DO RELATO DO PADRE FREI JOÃO DE SOUSA 

Em 1792, quando as forças do novo sultão de Marrocos, Moulay Yazid, sucessor de Mohamed III, que reinou de 1757 a 1790 e tomou Mazagão a Portugal, falharam a conquista das possessões espanholas em Marrocos, como Ceuta e Melila, um irmão do novo sultão, Moulay Haxem, revoltou-se, tendo sido aclamado pela cidade de Marraquexe. Yazid morreu nesse mesmo ano de 1792 na luta contra a revolta fratricida, mas a guerra continuou porque um terceiro irmão, Moulay Slimane, aclamado pela cidade de Fez, depois de um quarto irmão ter sido aclamado em Tânger, mas ter renunciado à pretensão, se revoltou contra o sobrevivente.

As princesas marroquinas participantes neste episódio eram as mulheres e concubinas de um quinto filho de Mohamed III, Muley Abdessalam, o escolhido em 1790 para suceder ao pai, mas que tinha desistido do seu direito à sucessão devido a estar quase cego, e que em 1793, sendo governador de Mogador decidiu apoiar Moulay Slimane contra Moulay Haxem, indo juntar-se ao primeiro com 2.000 guerreiros.

A chegada das princesas marroquinas a Lisboa, devido às contingências das viagens por mar da altura, teve como pano de fundo a preparação do envio de um corpo de tropas português para a Catalunha, conhecido por « Divisão Auxiliar à Coroa Espanhola», em apoio do exército do país vizinho em guerra contra a França revolucionária, e a natural tentativa de manter as melhores relações diplomáticas e económicas com Marrocos, num período que se mostrava muito conturbado, dos dois lados do Estreito de Gibraltar.

 

«NARRAÇÃO DA ARRIBADA DAS PRINCESAS AFRICANAS
AO PORTO DESTA CAPITAL DE LISBOA.»

 

Mulheres orientais
Mulheres de Harém nas ruas de Constantinopla
por Elisabeth Jerichau-Baumann

Correu o tempo, e cresceu o ódio dos vassalos contra Haxem pela continuada embriaguez, e pelas violências, que os povos sofriam na honra, e fazenda, até que os mesmos escreveram a Molei Soleiman [Moulay Slimane], convidando-o para que viesse tomar posse daquela Cidade, protestando-lhe a sua obediência, e vassalagem. Vendo Molei Abdessalam isto, e que sem dúvida Molei Soleiman seria o vencedor, saiu com dois mil homens da Província de Sus, e se foi unir com este contra Haxem, atravessando os desertos de Taflet, para não passar pelas terras de Marrocos, nem ser sentido; deixando recomendada a condução das suas Mulheres, Concubinas, e mais família ao Arrais 1 Ahmed Scarige, a quem escreveu a Carta seguinte:

«Em nome de Deus Clemente, e Misericordioso.

Ordenamos ao nosso servo: Ahmed Scarige, que no dia Sábado dois do Ramadão se faça à vela para o porto de Salé , em nome do Altíssimo Criador , e em sua santa paz e bênção, a qual seja derramada sobre nós, e vós outros. Se porém o vento vos não ajudar para continuardes a vossa viagem; e vos virdes obrigados a buscar algum porto, para nele vos refugiardes, seja algum das Potências com quem temos paz, principalmente a Portuguesa , por ser a sua amizade mais constante, e de nós, bem conhecida. Pelo que se o tempo vos obrigar a tomar algum porto pertencente à Grande Rainha de Portugal, estamos certos que pela amizade que entre a nossa, e sua Corte subsiste, vos mandará hospedar, e tratar muito bem, como os seus servos Governadores dos ditos portos igualmente, farão. Com esta recebereis outras três (em branco.) seladas com o nosso nobre Selo. E no caso de vos demorardes em. algum. dos sobreditos portos , e a necessidade vos, obrigar a valer de alguma coisa do País, nos avisareis dessa despesa, para nós a satisfazermos aos seus Cônsules que residem nos nossos Domínios; pois estamos certos , que não vos recusarão o que lhes pedirdes, nem vos proibirão a vossa entrada; nem a saída dos seus Portos. Convosco devem desembarcar, quando isto suceda, seis dos nossos criados, e a nossa Arifa (a Camareira). A paz seja convosco. Foi escrita no primeiro do Ramadão de 1207 da Hégira.» (Corresponde aos 12 de Abril de 1793.)

Em virtude da sobredita Carta, fez o Arrais embarcar as Mulheres do Príncipe, Concubinas, e mais comitiva em um pequeno Navio que Molei Abdessalam havia comprado em Santa Cruz, e no dia 13 de Abril se fez à vela, dirigindo a sua viagem para o porto de Salé. Como porém o tempo lhes fosse contrário, arribaram à Ilha da Madeira onde foram muito bem recebidos, e obsequiados pelo Governador dela nos dias que ali estiveram. E vendo o mesmo Governador o aperto em que estavam no pequeno Navio em que tinham vindo afretou-lhes outro, por conta da Fazenda Real, para se dividirem, e virem, com mais comodidade.

Melhorado o tempo fizeram-se à vela tomando o rumo do seu destino; porém poucos dias depois por causa dos ventos contrários foram obrigados a buscar a Ilha de S. Miguel, para onde arribaram duas vezes; achando-se da segunda vez que aí aportaram faltos de água, e mantimentos, com a perda de uma embarcação sua naquela mesma ocasião, salvando-se porém toda a gente. E como a Princesa Laila Amina, e uma das Concubinas se achavam gravemente doentes, foi-lhes necessário (por conselho do Médico) desembarcarem para terra.; onde estiveram vinte, e oito dias em casa do Juiz de Fora, até convalescer a primeira, tendo falecido a Concubina.

Depois de fazerem aguada na dita Ilha, e se fornecerem dos mantimentos de que estavam faltos, se fizeram à vela, e continuaram a sua derrota até ao dia treze de Julho em que entraram na baía de Cascais, faltos de água, e mantimentos, um dos Navios, fazendo água, e o outro com o mastro rendido.

§ 

Da baía de Cascais, foi escrita uma Carta por ordem da Princesa Amina ao nosso Cônsul Geral dos Estados Marroquinos Manuel de Pontes, para que lhe fosse falar; o que fez, depois de o fazer saber ao Ministro de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos o Excelentíssimo Martinho de Melo e Castro, a quem, quando voltou, deu parte do que lhe fora comunicado, e da necessidade em que se achava aquela comitiva; pelo que o dito Ministro mandou, que no dia seguinte, quinze de Julho, entrassem: impedindo porém a Torre de Belém fundearam abaixo dela, enquanto se deu parte. No dia 16 entraram, e deram fundo defronte do cais de Belém, conservando-se naquele sítio até que daqui partiram. Nesse mesmo dia, 16 se lhe acudiu com água, e mantimentos, o que se continuou em todo o tempo da sua estada a bordo.

Na 5.ª feira 18 do mesmo mês, foi o Padre Frei João de Sousa mandado a bordo do Navio em que vinha o Arrais, para tratar com ele sobre certas recomendações que o Ministro de Estado lhe incumbiu. Na prática que teve com o Arrais lhe disse ele, que desejava falar, com aquele Ministro, a fim de lhe comunicar certos negócios da parte da Princesa sua Senhora, e pedir-lhe juntamente licença para ir a Queluz entregar uma Carta, que a mesma Princesa tinha escrito à Rainha nossa Senhora, e pôr também uns papéis nas mãos do Príncipe nosso Senhor. Voltou o Padre Frei João, e relatou a S. Excelência o que tinha ouvido ao Arrais: do que resultou determinar ele, que viesse o Arrais no dia seguinte para lhe falar; o que se não efectuou no mencionado dia, por embaraço que este Ministro Régio teve, transferindo a visita para o dia seguinte, Sábado, 19 de Julho.

Pelas dez horas do dia indicado foi o Padre Frei João de Sousa a bordo, e trouxe o Arrais; e com ele foi a Casa do dito Ministro, com quem o Arrais teve larga conferência, e nela se ajustou a ida a Queluz. No fim da conferência o convidou para jantar com ele, obséquio que o Arrais aceitou. De tarde se despediu, e com muita satisfação se recolheu a bordo, fazendo primeiro passagem .pelo Navio onde estavam as Princesas; a quem deu conta do que se tinha passado com o Ministro de Estado e da determinação da sua ida a Queluz.

Desde o dia vinte até vinte e quatro ouve vários recados do Arrais, e do Ministro de Estado, comunicados de parte a parte pelo Padre Frei João, sobre o desembarque das Princesas para terra, enquanto se mandavam concertar os Navios em que tinham vindo; oferecimento que nunca as ditas Princesas quiseram aceitar, dizendo, que o seu desejo era o retirarem-se ao seu País com a brevidade possível; e que, como o Navio em que elas tinham vindo da Ilha da Madeira era fretado por conta da Fazenda Real, podia aqui ficar, e a sua passagem para Tânger ser em outra que tivesse melhores acomodações.

À vista da repugnância que as Princesas mostravam em não quererem desembarcar, determinou o Secretário de Estado que fosse o Arrais com o Padre Frei João de Sousa, em companhia do Chefe de Divisão António José de Oliveira, para verem que Navio da Praia lhes agradava, e assim se lhes fretar, e nele fazerem a sua passagem e transporte. para Tânger; o que tudo. se executora no dia seguinte vinte e cinco do mês.

Neste dia depois, de terem ido a bordo de três Navios, e neles examinado as acomodações, assentaram que fosse o chamado Ásia, por ser o melhor, mais asseado, e ter duas câmaras alta, e baixa. Isto concluído, voltaram ambos; o Arrais para bordo do Navio das Princesas, a quem deu conta da escolha da embarcação para o seu transporte a Tânger, e o Padre Frei João de Sousa para casa do Ministro de S. Majestade, a quem participou o que se tinha passado no exame dos Navios, e a escolha do mencionado Ásia (o qual estava carregado para o Maranhão): pelo que se fretou para deitar os passageiros em Tânger, e seguir depois, a rota do seu destino.

No outro dia vinte e seis, estando o Excelentíssimo Conde de S. Lourenço de semana ao Príncipe nosso Senhor, lhe foi entregue um Requerimento 2 , para o haver de pôr na presença do mesmo Senhor, com uma Carta da Princesa Africana escrita à Rainha nossa Senhora; na qual dava parte a S. Majestade do muito bem que tinha sido tratada, e obsequiada em casa do Juiz de Fora da Ilha de S. Miguel, pedindo à mesma Senhora contemplasse aquele Ministro, com o despacho correspondente aos benefícios que lhe havia feito durante o tempo que em sua casa estivera.

Recebendo S. Alteza a Carta, e vendo que era escrita em idioma Arábico, mandou ao seu Camarista, que por um Aviso mandasse chamar ao Padre Frei João para a traduzir, o que o dito Padre fez tanto que recebeu o Aviso. Traduzida a Carta, e ciente S. Alteza do conteúdo dela, foi servido mandar-lhe responder com expressões assaz enérgicas, dando-lhe juntamente a certeza do despacho do Juiz de Fora, em contemplação da sua Real Recomendação: cuja resposta trouxe o sobredito Padre Frei João quando voltou de Queluz, e por se recolher tarde fez dela entrega no dia seguinte, com a qual ficou S. Alteza Marroquina muito satisfeita, e obrigada ao Príncipe nosso Senhor.

Constando nessa mesma ocasião a S. Alteza pelo sobredito Padre, que o Arrais lhe desejava beijar a mão, e entregar outros papéis da parte da Princesa sua Ama, determinou o mesmo Senhor, que no Domingo 28 lhe fosse falar, por ser dia livre de despacho, e mais próprio para o receber.

No dia Sábado 27 uma das Concubinas de Molei Abdessalam pariu a bordo uma Menina, a cujo nascimento pretendeu o Arrais que se fizesse alguma demonstração de festejo com salva de artilharia; porém o Padre Frei João dissimulou a pretensão do Arrais, e fez que o não entendia.

Como a jornada de Queluz ficou determinada para o dia 28, na manhã desse dia. foi o Padre Frei João de Sousa a bordo do Navio do Arrais, e a horas competentes vieram ambos ao cais de Belém, onde já estavam dois coches a seis , um para irem nele, e outro de Estado. Montaram no mais rico, e tomaram o caminho de Queluz. No meio do caminho havia muda para ambos os coches; e feita ela continuaram a marcha.

Ao chegar aquele Palácio, apearam-se na entrada principal, e foram conduzidos para a Casa da Música, onde estava a Corte esperando para o cumprimentar, e assistir até quando S. Alteza o mandasse ir à sua Real Presença. Sendo horas, foi o Arrais conduzido para a Sala do Dossel, onde S . Alteza benignamente o recebeu. Depois de ter beijado a mão à Pessoa Augusta do Príncipe nosso Senhor, e feitos os devidos cortejos, respondeu às perguntas que o mesmo Senhor lhe fez a respeito da saúde das Princesas suas Amas, e no fim entregou a Carta, e papéis de que acima se fez menção. S. Alteza os recebeu, e à sua vista os deu ao Ministro de Estado o Excelentíssimo José de Seabra da Silva, que ali se achava com o Excelentíssimo Marquês de Ponte de Lima; dizendo-lhe, que da sua parte assegurasse à Princesa Amina, que todas as pessoas por quem se interessava seriam contempladas, por se terem feito dignas da sua Real Protecção.

Desejando o nosso Augusto Príncipe mostrar ao Arrais a particular estima que, em atenção da Princesa sua Ama, dele fazia, foi servido mandá-lo convidar a Jantar naquele Palácio, e determinou que fosse admitido à Mesa de Estado. Acabado, o jantar, o Gentil-homem da Câmara o Excelentíssimo Marquês de Tancos o convidou para ir passear à Quinta, e ver os Jardins, e Cascatas: o que tudo viu com sumo prazer, e igual admiração.

Sendo horas despediu-se o Arrais das Pessoas que o honrarão com a sua companhia, montou com o Padre no coche, e cheio de satisfação, se encaminhou para o sitio de Belém. Ali se embarcou, e foi dar parte às Princesas da honrosa recepção que tivera, e do que vira naquele magnífico Palácio, e admirável Quinta.

No mesmo dia 28 determinaram os Príncipes nossos Senhores, que a Excelentíssima Camareira Marquesa de Lumiares fosse no dia seguinte visitar e cumprimentar as Princesas Mauritanas da sua parte 3 : e como o Padre Frei João devia acompanhar a dita Fidalga naquele cortejo, o Camarista da semana lhe mandou um Aviso, para que pelas dez hora da manhã do dia seguinte estivesse no cais de Belém.

Às horas indicadas do dia 29 estando o Padre Frei João no referido sítio, onde se achava um dos bergantins de S. Majestade pronto para o transporte, chegou a Excelentíssima Marquesa num coche a seis, e ao mesmo tempo o Conde de S. Lourenço, que por ordem do Príncipe nosso Senhor vinha para acompanhar a dita Senhora.

Embarcaram todos, e se dirigiram para bordo do Navio do Arrais, que devia também acompanhar, como logo fez por estar, já avisado, e ter ele sido o mesmo que participou esta noticia às Princesas suas Senhoras, para que estivessem prevenidas, vestidas, e ornadas. Chegando a bordo subiram todos os acima nomeados. A visita foi recebida sobre a tolda da popa do Navio, que estava alcatifada; e para não serem vistas, tinham mandado por uma vela, fazendo divisão junto do mastro do meio de um a outro lado do Navio: e a abertura .que servia de entrada por um dos lados estava guardada pelo Eunuco.

Entrou unicamente a Excelentíssima Marquesa, e os mais ficaram da parte de fora. Os primeiros comprimentos, e saudações se fizeram por acenos. Veio depois a Marquesa com uma das Camareiras Mouras junto do pano que servia de divisão, e da parte de dentro se deram os recados ao Padre Frei João, e este da parte de fora os repetia no idioma Mourisco à Camareira das Princesas; a qual os levava a suas Amas, e trazia juntamente a resposta. Duraram estas mensagens por algum espaço de tempo, e a boa da Fidalga em pé junto do pano. Finalizados os recados, foi S. Excelência sentar-se ao pé das Princesas, e descansar da grande fadiga, que teve: e bem se pode crer a mortificação que aquelas Senhoras teriam nessa ocasião, sem se entenderem de parte a. parte.

No fim da visita fez significar aquelas Princesas o grande desejo que os nossos. Príncipes, e Senhores tinham que elas desembarcassem, e descansassem por alguns dias da sua longa viagem; ao que responderam, que a decisão daquele ponto o deixavam à disposição do Arrais seu condutor a quem. foram entregues, e que delas era responsável. Vencida a dificuldade por esta parte, e dando o Arrais a certeza de que sem dúvida desembarcariam, despediu-se a Marquesa, e foi para bordo do outro Navio em que vinha a Viúva do Imperador velho, para igualmente a cumprimentar da parte dos Príncipes nossos Senhores, por assim lhe ter sido ordenado: o que se não efectuou, por estar a dita Viúva com moléstia. Concluída a comissão, voltou a Marquesa para o cais, montou no coche, e se recolheu a Queluz, a dar parte a Suas Altezas da certeza que acabava de receber a respeito do desembarque; o qual se fez no dia seguinte 30 de Julho para o Palácio das Necessidades.

§ 

Na manhã do sobredito dia estando tudo disposto, e as ordens passadas enquanto aos coches, e embarcações, e o Palácio das Necessidades preparado para nele serem recebidas; foi S. Alteza servido nomear ao seu Gentil-homem da Câmara o Excelentíssimo Conde da Ega (em lugar do Conde de S . Lourenço, que se achava molesto) para acompanhar aquelas Senhoras, e ir todos os dias de manhã e de tarde saber delas da parte dos Príncipes nossos Senhores: o que este Fidalgo fez em todo o tempo até o dia do seu embarque. Devendo pois ser feito o desembarque pelas cinco da tarde, segundo as horas dadas, veio a fazer-se muito depois, não obstante o estarem já prontos no terreiro de Belém oito coches ricos, e dez seges: uma Companhia de Cavalos; e outra de Infantaria postadas, guardando o sítio mais próximo, e entrada do cais, e para conterem, o povo que estava imenso esperando, para ver aquela função nunca vista, nem esperada.

No cais achava-se a Galeota de vidros, e os dois bergantins de Sua Majestade, cinco escaleres da Ribeira, e o da Nau S. António, que defronte estava fundeada; tudo para o transporte daquelas Princesas, sua Família, e Comitiva. O Príncipe nosso Senhor tinha dado ordem que as embarcações não largassem do cais, enquanto ele não estivesse já na varanda do Jardim para as ver passar.

Acabando S. Alteza de ver manobrar um dos Regimentos do Porto, chegou à varanda, e imediatamente largaram as embarcações do cais, tomando cada uma o Navio que lhe era destinado. A Galeota, e um dos bergantins foram para bordo das Princesas com alguns escaleres, por ser a Família aí em maior número.

No acto do desembarque das Princesas , a Torre de Belém lhes deu uma salva de vinte e um tiros. A mesma salva deu a Nau Santo António, e os dois Iates de S . Majestade. E à proporção que iam chegando ao cais, e desembarcavam, se iam metendo nos coches que a cada uma das pessoas era destinado. Como vinham com as caras tapadas, e eram guiadas pela mão do Eunuco, e do Arrais, como cegas, foi esta a causa toda da demora, e de se vir a fazer mais tarde do que se tinha determinado; durando a condução das 221 pessoas, que tantas eram, até à meia noite, e meia hora; o que também deu causa a um furto que se fez a uma das Princesas 4.

Metidas as Princesas, e mais pessoas principais da sua Comitiva nas carruagens competentes, marcharam para o Palácio das Necessidades, levando a Companhia de Cavalos adiante, e aos lados dos coches. À porta do Palácio, e lugares mais necessários, se lhes mandou por guarda de uma Companhia de Infantaria; a qual todos os dias era mudada, e se lhes conservou no decurso do tempo que aqui estiveram.

Como os nossos amáveis Príncipes procuravam por todos os modos obsequiar aquelas Princesas, determinaram mandar no dia seguinte cumprimentá-Ias pela Excelentíssima Marquesa de Lumiares, e  significar-lhes da parte dos mesmos Senhores o quanto desejavam dar-lhes todas as demonstrações de amizade. Este Régio obséquio se fez constar às Princesas Mauritanas  antecipadamente, as quais sensíveis a tantas honras que Suas Altezas lhes faziam, com muita gosto esperaram a mencionada Visita.

Pelas quatro horas da tarde do dia 31 de Julho, chegou aquela Senhora num coche a seis urcos, e logo foi conduzida ao Quarto das. Princesas, que .a cumprimentaram, e receberam com muito agrado. Os primeiros cortejos foram por acenos. A estes seguiram-se os da parte de Suas Altezas, que foram repetidos pelo Padre Frei João de Sousa à Camareira Mourisca, e por esta era trazida a resposta, que o dito Padre repetia à Excelentíssima Marquesa. Acabados os cumprimentos deste modo feitos, despediu-se a Marquesa, e recolhendo-se ao seu coche, nele voltou para Queluz.

Na conferência que naquela noite entre as Princesas houve, assentaram, que deviam mandar as suas duas Camareiras, a agradecer a Suas Altezas Reais a distinta honra que na visita do dia antecedente lhes fizeram. Comunicada esta resolução ao Arrais, e ao Padre Frei João de Sousa, para que ele a desse a saber a S. Alteza, sem demora se passaram as ordens para um coche a seis, em que pelas dez horas do dia 1.º de Agosto montou o Arrais, e o Padre, e as duas Camareiras, que estavam ricamente vestidas, e ornadas com muitas jóias próprias, e de suas Amas, e se encaminharam  para. Queluz. No caminho havia muda para o coche , e feita ela continuaram a marcha.

Logo que chegaram àquele Palácio, foram conduzidas à Sala da Música, onde a Corte, e Criados da Casa os esperavam. Ali estiveram em companhia da Excelentíssima Marquesa de Lumiares, enquanto a Princesa nossa Senhora se dispôs para as receber no seu Quarto, tendo junto de si a sua Filha a Sereníssima Princesa da Beira. As Camareiras Mouriscas foram recebidas com assentos de Almofada. Depois de beijarem a mão às Princesas Mãe e Filha, deram a S. Alteza o recado de suas Amas, e da parte das mesmas lhe agradecerão toda a honra, e obséquio que S. Alteza tinha praticado com elas. Feito aquele cortejo, e respondendo a algumas perguntas que a Princesa nessa Senhora lhes fez, beijaram-lhe segunda vez a mão, e passaram ao Quarto da Senhora Princesa D . Maria Benedita, que as recebeu com igual agrado, e cerimónia.

Dali foram conduzidas ao Quarto da Senhora Infanta D. Maria Ana, onde pouco tempo estiveram, por estar a dita Senhora molestada; e para lhe não servirem de incómodo lhe fizeram os devidos cortejos, e beijando-lhe a mão se retiraram para o Quarto do Senhor Infante D. Pedro Carlos, a quem beijaram a mão e aonde também, pelo susto que aquele Senhor mostrava ter, por ser a primeira vez que via semelhante gente, e trajes, pouco tempo se demoraram.

Concluídos os comprimentos das Senhoras, apareceu-lhes o Príncipe nosso Senhor, a quem beijaram a mão, e deram a S . Alteza as recomendações, e agradecimentos da parte das Princesas suas Amas. Depois de lhes perguntar pela saúde das ditas Princesas, e elas Camareiras responderem ao obséquio de S. Alteza, o mesmo Senhor as convidou para que fossem passear à Quinta;

honra que elas de boa vontade aceitaram, a cujo passeio S. Alteza foi servido de as acompanhar. Tudo viram com grande admiração e não só lha causou a magnificência, e grandeza daquela Quinta, Jardins, e Cascatas; mas sobre tudo a afável bondade do Príncipe nosso Senhor, e do seu agradável , e familiar modo.

No fim do passeio S. Alteza lhes fez a oferta de jantarem naquele sítio, graça que elas não aceitaram por lhes ser preciso voltarem a tempo para ministrar o jantar a suas Amas: e como fossem horas de se retirarem, agradeceram a S. Alteza as honras, que lhes havia feito da sua Real Companhia, beijaram-lhe novamente a mão, e se recolheram para o Palácio das Necessidades aonde chegaram pelas duas da tarde.

Na volta para casa, não constou a sua conversação, senão das maravilhas que tinham visto no Palácio, e Quinta, e do particular agrado das Pessoas Reais. Soube-se, que fizeram o mesmo depois que chegaram a casa, falando só no bom modo que acharam na Real Família, na honrosa recepção que lhes fizeram, e na magnificência daquele Palácio, e Quinta; persuadindo suas Amas, que fossem ver o que nunca viram, nem veriam.

Além destas persuasões das Criadas, se fez saber àquelas Princesas, que deviam ir a Queluz visitar, e agradecer a Suas Altezas a boa hospedagem que lhes  fizeram, e que de outro modo parecia uma espécie de ingratidão depois de chegarem à Corte de uns Príncipes amigos , com quem tinham paz , e serem seus hóspedes, não os visitarem, nem agradecerem tantos obséquios, mormente tendo Suas Altezas Reais tanto gosto de as ver, e cumprimentar .

Estas, e outras razões com efeito as convenceram, 5 e esquecidas do seu inviolável costume de se não deixarem ver de homem algum sem ser seu marido, ou Eunuco, condescenderam com a vontade das pessoas que lhes faziam as instâncias, e determinaram a sua ida, para quando Suas Altezas o mandassem.

Com esta certeza foi o Padre Frei João a Queluz, e deu parte ao Príncipe nosso Senhor da resolução das Senhoras Africanas sobre a ida aquela Casa de Campo. Determinou então o mesmo Senhor, que a visita fosse no dia Sábado três de Agosto, e ordenou, que fossem mostrar ao dito Padre algumas Casas das que estão na Quinta, para ver qual delas seria própria: para a primeira recepção daquelas Senhoras. Vistas as. Casas dos Espelhos, a de cima do Lago, e a do jardim Botânico, só esta lhe pareceu mais proporcionada, por ser retirada, e o jardim fechado com cancelas.

Escolhida a Casa, voltou o Padre Frei João de Sousa para o Palácio, e deu parte a S. Alteza da escolha, a qual o mesmo Senhor aprovou para o que  pertencia ao primeiro repouso das ditas Senhoras, pois para o descanso de todo o dia tinha aquele Senhor determinado que fosse na sua própria Sala do Docel, e Despacho.

Isto concluído voltou o Padre para o Palácio das Necessidades. Nesse dia amanheceu a Concubina, que tinha parido a bordo, gravemente doente, por cujo motivo foi S. Alteza servido mandar, que o Médico da sua Real Câmara  Francisco José de Aguiar lhe fosse .assistir, e às demais enfermas, que naquela Comitiva havia: o que o dito Médico fez, até que por último faleceu a Concubina de sobre-parto.

No dia de 6.ª feira, dois de Agosto, se passaram as ordens para os coches, e carruagens, como também para a Companhia de Cavalos, que devia acompanhar esta Comitiva. Pouco depois da meia noite do dia seguinte Sábado, chegaram sete coches, e oito seges, e ao mesmo tempo a Companhia de Cavalos. Pelas duas e meia montaram as Princesas; o Arrais; o Excelentíssimo Conde da Ega; o Secretário; o Padre Frei João; o Eunuco, e o resto das pessoas destinadas, e se puseram a caminho, chegando a Queluz antes de nascer o Sol; achando a porta de ferro já aberta, e um dos moços, a quem foi incumbida aquela diligência pronto para os encaminhar à Casa do Jardim que se lhes tinha destinado para nela descansarem, e ali almoçarem, antes de serem conduzidas para o Palácio.

À proporção que as Princesas se iam apeando, mandavam-se sair os coches fora da Quinta, e elas eram encaminhadas para o Jardim Botânico, guiadas pelo Eunuco, e Secretário. Recolhidas com suas criadas no Jardim, fecharam-se as cancelas que foram guardadas pelos mesmos dois. Passou o Arrais, o Excelentíssimo Conde da Ega, e o Padre Frei João ao Palácio a verem a Sala para onde deviam ir, e examinarem se por alguma parte podiam ser vistas, ou devassadas. Feita a vistoria, resolveu-se o Arrais, a mandá-las conduzir para a Sala destinada, antes que a Família da Casa Real estivesse levantada, e as janelas do Palácio abertas, a fim tudo de não serem vistas.

Antes de saírem as Princesas do Jardim mandou-se explorar a Quinta, e entre as murtas, para ver se algum dos criados estaria escondido; e feito o exame se  mandaram sair, deixando a mais Família no Jardim. O Arrais, o Excelentíssimo Colide da Ega, e o Padre iam adiante para lhes indicar o caminho mas em grande distância não obstante o virem com as caras tapadas, e acompanhadas do Eunuco. Introduzidas enfim nas Salas destinadas para o seu descanso, se puseram à sua: vontade.

A horas do almoço veio a Excelentíssima Marquesa de Lumiares cumprimentá-las da parte de Suas Altezas, enquanto a Princesa nossa Senhora não as vinha obsequiar. O Príncipe nosso Senhor como, já estava levantado as mandou visitar, e saber como tinham chegado. Administrou-se o almoço, que constou de café com leite, chá, e pão com manteiga, tudo com abundância, e muito asseio. Mandaram a esse tempo vir as Criadas que tinham ficado no Jardim para que participassem do mesmo almoço que se lhes ministrou.

A esse tempo chegou a Princesa nossa Senhora e logo mandou chamar ao Padre Frei João de Sousa, e por ele foram dados os primeiros cumprimentos, e recados para as Princesas Mauritanas, os quais eram pelo dito Padre dados a uma das Camareiras Mouriscas, e esta trazia os agradecimentos, que o mesmo Religioso participava a S. Alteza. Acabados por este modo os primeiros cortejos, entrou a Princesa nossa Senhora, e continuaram as saudações por acenos. As visitas que a Princesa nossa Senhora fez às suas hospedas [sic], foram repetidas, e igualmente as da Camareira Marquesa de Lumiares.

Antes do jantar veio a Sereníssima Senhora Princesa D. Maria Benedita cumprimentar Suas Altezas Marroquinas, e feito o seu obséquio se retirou. As Damas, e Açafatas fizeram também suas visitas; contentando-se em ver somente aquelas Princesas, seus trajes e adornos.

Como Suas Altezas Reais tinham dado ordem, que se fizesse o jantar para as Princesas, e sua família, foi o Padre Frei João de Sousa chamado pelo bom velho Agostinho, para que lhe desse noção dos manjares, e qualidade de pratos que se deviam fazer; o feitio da mesa, e o modo de ser servida. Dada a necessária informação, e feito o jantar, mandou-se pôr a mesa na Sala imediata aquela onde elas estavam.

A mesa era quase rasa, que de propósito se mandou fazer. Cobriu-se com pano de damasco por cima, e de roda. Puseram-se almofadas de damasco à roda da dita mesa, para lhes servirem de assentos. Serviu-se o jantar, e se lhe pôs o desser juntamente com ele, por ser este o seu costume. Estando o jantar todo na mesa, e mandando-se sair os criados Portugueses para fora daquela casa disse o Padre a uma das Camareiras que chamasse suas Amas para a mesa, e que as servissem elas. O Eunuco ficou à porta fazendo o seu ofício. Ao jantar das Princesas hóspedas assistiu a Princesa nossa Senhora, e sendo por elas convidadas não aceitou o convite, com o pretexto de que o Príncipe nosso Senhor a esperava para jantarem ambos. Acabado o jantar das Princesas 6 seguiu-se o das Criadas, que o fizeram sem se renovar a mesa, por se ter servido com abundância.

Acabada a segunda mesa entraram os criados da Casa, e a levantaram, assim como todo o trem, que era de prata; não sendo pouca a admiração que lhes fez a grandeza do serviço dela. Estando a casa do jantar desembaraçada, mandou-se vir o café, que tomaram.

Seguiu-se depois disto a repartição dos presentes, com que Suas Altezas Reais brindaram as suas hóspedas, 7 os quais elas de boa vontade aceitaram com demonstração de muito agradecidas a quem assim as beneficiava. De tarde convidou-as a Princesa nossa Senhora para irem passear à Quinta, e a mesma Senhora as acompanhou, montando primeiro a cavalo para ser vista por elas. O passeio não foi extenso por estar aquela tarde de muito vento.

Recolhidas as Princesas a casa ofereceu-se-lhes chá, que tomaram. Sendo horas de luzes, mandaram-se iluminar as casas de Vidros, a da Música, e a outra imediata, e depois foram as Princesas Marroquinas convidadas para as verem, e as acompanhou a Princesa nossa Senhora, a sua Camareira, e outras Fidalgas. E como passassem pelo Quarto da Senhora Princesa D. Maria Benedita, as acompanhou também para não faltar a este último obséquio.

Não foi pequena a admiração das Princesas Marroquinas, quando viram a magnificência das ditas Salas iluminadas, cuja vista se fazia tão agradável, e brilhante; então se lembraram do quanta as suas Camareiras. lhes haviam exagerado a grandeza daquele Palácio, e seu majestoso ornato. Finalmente cheias de gosto, e admiração, e muito agradecidas, se despediram de Suas Altezas Reais, e Fidalgas que as acompanhavam, meteram-se no Jardim nos coches que se mandaram chegar aquele sítio, e pelas nove horas se retiraram para o Palácio das Necessidades, tomando o caminho dos Sete Rios,  e chegaram às onze.

Como, o Domingo 4 de Agosto era o oitavo dia do nascimento da Princesa Fadaila, Filha de Molei Abdessalam, e da Concubina que pariu a bordo, quiseram as outras Princesas festejar aquele dia, segundo o costume de seu País, e pôr à recém-nascida o nome que devia ter. Consistiu aquele festim em várias cantigas, danças, enfeites de mãos que se fizeram com certa massa de vários ingredientes amassados com água rosada, o que tudo por Manuel de Pontes fora mandado buscar. No fim do festim trouxeram a criança para o regaço da Princesa Amina, e esta lhe gritou aos ouvidos por três vezes, dizendo «Fadaila , Fadaila , Fadaila» ( que significa Virtude ).

Determinado estava o embarque destas Princesas para o dia segunda feira 5 do presente mês de Agosto, porém como a Concubina enferma se achou nele gravemente doente, diferiu-se para quando estivesse em termos de se poder transportar. O mal foi crescendo, e por fim faleceu junto ao meio dia da 4.ª feira 7 do mês, tendo morrido outra velha na madrugada do mesmo dia 7; a qual por isso se enterrou primeiro, sendo levada pelos Mouros, e sepultada nas terras por cima da Horta Navia.

Pouco depois do meio dia chegaram ao aposento do Arrais o Doutor Joaquim Xavier da Silva Médico da Câmara de S. Majestade, e o Cirurgião António Martins Vidigal, os quais vinham da parte do Príncipe nosso Senhor visitar a Concubina enferma, e examinar o estado da sua moléstia; e tendo eles a notícia de que era falecida, quiseram que aquela sua visita constasse às Princesas, o que logo se lhes participou. As mesmas Princesas mandaram pelos referidos Médico, e Cirurgião agradecer a S. Alteza o seu Real Cuidado, e o particular obséquio que lhes fazia: e que tanto aquela, como as demais graças que o seu Magnânimo Ânimo com elas tinha despendido, as conservariam perpetuamente na sua lembrança. Logo que se acabou o enterro da velha, se cuidou no funeral da Concubina , que por tanto se lhe fez com mais fausto , e grandeza. Tanto que faleceu mandaram logo buscar a bordo uma fina e rica manta das suas próprias para nela ser amortalhada segundo o seu costume 8.

Mandou-se-lhe fazer hum caixão com tampa , sem ser forrado por dentro, nem por fora, e o fundo era de travessas afastadas umas das outras por modo de grades. Também se lhe fez um estrado de oito palmos de comprido, e largura proporcionada para sobre ele ser lavada segundo suas cerimónias. Duas vezes foi o cadáver lavado: a primeira com água morna, e um pouco de açúcar; a segunda com água rosada, e água de flor misturadas com beijuim, pau sândalo em pó, murta, manjerona, e manjericão, tudo misturado. Feita esta lavagem, taparam-lhe as vias, ouvidos, e narizes com algodão em pasta embrulhando nele pedaços de alcamfor. Depois desta cerimónia, vestiram-na de camisa, calças, e gibão brancos. Por cima desses, outros de cassas, e por último embrulhada na manta rica em que foi cozida.

Junto ás oito horas da noite foi levada aos ombros de quatro Mouros, acompanhada de outros, e de algumas Criadas das Princesas, que ião atrás do corpo chorando, e lamentando aquela defunta. O Secretário Mouro fazia as vezes de Ministro da Lei nas Cerimónias da sua Religião.

A guarda dos soldados Portugueses os foi acompanhar, para evitar toda a desordem, que pudesse haver da parte do nosso povo. Dado o corpo à sepultura depois de muitas orações que fizeram, deitaram água à roda do caixão, e cada um dos Mouros uma mão cheia de terra sobre o mesmo caixão, e por fim o cobriram de terra: e voltaram para casa levando suas pedradas dos rapazes, e povo, não obstante a guarda que os .acompanhava; além de outra de Cavalaria, que o Excelentíssimo Marquês de Marialva, que nessa ocasião se achava no Quarto do Arrais mandou vir do seu Regimento de Alcântara. Não havendo já moléstia que servisse de impedimento ao embarque das Princesas, se lhes fez saber, que achando-se uma Nau de S. Majestade preparada, e  pronta a sair deste Porto, e desejando S. Alteza que o seu transporte fosse com toda a segurança, em um tempo em que quase todos os Príncipes da Europa se achavam envolvidos em guerra, lhes mandava fazer a  oferta daquela Nau até ao Porto de Tânger, e que se mandaria demorar, quando não estivesse determinada ainda a sua viagem.

As Princesas estimaram este oferecimento, não obstante o tratamento que na sua hospedagem experimentavam. O Secretário porem levado do seu fanatismo impugnou, dizendo, que as Princesas não deviam embarcar na 6.ª feira que era o terceiro dia do óbito da Concubina, em que deviam repetir as cerimónias sobre as sepulturas das duas defuntas.

Não era tanto este acto de Religião, quem fazia a repugnância do Secretário . como ter-lhe constado por alguns Mouros, que de tempos em tempos iam vigiar as sepulturas das defuntas, 9 que em uma das ocasiões encontraram alguns rapazes fazendo coisas indecentes sobre elas.

O Arrais, que percebeu o motivo do Secretário, pediu, que se lhes mandasse fazer uma pequena parede à roda das sepulturas, e lhas cobrissem por cima com uma espécie de abóbada para maior decência, o que logo se mandou fazer, para não terem os Mouros motivo de dissabor, nem deixassem de embarcar por esta causa.

Resolvidas ultimamente as Princesas a embarcar no dia 5.ª feira 8 de Agosto, deram-se as ordens para as carruagens, e embarcações para aquele fim. Na manhã da mesma 5.ª feira se fez embarcar toda a Família desnecessária, nas escadas da Pampulha por lhes ficar aquele sítio perto de casa; e à proporção que se embarcavam , iam para bordo dos seus respectivos Navios.

Mandou-se nesse dia aprontar o jantar das Princesas mais cedo, para terem tempo de se vestirem, e prepararem. Junto às oito horas da noite se achavam dentro do pátio seis coches, e algumas seges para o transporte do resto da Família que ficou; e também a Companhia de Cavalos que devia escoltar os coches, na mesma conformidade do dia do desembarque.

Montaram as Princesas, e mais Família como também as pessoas que as acompanharam, muitas vezes repetidas nesta Relação, e se encaminharam para o cais de Belém. No largo daquele sítio se tinha mandado armar numa grande barraca de campanha, para nela descansarem as Princesas enquanto se não ajuntavam todos, e repartiam pelas embarcações, que deviam levar cada uma a bordo do Navio que lhes competia.

Alguma demora houve no embarque, por estar a maré muito vazia, e as Galeotas, e bergantim não puderem bem chegar ao cais . Apenas deu lugar, embarcaram por sua ordem, e foram pernoitar a bordo dos Navios em que deviAm passar ao seu País.

No dia seguinte 6.ª feira nove de Agosto pelas três da tarde, quando a maré começava a apontar, fez a Nau Medusa 10 sinal com um tiro de peça da sua artilharia, para que os mais Navios se fizessem à vela. A Nau foi a que primeiro largou o pano, e logo o Navio em que iam as Princesas depois deste o outro que pertencia aos Mouros; e por último aquele em que vinha o Arrais. Ao passar pela Torre de Belém, esta salvou as Princesas com 21 tiros. A Bateria nova, e a Torre de S . Julião lhes deram iguais salvas.

No decurso do tempo que as Princesas Mauritanas estiveram nesta Corte, foram visitadas por várias Senhoras da primeira Grandeza, assim a bordo, como no Palácio das Necessidades. Elas muito se lisonjeavam com as suas visitas, ainda que bem conheciam que eram feitas mais por curiosidade, do que por afeição; posto que em algumas Senhoras acharam tudo o que é de uma verdadeira amizade, chegando a aparecer-lhes no cais de Belém no acto de embarcar, para lhes darem as ultimas saudações .

LISTA DOS NOMES DAS PRINCESAS AFRICANAS E DO NÚMERO DA COMITIVA.

Mulher do Príncipe Abdessalam.

LAILA AMINA .

Filhas do mesmo Príncipe, mas de diferentes mães.

Laila Rabiha.

Laila Zobeida.

Laila Aixa.

Filhos do dito Príncipe, e de diferentes mulheres.

Molei Abbas.

Molei Aly.

Concubinas do dito Príncipe Abdessalam.

Laila Mequeltum.

Laila Raxida.

Laila Hania.

Laila Meliha. (Esta era a mais valida.)

Laila Aixa. (Faleceu aqui.)

Laila Rabha.

Laila Ania.

Laila Rabaha.

Laila Zaida.

Filha de Molei Eliazid.

Lila Mequeltum.

Mulher Viúva de Eliazid.

Laila Embarca.

Mãe de Laila Ania.  

Laila Chatum.

Viúva do Imperador Velho.

Nana Rabu.

Duas Camareiras, Zahra, e Maulat.

Um Eunuco.

Um Arrais condutor.

Um Secretário.

Um preto Porteiro que faz as vezes do Eunuco.

Dezassete Criadas Músicas.

Trinta Criados.

Dezassete mulheres dos Criados. 

Cento e dezanove Escravos, Escravas e Filhos.

Onze passageiros Mouros.

Um Judeu, e uma Judia, amiga do Arrais.

«Nesta Comitiva vinha uma rapariga Georgiana, casada com o preto Ponteiro e outra Moura Filha de Irlandês renegado.

Faz o número total 221 pessoas.

FIM.


Notas:

1. Este Arrais sendo Judeu de nação, oriundo de África, chamava-se Elião Liale. Serviu de Escrivão da Fazenda na vida do Imperador defunto: e como Molei Eliazid [Moulay Yazid] tirou a vida a todos os Judeus que serviram a seu pai, em cujo número era este Arrais compreendido, para melhor segurar a vida, abjurou a sua Lei Moisaica, e abraçou a Maometana. Não se dando ainda por seguro, apesar de ter mudado de Religião, retirou-se para Santa Cruz, onde esteve, até que Molei Abdessalam se serviu do seu préstimo, e por fim lhe confiou a condução da sua família.

2. O Requerimento foi entregue ao Camarista por Frei Luís da Natividade, Irmão do Juiz de Fora da Ilha de S. Miguel; o qual Padre, como Procurador da sua Província, reside nesta Corte no Convento dos Padres Caetanos.

3. A visita que Suas Altezas mandaram fazer às Princesas Marroquinas foi urdida pelo fino Arrais, que numa ocasião declarou, que, se os Príncipes  nossos Senhores as mandassem visitar, e convidar por alguma Senhora da Corte, para que desembarcassem, não deixariam as Princesas de aceitar o convite de Suas Altezas: o que com efeito assim aconteceu; porque daquela visita resultou a certeza do desembarque que depois se fez.

4. Tendo cada uma das Princesas, depois de se ornar a bordo, entregado à sua Escrava o resto das suas jóias para lhas trazer, uma Escrava da Princesa Amina, que trazia a caixa dos adereços da sua Senhora, chegando tarde ao Palácio das Necessidades, e não sabendo ainda o Quarto da sua Ama, se sentou na escada, e adormeceu tendo a caixa , junto de si; porém quando a vieram chamar, procurou a dita caixa, e a não achou. Divulgou-se no dia seguinte à notícia do roubo, e logo se mandou pelos Ministros dos Bairros fazer a diligência por descobrir o autor, mas não foi possível aparecer até ao dia da sua partida desta Corte.

5. Sobre a ida destas Princesas a Queluz, teve o Arrais sua repugnância no principio, dizendo, que podia aquela visita fazer-se por um encontro na Quinta do Meio, vindo Suas Altezas de Queluz, e as Princesas das Necessidades, e na dita Quinta encontrarem-se, e cumprimentarem-se, e que ,deste modo ficariam todos bem, e não se obrigariam depois a pagarem visita uns aos outros; porém no fim tudo se venceu, com a sua ida a Queluz.

6. No acto de jantar daquelas Princesas se observou, que a principal entre elas não comia pela sua mão, mas outra das suas companheiras lhe metia o comer na boca. Isto assim dito pareceria incrível, porém quem for ciente dos costumes Orientais, e Africanos, não duvidará da verdade deste facto. É costume pois naqueles países, nas bodas dos casamentos, às quais são convidadas as parentas, e amigas, não comerem as noivas pela sua mão, mas alguma das parentas mais chegadas lhe mete o comer na boca; e nesta cerimónia afectam a sua modéstia, e gravidade; por cujo motivo usam de um dito todas as vezes, que em qualquer mesa se vê uma pessoa com modéstia, nada pedindo, esperando que lhe ofereçam de qualquer prato: Tu estás à mesa como se fosses noiva. E como a nossa Augusta Princesa se achava presente quando elas jantavam, quis a Princesa Amina verificar aquele dito na sua pessoa, não comendo pela sua mão, mas consentindo que uma das suas companheiras lhe  metesse o comer na boca, mostrando naquela acção a sua gravidade, e costume do seu País; quando ela nas mais ocasiões sempre come pela sua própria mão.

7. Constava o presente, que as nossas Princesas deram às Marroquinas, do seguinte: relógios de ouro, com cadeias do mesmo metal com águas marinas; e brilhantes: peitilho de grisolitas: caixas de oiro cheias de aljofres: anéis, brincos, e  botões de camafeus, e granadas: presilha com três pedras azuis, e brilhantes: e leques magníficos. A cada uma das Princesas se deu o mimo separado, e segundo a qualidade de sua pessoa.

Às duas Camareiras Mouriscas se deram umas enfiadas de coral, candenas, e toribulos de ouro, e leques; e na despedida 6o pesos duros a cada uma. Ao Arrais uma bengala, que tinha dentro uma espingarda, pistola, e baioneta, que tudo se mostrava por, certas molas; feita na Fundição. Deu-se também um rico alfange guarnecido de ouro, e pedras finas; e um par de pistolas pequenas. Ao Secretário se deu um rico anel com um topázio encarnado, e mais um par de pistolas.

Ao Eunuco deram-se cento e vinte pesos duros para comprar um cavalo, que ele pediu ao Príncipe nosso Senhor. Além do que fica referido, deram-se quase a todos, caixas para tabaco, e outras coisas miúdas de igual valor.

8. O costume entre os Africanos é ser a mulher de dote, Legítima ou Concubina, amortalhada em fato seu, ou comprado com o dinheiro do seu próprio dote, do qual sai toda a mais despesa do funeral. A mulher de dote verdadeiramente, é aquela que se recebe com a cerimónia da Lei Maometana. O recebimento é feito por ajuste entre os Pais dos Noivos na presença do Ministro da Lei; o qual faz, assento do contrato contraído na sua presença, como também do dote que o marido promete dar à sua mulher, o qual se lhe paga quando é repudiada, ou morre; para ter com que se sustente no primeiro caso, e no segundo com que ser amortalhada, e dar esmolas aos pobres. As Concubinas de ordinário são escravas, ou raparigas oferecidas por seus Pais a qualquer Príncipe, ou Grande; desta segunda qualidade de mulheres há Concubina de dote, e a que assim é sempre é valida, e mais estimada.

9. Como em África há certos homens a que chamam Nabbaxin, que costumam desenterrar os defuntos, para lhes roubar as mortalhas; por esse motivo iam os Mouros de tempos a tempos vigiar as sepulturas das Mouras, parecendo-lhes que entre nós haveria dessa qualidade de gente; por isso ficaram eles mais satisfeitos quando se lhes mandou fazer a obra da parede, tanto pela segurança, como para a decência.

10. A Nau era comandada pelo Chefe de Divisão Pedro de Mariz de Sousa Sarmento.

Fonte:

Padre Frei João de Sousa, Narração da Arribada das Princezas Africanas ao Porto desta Capital de Lisboa, seu desembarque para Terra, Alojamento no Palácio das Necessidades, hida para Quéluz, seu embarque, e volta para Tangere, Lisboa, Na Off. da Academia Real das Sciencias, 1793

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