A Revolução de 1383 - 1385 segundo José Mattoso.

 

Para José Mattoso a polémica sobre a crise de 1383 a 1385 impediu «averiguar  o que efectivamente se passou», devido aos objectivos políticos imediatos dos participantes na polémica. Primeiro dos opositores ao regime nascido do golpe militar de 28 de Maio de 1928, salientando as oposições, depois dos defensores do regime, defendendo a harmonia social. É com base em investigações da Professora Maria José Pimenta Ferro Tavares, que José Mattoso concluirá pela inexistência da luta de classes marxista, nem da harmonia social corporativista, mas pela existência de conflitos sociais abertos que não eram de qualquer maneira capazes de explicar a crise revolucionária. A resposta de José Mattoso virá em 1985.

 

LUTAS DE CLASSES ?

Os contrastes verificados na descrição das estruturas sociais no capítulo anterior [«O contraste entre a cidade e o campo»] mostravam já toda uma série de pontos de fricção entre grupos sociais, de oposições de interesses, de domínio pela economia, pela força ou pelo direito da parte de uns e de submissão passiva ou revoltada de outros. O contraste mais evidente, mais determinante do funcionamento das estruturas, verifica-se entre a cidade e o campo. Este, como é óbvio, não pode evoluir para o conflito aberto, para a revolta dos camponeses contra as cidades, porque o domínio destas se faz por meio da subtil mutação do funcionamento dos sistemas de produção, de circulação e de consumo e porque as cidades aparecem aos olhos dos camponeses com a promessa de uma melhoria das condições de vida e de trabalho, apesar da exploração a que elas os submetem. Mas a posse dos instrumentos de produção; e simplesmente do poder e da riqueza, que garante melhores condições de vida aos mercadores e nobres e leva a penúria aos trabalhadores da terra, aos artífices e a alguns intermediários, cria situações de conflito, umas vezes latente, outras aberto. É aquilo a que se pode chamar o começo da luta de classes, embora esta se processe em termos e condições bem diferentes das que caracterizam o mesmo conflito no mundo capitalista. As lutas entre a burguesia e a nobreza inspiraram já as páginas de Jaime Cortesão e de António Sérgio sobre o fim da Idade Média portuguesa; as que opuseram os camponeses e o proletariado urbano aos detentores dos meios de produção foram acentuadas em obras bem conhecidas de Álvaro Cunhal, de António Borges Coelho e de Armando Castro. O que aparecia demasiado influenciado por esquemas teóricos em todos estes autores, mas sobretudo nos marxistas, ao ponto de se descrever como surpreendente revolução do trabalho contra o capital, ou melhor, como aplicação exemplar dos mecanismos da economia política marxista, levará a tentativas de demonstração oposta, bem tímidas por sinal, da parte da historiografia oficial durante os anos 40 a 60. Estas tentativas propunham-se acentuar a complementaridade harmónica das forças sociais, a arbitragem vigilante e equitativa do rei, a firmeza da autoridade estatal centralizadora e progressista, precursora de um Estado Novo pacificador das tensões sociais, sapiente condutor do povo em direcção à prosperidade material e prudente preservador das suas tradições ancestrais e valores morais. O sucesso político dos governantes de outrora, sobretudo os da Idade Média, faziam de Portugal uma excepção no panorama retalhado de lutas fratricidas e de turbulências feudais, permitidas por reis impotentes na repressão dos privilegiados.

Os objectivos políticos imediatos das escolas interpretativas dos conflitos sociais no nosso país paralisaram a investigação objectiva, impediram de averiguar o que efectivamente se passou, descoberto por comparação com as hipóteses interpretativas do materialismo dialéctico ou com as do idealismo político. Apesar das tentativas, quase sempre apressadas, de muitos principiantes durante os últimos anos, a questão permanece razoavelmente obscura. Não será, certamente, nesta obra que se resolverá, dada a falta de análises aprofundadas sobre questões fundamentais. Aqui apenas poderão apresentar-se alguns dados dispersos que afloram aqui e além, entre os estudos e a documentação já publicados, e traçar umas quantas considerações gerais que parecem condicionar a investigação futura e provavelmente limitam as soluções possíveis.

(...)

Os conflitos abertos

O levantamento mais exacto e objectivo de conflitos abertos durante o século XIV deve-se a Maria José Ferro [Tavares] e abrange o reinado de D. Fernando, isto é, o período que vai de 1367 a 1383. Aproveitando todas as referências a confiscações de bens e castigos de «uniões» populares, encontra-se, na verdade, uma quantidade considerável de factos que manifestam ambiente propicio à revolta e a conflitos violentos. Uma parte das sentenças régias caem sobre indivíduos acusados de terem colaborado com os Castelhanos em tempo de guerra. Mesmo se excluirmos estes actos, cuja interpretação social não é segura, encontramos ainda um bom número de casos que podem ser interpretados seguramente como revoltas, embora não seja fácil medir exactamente a sua extensão.

A mais conhecida é, evidentemente, a de Fernão Vasques, o célebre alfaiate de Lisboa que levantou voz contra o casamento do rei em 1371. À primeira vista, o motivo é um acto da vida privada do monarca; mas tendo os protestos surgido em Lisboa, Santarém, Alenquer, Tomar, Abrantes e outros lugares, como diz Fernão Lopes, tendo-se juntado até 3000 mesteirais, besteiros e homens de pé e considerando finalmente que «muito nom prazia a todollos fidallgos e privados d'el rei deste ajuntamento que o poboo fazia», não pode deixar de se conceber o motivo como mero pretexto e de se atribuir ao movimento uma amplidão que só pode indicar o seu carácter social. De resto, o movimento arrasta-se e até se agrava. Entre 1373 e 1379 encontramos a menção expressa de várias «uniões» (é o termo usado pelos documentos) contra o rei. No primeiro daqueles anos são punidos dois ourives, um mercador, um ex-escrivão dos judeus, um faqueiro, dois carpinteiros e um correeiro de Lisboa, indivíduos de profissão desconhecida em Abrantes, Tomar e Leiria (dois), e catorze revoltosos em Santarém, entre os quais um tabelião, um estalajadeiro e sete sapateiros. Depois documentam-se novas «uniões», designadamente uma em Portel em 1374, outra em Montemor-o-Velho em 1375 e finalmente em Sousel, Valença e Tomar em 1379. Dado que a maioria dos culpados cujas profissões são conhecidas exercem trabalhos artesanais, compreende-se que a autora chame ao seu estudo A Revolta dos Mesteirais.

As uniões deviam dirigir-se mais contra o grupo de nobres que, pelo menos desde o casamento do rei com Leonor Teles, dominava a corte do que propriamente contra o monarca. Personificavam neles os malefícios que assolavam o Reino e oprimiam o povo. Os Teles e os seus protegidos, com o favoritismo (descrito por Fernão Lopes com acinte) que ameaçava desviar em favor deles toda a espécie de recursos, provocavam não só a oposição dos mesteirais, que tentavam verdadeiras revoltas organizadas, como demonstra a palavra «união», as quais se estendiam, espontânea ou concertadamente, a várias cidades do centro do País, mas também dos procuradores dos concelhos que reclamavam contra as abusivas doações do rei e a concessão de jurisdição sobre os concelhos, o que fazia protestar também outros nobres que eram preteridos ou afastados do poder. Dai a revolta aberta de João Lourenço da Cunha em 1379, de Diogo Lopes Pacheco em 1380, do infante D. João em 1383 e logo a seguir dos dois irmãos João Nunes e Pêro Nunes de Aguiar, quer dizer, de membros das mais poderosas famílias do Reino. Acrescente-se a atitude crítica de alguns Pereiras, certamente dos mais jovens, e ver-se-á como a oposição vai alastrando sem cessar e dificilmente poderia deixar de eclodir quando a regência foi entregue a D. Leonor.

Estes dados do problema mostram como devia ser provocatória, numa época de grave crise económica e de contradições sociais, a concentração dos postos políticos mais importantes nas mãos de um grupo restrito e ganancioso. O reinado de D. Fernando., no entanto, não se resume ao abandono a esta facção. Tomou também decisões de grande projecção, mostrou-se capaz de organizar empreendimentos que requeriam tanto investimento material e humano como a construção das muralhas de Lisboa e de outras povoações, deu apoio à bolsa de seguro dos comerciantes marítimos de Lisboa e Porto, revogou alguns dos privilégios concedidos aos nobres em 1371, reduziu a jurisdição senhorial nos casos de crime, aumentou a frota marítima, protegeu os armadores nacionais, promulgou a Lei das Sesmarias e praticou outros actos que só podiam ser inspirados por conselheiros não nobres. O rei via-se, assim, entre duas tendências, e oscilava de uma para outra sem conseguir desenvolver uma política coerente.

O agravamento da revolta contra o partido dos Teles e a intervenção das camadas inferiores da população nos movimentos insurreccionais faziam prever a participação maciça da arraia-miúda na revolução de 1383. Os levantamentos deram-se em muitas povoações alentejanas, nomeadamente em Portalegre, Elvas, Estremoz, Évora, Beja, Odemira e Montemor-o-Novo, além de se terem verificado também em Lisboa e no Porto. Noutras localidades é ainda a plebe que obriga as guarnições dos castelos a negarem obediência à rainha, como acontece em Óbidos, Santarém, Alenquer, Vila Viçosa, Mértola e Braga. Estes factos são importantes para se poder deduzir a importância das forças populares nos conflitos abertos contra os detentores do poder, no momento em que a revolução alastra por todo o país. É evidente, porém, que ela não se pode reduzir a um problema de luta de classes. A arraia-miúda raramente tenta organizar-se para conservar o poder ou subverter a ordem social. Basta-lhe expulsar ou linchar os simpatizantes do grupo que antes dominava o rei ou aqueles que simbolizavam a opressão a nível local. Basta-lhe, a seguir, impedir o regresso da mesma facção, protegida agora por Castela e apoiada pelos nobres exilados. Basta-lhe, no caso de Lisboa, conseguir a intervenção dos mesteres nas principais deliberações respeitantes ao governo da cidade.

Os conflitos abertos têm, portanto, aspectos que não podem deixar de se relacionar com a disparidade social e a oposição de interesses entre os detentores do poder ou dos meios de produção e os explorados, mas dificilmente se poderá compreender a complexidade da revolução sem o recurso a factores de outra ordem.

Fonte:
José Mattoso,
«Lutas de Classes?» in
José Hermano Saraiva (dir.), História de Portugal, Volume 3,
Lisboa, Publicações Alfa, 1983,
páginas 193 a 199.

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