pusilanimidade da opinião, o rareamento dos homens modelares, o
abastardamento das letras, a anarquia da arte, o desgosto do trabalho, a
irreligião, e, finalmente, a pavorosa inconsciência do povo. Contra
esta ordem de coisas, a que se chamou o “progresso da decadência” era
unânime a opinião do público, incluindo a dos mais íntimos amigos do
rei, que o acusavam de indolentemente se abandonar ao “não-me-importismo”
constitucional, dando-lhe como exemplo e estímulo a voluntariosa intervenção
nos negócios públicos de seu prestigioso tio D. Pedro V. A teoria do
“engrandecimento do poder real”, enunciada por alguns intelectuais do
grupo a que pertencia Oliveira Martins, o que era, no íntimo da sua palpável
inconstitucionalidade, senão um desenvolvimento da convicção de todos os
espíritos independentes acerca da estéril e perigosa passividade do poder
moderador? O erro da neutralidade monárquica perante o escândalo da
administração pública corrigia-se coerentemente com a rectificação
atrevida de uma fórmula consagrada: “O rei reina e tem obrigação de
governar”. Cumpre
consignar ainda, em complemento da história dos últimos vinte anos, a que
tão resumidamente me refiro, que nunca o supremo e dominante facho da ciência
se ergueu tão alto e alumiou tão longe. A síntese
sociológica acompanhará em sua luminosa órbita a ascensão maravilhosa da
síntese orgânica. A crítica
histórica exercera-se particularmente na correcção de numerosas teorizações
deduzidas da uma errada observação de fenómenos. Assim, por exemplo, o da
Revolução Francesa, de que nitidamente se separou a parte declamativa, a
parte lendária e a parte filosófica. A Revolução
foi a ablação formidável da gangrena que devorava o velho mundo; mas não
passou de uma tentativa malograda como reconstituição social do mundo
moderno. A declaração
dos direitos do homem, - uma utopia. A liberdade como alicerce fundamental
de qualquer espécie de governo, - um equívoco grosseiro e funesto. Só o
princípio da autoridade técnica, culta, esclarecida e honesta, prevalece e
dirige. Os povos modernos não se governam por anacrónicas constituições
e por importunos códigos. Não se contentam com palavras. Governam-se por
interesses. Integrar os interesses económicos com os interesses morais e
com os interesses estéticos, e pôr, quanto possível, de acordo o
interesse de cada um como interesse de todos, eis a missão da política. Estudou-se
clinicamente a psicologia dos parlamentos, e Nordau4
demonstrou com exactidão algébrica que o resultado de votos nunca pôde
representar senão uma opinião de medíocres, O sufrágio é a indirecta
exclusão da superioridade. Por isso, a tendência da sociologia moderna é
para combater a tirania dos parlamentos, estabelecendo tribunais supremos
encarregados de manter a lei fundamental, alargando os regimes provinciais e
conferindo aos municípios a faculdade do referendo. Fez-se
ainda o processo histórico das ditaduras; resultando que as há de varias
espécies. Há ditaduras funestas como a de Robespierre. Há ditaduras reparadoras como a de Turgot. Há ditaduras "fatais" como
a que Rousseau no Contracto Social
prevê como desenlace impreterível de toda a democracia absoluta. A
ditadura tanto pode, pois, ser um mal, como ser um bem, segundo as circunstâncias
que a determinam e as condições em que ela se exerce. Devo
dizer ainda que, durante o período histórico a que me estou referindo, se
fundou nas mais poderosas nações da Europa, na Inglaterra e na Alemanha, a
nova doutrina política do Imperialismo, um de cujos traços mais característicos é
subordinar à interferência directa da opinião pública a fiscalização
das assembleias representativas. Tal é -
creio eu - sobre a base dos factos, a perspectiva de ideias em que se produz
o último ministério do Rei D. Carlos e se destaca a figura do ditador João
Franco5. “É um
selvagem, desajeitado para as cortesias palacianas, sem brilho pessoal que
desperte emulações ou invejas. Não quer nada para si. É um trabalhador
terrível. O rei aperta-lhe a mão. Adopta incondicionalmente o seu plano de
governo. Promete-lhe ter coragem. Ambos se enternecem. Quanto à sua política,
propriamente dita, quem a saberá? Quem ousará dizer o que ele faria se
durasse? O seu ministério foi evidentemente um prefácio. O seu defeito é
um ardor descomunal e selvático. Foi um tirano, déspota, quase um rei. O
seu trabalho, a sua rigidez impôs-se de tal modo ao rei e aos ministros que
teve carta-branca para fazer o que quis. Quis fazer em três anos toda a sua
revolução, e tentou realizá-la demasiadamente á pressa: reformas económicas,
reformas políticas, reformas municipais, refundição da instrução pública,
severo regime de contabilidade, supressão de adiantamentos e de antecipações
orçamentais, todas as portas do favoritismo do estado implacavelmente
cerradas não só á influencia dos políticos, mas até ao prestígio das
senhoras. Para curar as chagas sociais ele principia por as pôr á vista:
descaroamento contra o qual os feridos oportunamente invocam a sensibilidade
das almas delicadas e compadecidas. Ousa levantar a vista para a organização
e para o regime tributário da casa real. Foram tais os gritos que não se
prosseguiu. O parlamento intratável, resistindo às reformas mais úteis,
deu-lhe o primeiro golpe. Então se constituiu a liga geral dos seus
inimigos, e se fechou em torno dele o círculo do ódio. Fizeram-se todas as
pressões sobre o ânimo do rei. Era forçoso enforcar o déspota. Tudo o
hostiliza. São todos toureiros, ele só o touro. Um amigo diz-lhe: -
Serenidade, prudência! Não é o amor do bem público que tu tens, é a
raiva. (Impulsividade, vesania, epilepsia.) Ele
respondia: -
“Durarei pouco”. - É
manifesto que ninguém está contente, nem sequer o próprio rei, que se
mostra apreensivo e sombrio. Ele quereria sobretudo ser amado. Ao amor do
seu povo, sinceramente, honradamente, se consagrara, e o povo não lhe
tributa senão desgosto. Contraste curioso: o estrangeiro admira, e
mostra-se convencido de que o país encontrou pela primeira vez um homem que
o dirija. Os que
acabam de ler as precedentes linhas me farão talvez a imerecida honra de
supôr que nelas se contem, a feição por feição, delineado por mim, o
retrato de João Franco. Não. As linhas que intercalo em aspas na minha
narrativa, são meramente, palavra a palavra, o retrato de Turgot, traçado
por Michelet, (Histoire de France
-Tome XVII. - Louis XV et Louis XVI.
- Chapitre XIII. - Ministère Turgot » ). Para rectificação de qualquer
equívoco dou em nota as palavras de Michelet na mesma língua em que ele as
escreveu. Quem foi
Turgot, o original desse retrato devido àquele dos historiadores franceses
que mais fervorosamente amou o povo, e com mais apaixonada e épica eloquência
defendeu as liberdades da sua pátria? Turgot,
um dos santos do calendário dos positivistas, cuja comemoração eles
celebram, juntamente com a de Campomanes, no dia 20 do mês de Dezembro de
cada ano, foi como ministro de Luís XVI um dos maiores benfeitores da
humanidade e dos melhores amigos da França. A história política do mundo
inclina-se reverentemente perante a sua imaculada memória, e o mesmo
Michelet, num belo gesto de piedosa genuflexão, inicia o capítulo que na
sua obra lhe consagra por estas comovidas palavras: “Une voix intérieur m'avertit et me dit: qui est digne aujourd'hui de
parler de Turgot?”6 Se a obra
do seu ministério, extra-parlamentar e despótico, se houvesse consumado,
se não houvesse trepidado e sucumbido a coragem que Luís XVI lhe prometera
ter, o eixo da história moderna se haveria necessariamente deslocado, e à
humanidade se pouparia talvez o sangue derramado nos patíbulos da Revolução. Turgot não
passou pelo martírio infligido a João Franco. Caiu menos tragicamente que
ele. O rei D. Carlos não era o tíbio e pusilânime Luís XVI. E toda a sua
definitiva glória reside nessa diferença entre o rei de França e o rei
português. No meio da hostilidade geral Luís XVI, apavorado e lacrimoso,
abraçado ao seu primeiro-ministro, perguntava: “Não haverá com efeito
de que nos acusem, razão por que nos condenem?” D. Carlos não precisa de
que o amparem e lhe acalentem o brio. Este homem raro, verdadeiro
temperamento de herói, que em qualquer disposição de espírito ou de
corpo, sem a mais leve trepidação de nervos, enfiava à pistola sucessivas
balas por buracos de fechaduras, era, assim como refracta rio à fadiga,
inacessível ao susto. Perfeito cavaleiro à Bayard7,
sem medo e sem mancha, firme na consciência do dever cumprido, e fiel á
palavra dada, profundamente convicto de que mais uma vez servia o bem da sua
pátria mantendo inexoravelmente no poder o último ministério do seu
reinado, ele transpõe o Rubicão, intemerato e sorridente. E, de certo,
nunca boca mais pura e mais firme repetiu a heróica palavra de César: Alea
jacta est. Luís XVI
fizera a Turgot no princípio do seu governo a solene promessa de nunca mais
requerer do erário adiantamentos de dinheiro. Apesar desse compromisso, num
dia do mês de Maio de 1776, uma pessoa da corte apresenta-se no Tesouro com
um vale do rei na importância de meio milhão. Turgot, não querendo pagar,
vai ter com o soberano, que lhe diz vexado: -
Arrancaram a minha assinatura. Não pude negar-me. - E
agora? - pergunta Turgot - Não pague, resolve o rei. Turgot não
pagou. Três dias depois achava-se destituído. Porque
morreu na guilhotina Luís XVI? Temerária pergunta, porque não é licito a
ninguém afirmar seguramente o que sucederia no futuro, uma vez alterados os
factores que o determinaram no passado. A história, porém, mostrando-nos
que o governo de Turgot poderia ter evitado a revolução francesa,
permite-nos com alguma plausibilidade dizer: Luís XVI morreu porque demitiu
Turgot, entregando assim a coroa à camarilha, que por seu turno a entregou
ao Terror. Contradição flagrante na lógica das coisas: em circunstâncias
análogas, Luís XVI morre por ter tido a fraqueza de demitir Turgot; D.
Carlos morre por ter cumprido o arriscado mas patriótico dever de não
demitir João Franco. Disse que
“por mais uma vez” arriscando a vida, o rei D. Carlos julgou servir a
sua pátria, porque de outros precedentes serviços a pátria lhe deve
reconhecimento e gratidão. Foi ele
que, em sucessivas viagens a nações estrangeiras, pela variedade dos seus
conhecimentos e das suas ideias gerais, pela facilidade em falar as línguas,
pelo envolvente encanto do seu trato, pela sua bondade ilimitada, e pela
despresumida e primorosa elegância das suas maneiras, em contacto não só
com chefes de Estado, com soberanos e com príncipes, mas com sábios e
artistas, estabeleceu entre o espírito português e o espírito europeu um
conhecimento recíproco, uma afectuosidade carinhosa, uma entente
cordiale, enfim, que nunca outrora se deu. Neste ponto de vista, a sua
projectada viagem ao Brasil seria o mais belo coroamento da sua obra de
internacionalidade, de simpatia e de paz. Nenhuma dúvida de que o seu
exemplo seria seguido por outros chefes de Estado, e esta seria a mais doce
maneira de modificar a fórmula um tanto restrita e antiquada de Monroe8
– “a América aos americanos”, antepondo-lhe o aforismo mais lato,
mais sociável e mais fraternal – “O mundo aos homens”. É
inteiramente incontestável que a nossa política externa, na qual a sua
influência pessoal actuou mais directa e desafogadamente do que na política
interna, foi durante o seu reinado habilidosamente conduzida, fazendo subida
honra à diplomacia portuguesa em todas as chancelarias da Europa e da América.
Confirmação póstuma: Morre em Lisboa o chefe de um dos Estados mais
pobres e mais humildes, ainda há pouco manifestamente desdenhado da amizade
de todas as potências, e em torno deste ataúde reúne-se o mais numeroso
concurso de príncipes e de embaixadores que tem visto o mundo. A que se
deve o incomparável tributo de uma tal homenagem senão ao incomparável
prestígio do que morreu? Foi ele
de todos os poderes do Estado o que mais se interessou pela cultura e pelos
progressos da ciência moderna, não só favorecendo pela sua simpatia e
dedicação os altos estudos experimentais, mas colaborando pessoalmente
neles com aturada diligência e exemplar ardor. A especialização científica
é um dos seus títulos à consideração do futuro. A sua obra de
naturalista, compreendendo as preciosas colecções zoológicas e de
aparelhos de pesca expostos ao público em Portugal e no estrangeiro, bem
como os seus livros Investigações
científicas a bordo do iate Amélia faz subida honra ao seu método
científico e à gravidade dos seus estudos. Os inventários das suas
explorações oceanográficas, das suas pescas e das suas sondagens nos
mares de Portugal, cujas profundidades determinou e descreveu, compreendem
numerosas espécies, umas raríssimas e outras inteiramente novas na nossa
fauna abissal, de capital interesse para a história da vida na profundidade
das águas. É certamente de considerável brilho para a mentalidade de um
rei a honra de concorrer com tão valiosa contribuição para a obra
colectiva de companheiros que se chamam Humbold, Darwin, Jussieu, Agassiz,
Geoffroy Saint-Hilaire. Das Investigações
científicas por Carlos de Bragança a Academia Real das Ciências ainda
há poucos dias recebia notificação de haver ficado completo, e
inteiramente escrito do punho de El-Rei, o terceiro e último volume da série. Ocioso
acrescentar que foi ele ainda quem deu às ciências e ás instituições
militares os principais impulsos que fizeram do Exército Português o
brilhante exemplar de disciplina, de perícia e de intrepidez, que em mais
de um lance da nossa história contemporânea, tem admirado o mundo. Da sua
influência pessoal provém ainda o revivido culto da bandeira, a estima da
marcialidade, o amor e a honra da farda, virtudes militares que antes do seu
reinado se tinham consideravelmente abastardado. Ninguém
mais escrupulosamente do que ele, soube evitar um dos escolhos da realeza: o
abuso da sumptuosidade dispendiosa. Nunca foi dissipador, nem perdulário,
nem libertino. Afortunadamente casado por amor com uma senhora exemplar, em
quem a virtude é um nunca desmentido atributo de família e de raça, a sua
casa foi sempre um inexcedível modelo de ordem, mantida pelos mais
rigorosos regulamentos, definindo todas as atribuições e todas as
responsabilidades perante os mais minuciosos inventários. Era a revivescência
contemporânea da administração famosa da antiga Casa de Bragança, da
qual D. António Caetano de Sousa tão curiosas regras de economia domestica
coligiu e publicou nas Provas da
sua História Genealógica. Com o
produto do último corte de cortiça nas suas herdades do Alentejo, D.
Carlos pagara, bem recentemente ainda, os últimos encargos da casa ducal,
que herdara empenhadíssima, e lega inteiramente desafrontada aos seus
sucessores. A educação
de seus filhos, da qual tão grande e brilhante parte cabe à Rainha, é
claro testemunho da mais alta perfeição que pôde atingir a puericultura e
a pedagogia na criação de dois homens. A escolha das suas aias, do seu
insigne preceptor Kerausch e dos seus mestres, recaiu na flor da competência.
Nos exames periódicos das disciplinas que estudavam e a que os dois príncipes
anualmente satisfaziam em patriarcais solenidades de família, o que escreve
estas linhas teve, como honra inerente ao cargo literário que exercia,
ocasião de admirar a poderosa seiva de conhecimentos que progressivamente
desenvolviam a capacidade mental desses dois espíritos. Na que tinha de ser
a ultima dessas provas ouvi largamente discorrer aquele que o destino tão
sacrilegamente roubou à gloria do seu reino e à mocidade do seu tempo,
aquele que sua mãe com tão justificado orgulho podia, como obra prima da
sua esclarecida ternura, dar por exemplo a todas as mães portuguesas. O ponto
proposto era “os grandes efeitos de pequenas causas na história da
civilização”. Esse moço, a quem mal pungia a barba, alentadamente
constituído, posto que ainda rosado e louro como um menino, falando
correntemente quatro ou cinco línguas, acabando de passar por brilhantes
exames de física e de matemática, gravemente incluso, reflectido,
concentrado, velando o olhar, como um mármore em que as pupilas parece
verem unicamente para dentro, e de quando em quando comprimindo na mão a
testa vincada, num gesto de contenção profunda, esclareceu pausadamente,
prolongadamente, a sua tese, com a mais variada profusão de ideias, de
factos e de raciocínios. Erudição assombrosa na sua idade. Lembro-me de
que ele principiou por estabelecer, com desenvolvimento de muitos dados técnicos,
a influência do primitivo uso da roupa branca, origem de trapo, na fabricação
do papel, na indústria do livro, na irradiação do pensamento impresso.
Terminou, ao findar o prazo da sua prova, referindo-se à acção das
enfermidades físicas sobre a mentalidade humana, analisando
pormenorizadamente para esse efeito, a história do pensamento monárquico
de Luís XIV - antes e depois da fístula. Refiro-me a este pormenor porque
ele claramente revela que da educação dos novos príncipes portugueses
absolutamente se banira a cláusula Ad
usum Delphini. No século de Luís o
Grande, Bossuet recuava oratoriamente perante a trivialidade da expressão
«caldo de galinha» Numa corte do século XX, louvores a Deus, o próprio
Delfim, com a mesma simples indiferença com que discutiria um assunto de
cortesia ou de protocolo, não hesita em enumerar e discutir como factor
histórico a mais secreta afecção mórbida do Rei Sol. E é sob este
rigoroso critério de completo exame e de inteira crítica que se ensinam
estudantes e se educam homens. Havia na
personalidade do Rei D. Carlos um fundo singular de acanhamento orgânico,
que ele publicamente encobria sob a máscara de uma altivez postiça. Na
convivência íntima ele era mais do que afável, era terno, e a sua bondade
chegava a ser humilde. Todos os seus criados o atestam: ele era o amo “que
nunca ralhou”. Idealmente
refugiado no culto da pintura, em que foi exímio, atingiu uma das mais
altas eminências a que pode ascender o espírito: foi consagrado
“artista". O que distingue o artista dos outros homens não é, em
rigor, o modo como executa um dado trabalho técnico, mas sim o modo como
demonstra pensar e sentir. Artista é aquele que, ou por um maravilhoso
instinto nativo que se chama o génio, ou por uma intensa, humilde e
profunda contemplação da natureza eterna, consegue reduzir o vago e poético
sentimento da beleza a uma noção sintética, dominativa e irrevogável.
Artista é aquele que, pela exteriorização concreta do seu sentimento
individual, verdadeiramente «reina» sobre o sentimento informe, abstracto
e disperso da multidão, guiando-a e conduzindo-a pela concórdia estética
à simpatia universal. Nunca as
pompas da realeza e os cerimoniais da corte captaram a predilecção dos
seus gostos simples. A sua casa do Vidigal, que ele mesmo edificou e em cujo
retiro rural tanto se comprazia, em nada se diferença da de qualquer
mediano lavrador alentejano. Aí frugalmente se alimentava da rude cozinha
local, e habitualmente vestia, como os seus abegões, a jaqueta de burel e
os ceifões de pele de borrego, podendo dizer na língua chã, predilecta do
fundador da sua dinastia: - “A
mim todo o alimento me sustenta, todo o pano me cobre, toda a roupa me
serve”. Muitas
outras afinidades de temperamento e de espírito o assemelhavam em bonomia
àquele dos Braganças que a João Pinto Ribeiro, anunciando-lhe em Vila Viçosa
que em poucos dias seria rei e procurando como vassalo beijar-lhe a mão,
respondia: - “Não,
João Pinto, por enquanto não... Não compremos a couve enquanto não
tivermos a carne para a panela”. Não
quis, de resto, D. Carlos I, como D. João IV, ser, no último período do
seu reinado, o “procurador dos desperdícios do reino”, “o mais zeloso
homem do bem público”? É certo
que num momento trágico, pasmo e horror do mundo, todo o seu programa soçobrou
inundado no seu próprio sangue. Mas para o valor de sentimentos e para o
valor de ideias que importância tem o êxito, o contingente, o falaz, o estúpido
êxito?... Quantas e quantas vezes, através das imanentes justiças da História,
não tem sido a derrota dos vencidos a condenação dos vencedores! Cumpre
saber esperar. O Evangelho o ensina: “A árvore não dá flor enquanto a
semente não tenha apodrecido no seio da terra”. * Não
terminarei sem comovidamente agradecer à Gazeta
de Notícias ter-se de tão longe lembrado de mim, seu antigo
colaborador, para no dia seguinte ao do assassinato do rei e do príncipe me
pedir pelo telégrafo o presente artigo. Trata-se de um bem modesto tributo
de saudade a dois mortos e de homenagem a um vivo, depois de vencido
ferozmente insultado na derrota, escarnecido na dor, ultrajado na desgraça.
Da pena de um escritor que, jamais em vida deles, exaltou potentados ou
cortejou triunfadores, não poderia em verdade confiar-se encargo mais do
que este honroso e belo. RAMALHO
ORTIGÃO.
1
Herói das campanhas de África
ao aprisionar o chefe vátua Gugunhana em Dezembro de 1895, suicidou-se
em Janeiro de 1902. Tinha sido nomeado aio do príncipe D. Luís em
1898.
4
Max Nordau, escreveu o livro Degenaração
(Entartung, 1892), onde atacou
os efeitos da arte «degenerada», assim como da urbanização rápida
na degeneração do corpo humano.
7
Pierre Terrail (1473-1524), cavaleiro de Bayard,
cavaleiro sem medo e sem mácula, personagem dos romances de cavalaria,
tornado célebre pelo livro La très
joyeuse et très plaisante histoire du gentil seigneur de Bayart, le bon
chevalier sans peur et sans reproche, le gentil seigneur de Bayart, publicado originalmente em Paris em 1527.
8
James Monroe (1758-1831), 5.º
presidente dos Estados Unidos da América, a afirmação foi feita numa
mensagem ao Congresso em 1823.
Fonte: Ramalho Ortigão, Rei D. Carlos, o Martirizado, Lisboa, A Editora, 1908 A ver também:
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