A Revolução de 1383 - 1385 segundo António Sérgio (1).

 

António Sérgio defende que o que Fernão Lopes descreve na Crónica de D. João I é a luta de classes, causada pela Peste Negra de 1348, e que por isso a crise de 1383-1385 deve ser considerada uma «revolução burguesa».

 

Prefácio à Crónica de D. João I de Fernão Lopes.

Fernão Lopes, na Crónica de D. Fernando, transmite aos leitores a impressão que tinha de que após as guerras daquele monarca «nasceu outro mundo novo, muito contrário ao primeiro, passados os folgados anos do tempo que reinou seu pai» (cap. I) ; e na crónica do rei seguinte aventa a ideia de que uma nova idade se começou no tempo do Mestre de Avis (cap. CLXIII). O que mais se lhe impõe no primeiro período é a crise económico-social (cujos primórdios, ao que me quer parecer, passaram despercebidos ao seu espírito, só a notando na última fase - na da plena manifestação dos efeitos dela para os homens da corte e das cidades marítimas); e no segundo, a subida ao nível social superior de «uma nova geração de gentes». «Porque » (acrescenta o cronista) «filhos de homens de tão baixa condição que não cumpre de dizer, por seu bom serviço e trabalho neste tempo foram feitos cavaleiros, chamando‑se logo de novas linhagens e apelidos; outros se apegaram às antigas fidalguias, de que já não era memória, de guisa que, por dignidades e honras e ofícios do reino, em que os este Senhor, sendo Mestre e depois que foi Rei, pôs, montataram tanto ao diante que seus descendentes hoje em dia se chamam dões e são teúdos em grande conta » (cap. CLXIII, Da sétima idade que se começou no temo do Mestre).

Ora, a admitir-se a hipótese que me ocorreu, a transformação observada por Fernão Lopes nos últimos tempos de que nos dá relato manifesta‑nos o agravamento e a explosão de uma crise que já havia principiado pelo meio do século: crise que a cheúra do erário real, a ostentação desordenada dos novos-ricos (subitamente abastados por acumulação de heranças) e a prosperidade da burguesia do comércio externo, cosmopolita e marítima (a grande burguesia de Lisboa e do Porto) ocultava aos olhos dos litorâneos.

Quanto a nós, a situação social que tornou possíveis as cenas que se passaram no interior do país e que se descrevem na Crónica de D. João I é a da luta de classes e abalo económico causados pela « mortandade » de ' 48 - a « grande pestenença », como se lhe chamou também. A uma banda, aparece-nos a turba do povinho miúdo, que fora alvoroçada e impelida à contenda pelo acúmulo de heranças que se originou da moléstia; à outra, os aristocratas senhores rurais e a classe média dos « homens-bons » (os « donos das herdades e lavradores »), que, vendo-se falta de serviçais, havia pretendido obrigar os mais pobres a regressarem à situação que precedera a peste, com os salários que vigoravam anteriormente a ela. Este embate de interesses - esta dissensão entre classes - transformou-se finalmente em contendas de morte quando os armadores e mercantes de Lisboa e do Porto (os altos burgueses do comércio marítimo, superiores por natureza a tal crise de braços, que afligia somente o burguês pequeno) se decidiu a desencadear a insurreição política e a assumir a chefia dos negócios públicos, assoldadando para isso alguns homens de algo e incitando o povinho a passar aos actos, -pelo que se entrou finalmente em revolução patente: revolução dirigida, organizada, politicamente aproveitada pelo Burguês dos portos, à sombra dos direitos do Mestre de Avis, que o Comerciante sustentava com razões e com guerra.

Em resumo (e se não estou em erro) quatro factores sobressaem na metamorfose social que deu tema à Crónica de D. João I:

1.º A luta de classe do Servidor e do Artífice, por um lado, contra o Senhor Aristocrata e o Pequeno Burguês (a palavra « burguês » , como quem lê está notando, vai aqui com o significado e com a extensão que tem hoje), luta que se originou do amontoar de heranças consecutivo aos falecimentos pela peste grande e apoiou com uma briga social-económica (a da classe dos operários com a dos « homens-bons » dos concelhos, que alinhavam ao lado dos aristocratas) a revolução dirigida pelos comerciantes dos portos contra a hegemonia política da fidalguia;

2.º A audaciosa abertura da guerra civil pelo Alto Burguês do comércio marítimo, que inicia e dirige o ataque armado ao regime político senhorial, representado pela rainha, pelo rei de Castela e pela gente nobre, cujo cabecilha é o Andeiro e a quem a classe média acompanha;

3.º A introdução da táctica que mais bem se adequava às forças do partido da burguesia, táctica de que Nun'Álvares se serviu a primor, sabendo combiná-la de maneira habilíssima com as formas de terreno em que rendia o máximo;

4.º A iniciação efectiva no direito romano, muito mais condicente com a hegemonia burguesa (quero eu dizer: que mais bem se coadunava com a direcção do Estado pela mentalidade característica do alto burguês dos portos, com o predomínio da economia comercial-marítima, que tão intenso se tornou no nosso viver posterior) do que o direito senhorial e propriamente medievo.

Tal é (com razão ou sem ela) a hipótese que proponho para a interpretação dos fenómenos: e se não está muito errada, justifica-se o título de « revolução burguesa » (da alta burguesia, claríssimo está, em oposição à nobreza e ao pequeno burguês «homem-bom») que tenho dado a essa crise de 1383-85, tão airosamente descrita por Fernão Lopes.

 

Fonte:
António Sérgio,
«Prefácio»,
in Crónica de D. João I, segundo o códice n.º 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Lisboa, Livraria Civilização, «Biblioteca Histórica - Série Régia», 1983 (1.ª ed., ...)
páginas XXXIII a XXXV.

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