A Revolução de 1383 - 1385 segundo Oliveira Martins.

 

Para Oliveira Martins a revolução de 1383 - 1385 é uma crise provocada pelo desabrochar do sentimento nacional, a que chama o terminar da história da independência. 

Mas também, «parece ter, para a vida nacional portuguesa, a importância que a natureza dá às crises que determinam a passagem de uns para os outros dos seus tipos orgânicos». É uma mutação, diremos hoje em dia. Ou, do ponto de vista político e social, uma revolução.

 

Livro Segundo: História da Independência
(Dinastia de Borgonha: 1109 - 1385)
Capítulo IV - A Crise



A revolução de 1383-1385 tem um carácter de um Juízo de Deus. A dinastia mentira ao papel justiceiro: morra pro ello! Por uma série de extravagâncias domésticas e políticas, D. Fernando levara a uma crise a obra lenta e demorada da independência nacional, iniciada com uma espada por Afonso Henriques, assegurada com um açoite por Pedro o Cru. É verdade que não deixara de fomentar a consistência material interna do corpo da nação; mas de que valia isso, pois a deixava outra vez a braços com o problema vital da sucessão, o problema da independência?

Logo que o rei morreu, os diferentes actores da tragédia começaram a tomar os seus lugares na cena.

O castelhano imediatamente encarcera em Toledo o Infante João, o mais perigoso dos seus émulos por direito de herança, mas perdido perante o povo pela nódoa do ataque a Lisboa, na esquadra inimiga.

A rainha viúva, julgando o momento oportuno para conquistar simpatias, representa uma cena de prantos. Abandonara por um instante a sua política de vingança, agora que tudo podia perder, se a não escudassem o respeito ou o amor dos seus. Ela não queria entregar o reino a Castela: queria que a filha fosse aclamada rainha, e ela, como regente, rei de facto. Talvez pensasse em casar-se com o Andeiro, a quem parece amava do coração: seria esse o castigo fatal dos seus crimes, por ser a causa da sua perdição?

Como a rainha sabia a ruim opinião que havia a seu respeito, 

fingia-se mui desconsolada e chorava em grandes prantos. Em uma câmara escura, coberta de dó, com lágrimas e soluços - que às mulheres não faltam quando lhes servem - se lamentava, com as visitas, do seu desamparo, queixando-se do governo que o rei dera ao reino, agora pobre e infeliz. (Fernão Lopes.)

Na sua dor, na boa vontade que tem de servir a nação (para que ela a não a expulse do trono), está por tudo. Com efeito, a morte do marido punha-a à mercê da vontade do povo. Era em tudo obedecida, assim dos povos como dos grandes; mas bem via que essa obediência nada tinha de pessoal, porque ninguém a amava, nem a respeitava. De um momento para outro podia perder tudo. Os de Lisboa queriam que se constituísse um conselho de governo composto de dois homens bons de cada comarca: anuiu a essa tutela. Quando fora a aclamação da rainha D. Beatriz, mulher do castelhano, observara os tumultos gerais e os votos desencontrados das cidades. Em Lisboa, a aclamação provocara rixas e conflitos; muita gente era pelo infante D. João ou pelo infante D. Dinis, que andavam por Castela; outros gritavam: Arreal, arreal cujo for o reino, levá-lo-á! Em Santarém, o infante D. João foi positivamente aclamado. Elvas, para não se decidir, no meio de tanta confusão, gritou: Arreal, arreal, por Portugal!

Esse era efectivamente o grito da Nação: por Portugal! Ninguém se recomendava bastante, no ânimo do povo, para merecer uma coroa disponível, para se sentar num trono vago. O que Portugal não queria era que nesse trono viesse sentar-se o castelhano. A rainha não o queria tão pouco; e era toda esforços para ganhar a si o povo, para herdar de facto o reino. Organizada a regência, pensou desde logo na guerra; porque o rei de Castela já se preparava para vir ocupar Portugal. Nomeou os fronteiros do reino, e deu ao mestre de Avis a zona de entre Tejo e Guadiana.

Havia porém dois homens que, no fundo, protestavam Nuno Alvares e Álvaro Pais. O primeiro é a mais nobre, a mais bela figura que a Idade Média portuguesa nos deixou. O tipo cristalizado nos romances, o tipo de cavalheirismo e da pureza, tinha encarnado na pessoa do futuro condestável.

Usava muito de ouvir e ler livros de histórias, e especialmente usava mais ler a história de Galaaz, em que se continha a soma da távola redonda.
Tinha a nobreza ideal do cavaleiro, e a castidade de um místico. Era uma açucena na alma, e um leão na bravura e na generosidade. Resistira por muito tempo ao pai que o queria casar, porque não curava de mulheres, nem isso lhe alegrava o coração. Por tudo isto, a infâmia da rainha abraçada ao amante, e as lágrimas fingidas pelo marido, coravam-lhe as faces de pejo e enchiam-no de indignação. Nunca a obra indispensável de salvar Portugal podia levar-se a cabo com tal mulher: Deus não consente aos impuros os grandes actos. "Um dia, passeando só no paço, a cuidar no que havia de ser do reino", ocorreu-lhe a ideia de que só a morte de Andeiro podia pôr termo às desgraças públicas.

O cavaleiro tinha então vinte e quatro anos; e esse rapaz, tipo ingénuo e puro de virtude, é a imagem de uma nação, também jovem, e ainda crente num futuro próximo. À indignação da candidez forte junta-se a sabedoria fria e o cálculo experiente de Álvaro Pais, padrasto do futuro grão-doutor. Tudo se conspirava para matar o Andeiro, para perder a rainha. Era verdadeiramente o juízo de Deus, cuja sentença, logo que fosse pública, seria aclamada pela nação inteira. Isto assegurava ao mestre de Avis Álvaro Pais em Lisboa. Falava por sua boca a cidade que Leonor Teles tanto odiava, e que tamanhos medos tinha da rainha. Pensaria já o autor do plano do dia 6 de Dezembro (1383) na fundação de uma nova dinastia? Queria acaso matar apenas o valido para aterrorizar a rainha; e entregá-la, assim, manietada, ao poder de uma oligarquia urbana, em que Lisboa se arrogasse o papel de defensora do reino, tendo à frente de um conselho de governo, com a regente vilipendiada e coacta, o mestre, homem simples, por instrumento e chefe? Era um plano atrevido, mas mais de uma vez posto em prática por diversas cidades opulentas da Espanha. Não contava, porém, Álvaro Pais, nem com a arte que os anos desenvolveram no mestre; nem com o generoso e nobre carácter de Nuno Álvares; nem com a força invencível dos futuros textos e doutrinas do grão-doutor João das Regras. 

Combinado o programa do dia 6, Álvaro Pais abraçou e beijou o mestre. Nesse dia foi este ao paço despedir-se da rainha: para a sua fronteira do Alentejo. Momentos depois voltou acompanhado por alguns fidalgos dos seus. A rainha, surpreendida, interrogou-o. A fronteira era muito grossa, levava pouca gente, os arrolamentos estavam errados, queria examiná-los...

Leonor Teles estava então na sua câmara, sentada no meio das suas damas, costurando, sobre o estrado. De joelhos, aos pés da rainha, o Andeiro, de corpo bem disposto, lustroso, viril (quarenta anos), vestindo, apesar do luto, um gibão de cetim carmesim e um tabardo de pano preto, sem o burel branco do estilo, falava manso com ela. Era um quadro de família, e tudo parecia sereno, menos o tom e o aspecto do mestre e dos seus, de pé, carrancudos e indecisos, como quem tem na mente um crime.

A rainha, inquieta, mas simulando indiferença e sangue-frio, chamou o escrivão da puridade e mandou abrir o livro dos vassalos da comarca: escolhesse o mestre os que quisesse. O escrivão, de pé, com o livro aberto, ia lendo, indiferentemente item, Dom... etc., mas o mestre não lhe prestava grande atenção. Uns perante outros, os personagens da tragédia adivinhavam-se, mas não se confessavam. Só, porventura, o escrivão, no seu tabardo negro, com a voz monótona, era sincero. Andeiro levantou-se, saiu a outra sala, a avisar os seus sequazes; o que o mestre vendo, receou perder-se, ou que o ensejo lhe fugisse. Levou-o consigo para fora. A rainha, no meio das suas damas, sobre o estrado, costurava. O momento agudo da crise chegara: era mister consumar o acto. O mestre empurra então o conde para o vão de uma janela. Ele ia a falar... "sendo, porém, mais tempo de o matar, do que de o ouvir", deu-lhe uma cutilada na cabeça, a valer. Desarmado, o infeliz não podia defender-se; e assim que inclinou a cabeça rachada pelo meio, a gente do mestre acabou-o ali às estocadas. Foi uma façanha inteiramente combinada, bárbara e cobardemente executada. Nuno Álvares, quando a mesma solução lhe ocorrera, pensou decerto num plano diverso.

Consumado o assassinato, pôs-se em cena a comédia do contra-regra, Álvaro Pais. Foi mandado um pajem a gritar pelas ruas que acudissem ao mestre, que o matavam no paço. Entretanto, dentro dele, era grande o alvoroço. Uns fugiam pelas janelas, outros pelos telhados: todos corriam como doidos, cheios de susto, e se acotevelavam nos corredores e entre as portas. A rainha levantou-se, ao ouvir que lhe tinham matado o amante, rugiu de cólera, como a fera a quem roubam os filhos: era a sua cruel fraqueza! Viu também a sua vida em perigo, e porventura nesse momento desejou a morte. Animosa, mandou perguntar ao mestre, que num eirado do palácio, à vontade, descansava das comoções violentas, se também a queria matar. Ele voltou, respeitosamente, que não. Era um homem simples, costumado a ver em Leonor Teles a mulher do rei; e por isso, além de ser muito novo (vinte e seis anos), não se atrevia a tanto. Era fogoso, brutal, e de instintos pesados: um instrumento capaz de executar os planos manhosos de Álvaro Pais, pronto para tudo, porque não distinguia bem a linha que separa a nobreza da vilania - como, de resto, sucedia a quase todos os homens de armas da Idade Média. Foram a revolução, os companheiros e depois a mulher, quem fez dele na idade madura um sábio rei.

Na rua, Álvaro Pais vinha a cavalo (por excepção rara, que era velho já e pesado) à frente da procissão de energúmenos, bradando por desvairadas maneiras. A plebe, investindo com palácio, quebrava os cancelos de ferro, trazia escadas para o assalto e montes de lenha para queimar tudo. Era uma algazarra incrível de impropérios e nomes desonestos, dirigidos à rainha. Já de dentro havia medo que o fogo pegasse, e que o fim da tragédia fosse um incêndio justiceiro. Extenuavam-se a gritar que o mestre estava vivo, Andeiro morto; mas ninguém tinha ouvidos no meio do clamor da turba. Por fim, o mestre de Avis apareceu a uma janela e foi vitoriado: "Vinde para nós", gritavam-lhe, "e dai ao demo esses paços!" Ali mesmo, ao pé do palácio, ficava a Sé. Era necessário solenizar a festa com os repiques dos sinos, conforme a plebe o ordenava; mas os padres, recolhidos no alto da torre, não sabiam o que queriam deles; e por esse crime foram precipitados à rua o bispo e mais dois; e os cadáveres, arrastados ao Rossio, ali ficaram para pasto dos cães.

Também o mestre já sentia fome, depois de tamanho dia. Foi com Álvaro Pais comer sossegadamente. O homem cumprira o que tinha prometido; e, à mesa, na satisfação da vitória, instruiu o rapaz sobre o que lhe restava fazer: pedir perdão à rainha, depois de jantar. Quem sabe? dir-lhe-ia ele, mastigando, mais tarde... casar com ela... E o mestre, bastardo, pobre, ambicioso e simples, via abrirem-se-lhe horizontes sedutores.

Com efeito, depois de jantar, o mestre de Avis foi ao paço e, de joelhos, pediu perdão à rainha. Tamanha simplez encheu-a a ela de espanto. Estava calada, não sabia que responder, e como o pobre insistia, ela, afinal com desdém, voltou-lhe: "Falemos de outras coisas..." O mestre saia desorientado e corrido, atrás dele as suas guardas, quando a rainha, seguindo-os, deu de chofre  com o cadáver do conde empoçado em sangue e coberto com um tapete velho. Não pôde mais conter-se; e o seu ânimo, perdido, rebentou em duras queixas: "Enterrai-o ao menos, já que o matastes tão desonradamente!" Eles não curaram disso, nem se doeram do advérbio da rainha, e foram para as suas pousadas. Era tempo perdido.


Fonte:
Oliveira Martins,
História de Portugal,
8.ª Ed., Guimarães, «Obras Completas de Oliveira Martins», 1976,
(1.ª Ed., 1881),
páginas 

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