DAS MEMÓRIAS DE FRANCISCO MANUEL TRIGOSO
CAPITULO I Não foi
sem alguma perplexidade que passei na Quinta Nova a maior parte do mês de Junho
e com isso dei ocasião a alguma critica ou reparo. Eu desejava apresentar-me a
el-rei, que sempre me tinha tratado com muita distinção, mas, como esta distinção
tivera principio no tempo em que duraram as Cortes, porque Sua Majestade mal me
conhecia quando chegou do Rio de Janeiro, receava ser agora menos bem recebido,
e isso me causaria desgosto, porque o não merecia à vista do meu comportamento
politico. Alem disso, eu sabia que no novo Ministério havia ainda um partido
liberal, que tratava de coordenar uma nova Carta Constitucional que el-rei tinha
solenemente prometido nas suas proclamações, e eu, já cansado dos trabalhos
passados, desejava muito não me fazer lembrado para outros, preferindo a tudo o
sossego da vida privada. Finalmente a plebe (e nela entravam algumas pessoas que
deviam ter sentimentos mais análogos à sua educação) amaldiçoava, à carga
cerrada, todos os que haviam sido Deputados, e publicamente os injuriava e
escarnecia, e por isso me pareceu conveniente deixar, acalmar os ânimos antes
de aparecer outra vez em publico. Contudo,
como este retiro e os motivos dele deviam ter um limite, eu estava decidido a
aparecer no beija-mão do dia do nome de Sua Majestade, e só mudei de tenção
porque, poucos dias antes, me constou que El-Rei tinha dito em Mafra que queria
dar uma Carta Constitucional e que, para isso, criava uma Junta, na qual eu
necessariamente havia de entrar. À vista
disto, ainda que incerto sobre o êxito deste novo trabalho, que, por isso,
recebia com pouco prazer, não deixei de me lisonjear por ter merecido a
contemplação de Sua Majestade e de me aplaudir vendo-me livre da imputação
de ter eu solicitado este encargo. Com
efeito, no dia 17 de Junho expediu-me o Conde (depois Marquês) de Palmela um
Aviso, mandando-me recolher imediatamente à Corte, onde se fazia precisa a
minha presença, para objectos do Real serviço e de suma importância. No dia
18 assinou-se o Decreto da criação da Junta para preparar o projecto da Carta
de Lei fundamental da Monarquia Portuguesa, a qual Junta era presidida pelo
Conde de Palmela e se compunha de catorze membros; este Decreto vem impresso na
Gazeta de Lisboa, n.º 146. No dia 19 expedia-me o Ministro de Estado, Pamplona,
o Aviso da minha nomeação para membro da dita Junta. Recebi o Decreto e Avisos
ao mesmo tempo, e logo parti para Lisboa a apresentar-me a El-Rei e ao Conde de
Palmela. El-Rei
recebeu-me com semblante extremamente carregado, e apenas me perguntou primeira
e segunda vez onde tinha eu estado, o que atribui ao desgosto que lhe causou o não
me ter ainda apresentado a Ele, mas o Conde, que eu nunca tinha visto,
recebeu-me com as maiores mostras de amizade. Tive com ele larga conferencia
acerca dos trabalhos encarregados à Junta e ouvi-lhe afirmar, coma maior
segurança, que um partido muito poderoso obstava à publicação duma nova
Carta; porem que El-Rei, não só para cumprir a sua promessa, mas por julgar
que assim cumpria ao bem do Reino, estava inteiramente decidido a dá-la; mas
que queria que esta Carta fosse muito monárquica e desembaraçada das ideias
demagógicas da extinta Constituição. Respondi que não tinha opinião sobre a
utilidade ou inconvenientes duma nova Carta, mas que estava pronto a ajudar a
fazê-la, visto que Sua Majestade decididamente assim o queria, ficando S. Exa.
certo de que nunca expenderia princípios que não fossem muito moderados e
avessos ao exaltado liberalismo. Celebrou-se
a primeira sessão da Junta no dia 7 de Julho no Palácio do Rossio. O Marquês
de Palmela repetiu um pomposo discurso que se publicou no n.º 161 da Gaveta,
depois do qual, pedindo ele aos membros da Junta que dessem a sua opinião, em
geral, sobre o negocio de que se tratava, logo se observou a maior discrepância
de votos. Uns não queriam que El-Rei desse uma Carta pela qual se regulasse o
Governo representativo, porque preferiam a este o absoluto; outros diziam que
ali só se devia tratar de dar execução ao Decreto que mandava fazer uma lei
acomodada à forma dos Governos representativos estabelecidos na Europa. Os
primeiros foram constantes na sua opinião e votaram sempre contra todos os
artigos que se discutiram da nova Carta: contudo os outros, a quem aderia
expressamente o Presidente, formavam o maior número, mas diversificavam muito
sobre o sistema e método por que havia de ser feita a nova lei. Tal devia ser
necessariamente o resultado duma Junta expressamente composta de elementos tão
heterogéneos. Por fim pediu o Marquês aos membros, que opinaram a favor do
Governo representativo, que trouxessem na seguinte sessão uma base ou primeiras
linhas da Lei fundamental, para se escolher a que parecesse melhor, e servir de
texto para a discussão. O General Stockler, José Maria Dantas, Bastos e
Ricardo Raimundo apresentaram, com efeito, os seus diversos projectos; entre
eles, foi adoptado o do último, que se entrou a discutir nas sessões
seguintes. Escuso de
seguir, passo a passo, a discussão destes diversos artigos de esboço da Carta:
basta dizer que ela foi tão longa, que não terminou senão nos fins de Agosto
ou já em Setembro. A causa desta demora não era a dificuldade da matéria, mas
a expressa contradição que constantemente manifestavam alguns membros da Junta
a tudo o que não era adopção de Governo absoluto, e o esquisito modo de
proceder do Marquês de Palmela, que, mostrando-se ao principio inteiramente
decidido pela forma de Governo representativo, pouco a pouco começou a vacilar
na discussão, não se atrevendo a dar voto, por ser Presidente, e metendo
grandes intervalos entre as conferencias, passando-se ás vezes oito e mais dias
que as não havia. Enfim
acabaram-se de discutir os artigos, e, então, para se dar algum êxito a este
negocio, julgou-se conveniente nomear uma Comissão pára que, revendo as actas
das sessões passadas, formasse o projecto inteiro da Carta, entrando não
somente os artigos vencidos e já aprovados, mas aqueles que os da Comissão
julgassem que se deviam acrescentar e que depois se discutiriam na Junta. Este
trabalho foi encarregado pelo Marquês Presidente ao Arcebispo de Évora, a
Ricardo Raimundo e a mim. Para o concluirmos com a brevidade possível, nos
ajuntámos todos três alguns dias no Convento da Graça, e, logo que se ultimou
o projecto, que se deveu quase inteiramente ao trabalho de Ricardo Raimundo, o
remetemos ao Presidente, e desde então não soubemos mais dele nem o vimos
apresentado a nova discussão. Contudo,
um incidente ocorreu pouco depois, que merece referir-se. O Marquês de Palmela
convidou-me para jantar em sua casa no dia 29 de Setembro e convidou também
alguns outros membros da Junta. Depois da mesa, isto é à noite, levou-me só
para uma sala onde, com as aparências de muita cordialidade, me falou longo
tempo sobre matérias politicas. Reduzia-se tudo a que muitas causas haviam
ocorrido depois da criação da Junta que obstavam a que os seus trabalhos
pudessem ter o êxito desejado; que El-Rei, não podendo vencer estes obstáculos
e penhorado, por outra parte, pela palavra que dera de promulgar uma Carta
Constitucional, não se sabia tirar deste embaraço; que o projecto da Comissão,
que era o mesmo que fora vencido na Junta, não se podia de maneira alguma
adoptar e que, como o que mais escandalizava os partidaristas do Governo
absoluto era a mudança da antiga forma do Governo da Monarquia, talvez tudo se
pudesse compor, se a nova Carta se reduzisse a muito poucos artigos e se pudesse
mostrar a conexão destes com o direito já antigamente estabelecido entre nós,
e sobre este ponto, em particular, é que o Marquês desejava saber o meu
parecer. Esta ideia
não era nova, porque o Conde do Funchal acabava de a expender num pequeno livro
que imprimira sobre as instituições politicas que a Portugal convinha adoptar,
do qual livro o Marquês de Palmela me tinha dado um exemplar. Respondi,
portanto, que compreendia o modo de pensar do Conde e que, segundo a lição que
tinha das nossas antigas Cortes, não duvidava que, sem alterar sensivelmente a
forma antiga do nosso Governo, se pudessem fazer reviver muitos artigos do nosso
antigo Direito Publico que se achassem em harmonia com as bases das novas
Instituições politicas adoptadas pelos Governos representativos. Esta resposta
agradou muito ao Marquês, que com o maior empenho me encarregou de escrever uma
Memória sobre este assunto, no que ele julgava que eu faria um importante serviço
ao Estado. Como eu,
no dia seguinte, fazia tenção de ir passar alguns dias à Quinta Nova, para
assistir ás vindimas, para lá mesmo levei alguns volumes da legislação
antiga, em que tinha copiadas varias das nossas Cortes; e no lagar, ao som da
gritaria dos lagareiros, compus uma longa e erudita Memoria em que se mostra
qual é a forma de Governo monárquico mais apropriada ás Instituições
antigas de Portugal e mais digna de se adoptar nas nossas actuais
circunstancias. Esta Memoria foi depois retocada e posta a limpo, em Lisboa,
antes do fim de Outubro, mas, prevendo bem que com ela havia perdido o meu
tempo, assentei em não a mostrar ao Marquês nem a outra pessoa, e limitei-me a
deixar-lhe dito em sua casa que me tinha ido apresentar a Sua Exa. depois de me
recolher de Torres. Da Memória,
que se acha entre os meus manuscritos, não tornarei a falar, porque nem o Marquês
me tornou mais a perguntar por ela nem eu o tornei a encontrar, tendo-se
descontinuado inteiramente os trabalhos da Junta, que nunca mais se tornou a
reunir senão no fim desse ano, nem se havia reunido depois que a Comissão dos
três apresentou a Carta já redigida. Entretanto
ninguém tinha já esperanças de que o projecto da publicação da Carta
tivesse êxito algum. Sabia-se que a acção do Governo, a este e outros
respeitos, estava paralisada pelos esforços daqueles que, de dentro e de fora
de Portugal, trabalhavam pela conservação do Governo absoluto e pela aniquilação
de todo o bem e mal que as Cortes haviam feito, só por elas serem os seus
autores. Alem disto, dois dos membros da Junta, que tinham sempre votado a favor
do Governo representativo, foram despachados para fora de Portugal, a saber: D.
Manuel de Portugal para o Governo da Madeira, e o General Stockler para o dos Açores.
Ultimamente nem El-Rei, nem aqueles dos seus Ministros com quem ás vezes
falava, me diziam coisa alguma relativa aos trabalhos da Junta: assim, quem
poderia esperar deles algum êxito? (...) Já eu não
pensava na Junta encarregada de formar o projecto da Carta de Lei fundamental,
quando, no dia 13 de Dezembro, recebi ordem para concorrer no dia 16 a uma nova
conferencia. Como também estava avisado para ir na mesma manhã a casa do
Ministro de Estado, Joaquim Pedro Gomes de Oliveira, tive ocasião de saber da
boca deste Ministro que o fim para que éramos chamados à Junta consistia em
pretender o Governo extingui-la, exigindo que a própria Junta requeresse a sua
extinção e dissesse a El-Rei que convinha deixar de publicar a Carta de Lei
fundamental. Não posso explicar a indignação que o empenho dos Ministros me
causou, e já dali saí muito indisposto para o Palácio do Rossio. Quando lá
cheguei, comuniquei a alguns dos meus colegas o motivo da convocação que eles
ignoravam; mas bem depressa chegou o Marquês de Palmela, que, balbuciando um
atrapalhado discurso, concluiu com a mesma proposta que eu já tinha ouvido ao
Ministro do Reino. Uns
anuiriam facilmente a esta pretensão, porque era conforme ás ideias que eles
sempre tinham manifestado; outros não quiseram anuir, e eu, que de longo tempo
conhecia o carácter pouco firme do Marquês e que muito me havia enjoado
daquele discurso, principalmente por ser proferido por ele, disse, com resolução
e firmeza, que nada era para mim mais indiferente do que pretender o Governo dar
ou não dar uma Carta de Lei, e que, como Sua Majestade me não pedira conselho
a este respeito, não me pertencia dizer-lhe se era conforme à politica e à
justiça dá-la ou não a dar; que, igualmente, não podia decidir se as
circunstâncias domésticas e estranhas exigiam que se renunciasse a este
projecto, o que só pertencia ao Governo saber, e em nós seria ridículo
alegar; que eu fora chamado, com os meus companheiros, para fazer a Carta de
Lei, e, se o Governo a não queria já, nada mais fácil do que dizer-nos que a
não fizéssemos. O que
diria qualquer de nós (acrescentava eu) dum alfaiate, a quem, mandando-se fazer
um capote, dissesse, depois de muito tempo, que o não fizera, porque achava
melhor que se passasse sem ele? Que, se a resolução de não se publicar a
Carta fosse dada a pedido da Junta, ninguém deixaria de dizer que este pedido
fora influído pelo Governo; e então, longe do Governo se cobrir connosco, era
ele que pretendia desacreditar-nos, e connosco mais se desacreditava; que,
finalmente, eu não duvidaria, se as circunstancias assim o exigiam, reduzir a
lei já feita aos mais simples elementos e a poucos artigos, conformes, quanto
pudessem ser, ao nosso antigo Direito Publico, e despidos dos termos e frases
adoptadas nas modernas Constituições; mas que não se conseguiria de mim
aconselhar a El-Rei a que não desse absolutamente Carta alguma, sem Ele me
ter pedido sobre isso conselho. Este
discurso, aqui resumido, que foi assaz longo e nervoso, produziu bastante sensação
nalguns dos meus colegas, e admiração em todos. O Marquês teve a bondade de
se não dar por escandalizado do que eu proferi com demasiada vivacidade, e
disse que sempre faria muita justiça aos meus talentos, mas que as
circunstancias actuais do Estado eram tais, que não se devia já cogitar nem em
Carta nem em simulacro dela, e concluiu que desejava muito que a Junta desse a tão
apertado negocio alguma saída. Então o
Arcebispo de Évora, hoje Cardeal Patriarca, tomando a palavra, fez um longo
arrazoado (que ainda hoje não. sei se pelo Ministro lhe fora encomendado), no
qual pretendeu provar que o Decreto da criação da Junta não mandara fazer uma
Carta de Lei, que as suas expressões eram equivocas, e que ele ficaria
plenamente executado, se El-Rei prometesse, por uma Lei, a convocação das
antigas Cortes da Monarquia, quando assim o julgasse conveniente. Este
discurso produziu, ou pareceu produzir, a mais agradável sensação no ânimo
do Marquês Presidente; a maior parte dos vogais aplaudiram-no e, posto o
negocio a votos, venceu-se, contra cinco, que daquela maneira se consultasse a
Sua Majestade, ficando o Arcebispo encarregado de fazer a minuta da consulta,
que devia apresentar no dia 2 de Janeiro do ano seguinte de 1824, e podendo cada
um dos vogais dissidentes trazer o seu voto por escrito para se lançar na
consulta. No dia
aprazado não se fez mais que ler a extensa minuta da consulta que a pluralidade
dos membros da Junta aprovou; seguiu-se, depois, a leitura dos votos separados,
que eram o meu e os de Ricardo Raimundo, José Maria Dantas, João de Sousa
Pinto de Magalhães e José Joaquim Rodrigues de Bastos, e, como todos eram
conformes no sentido, pareceu-nos adoptar, por ser mais breve, o do ultimo,
concebido nestas palavras: «Aos vogais F. F. pareceu deverem-se limitar a pedir
com toda a submissão que Vossa Majestade haja por bem, atendida a discrepância
de votos acerca de pontos fundamentais, ou mandar declarar mais explicitamente
as bases em que deverá ser fundado o prosseguimento dos trabalhos da Junta, ou
fazer-lhe saber se deve esperar por esta declaração, dada quando Vossa
Majestade julgar que as circunstancias são mais convenientes à execução do
mesmo prosseguimento.» Separaram-se
logo os membros da Junta com bem pouca satisfação, e os cinco, que tinham
assinado o voto separado, com algum cuidado sobre o resultado que poderia ter a
sua dissidência: contudo o Governo não se mostrou formalizado com eles:
Ricardo Raimundo e José Maria Dantas conservaram os seus empregos, e o Marquês
de Palmela, querendo-se mostrar generoso, auxiliou poderosamente a pretensão de
Pinto de Magalhães e de Bastos, o primeiro dos quais foi nomeado oficial da
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, e o segundo Corregedor do Porto. Eu
nada pretendi e nada me deram; e pouco depois perdi o que tinha e o que devia
ter, sem que possa decidir se aquele meu voto influiu directamente nesta perda. | ||
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