A Crónica de Fernão Lopes segundo Oliveira Marques.

 

Para Oliveira Marques Fernão Lopes é um dos maiores escritores de todos os tempos. «Mas os relatos dos principais acontecimentos partidários e a caracterização das mais importantes figuras não podem ser tomados como a verdade intocável que a grande massa dos historiadores portugueses lhes têm conferido.»

(...)

A Obra

Antes de 1434 o infante D. Duarte encarregou Fernão Lopes de uma dupla tarefa: 1.ª escrever as crónicas dos reis de Portugal até D. Fernando («poer em crónica as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram»); 2.11 Escrever a crónica do monarca reinante, D. João I («isso mesmo os grandes feitos e altos do mui virtuoso e de grandes. virtudes El-Rei meu senhor e padre»). Para essa missão dispunha Fernão Lopes ao seu alcance, além de todo o vasto material arquivístico da Torre do Tombo – é lícito supor que existissem todos os livros de chancelaria desde Afonso II –, de memórias já compiladas dos reinados anteriores a D. Pedro. Não admira, portanto, que tivesse começado pela elaboração das crónicas que requeriam trabalho mais integralmente original. E conseguiu redigir, de facto, as de D. Pedro, D. Fernando e D. João I (1.ª e 2.ª partes). A tarefa foi morosa, pelas preocupações de veracidade que o norteavam («mas mentira em este volume é muito afastada da nossa vontade») e pela deficiência de notícias portuguesas que lhe pudessem servir de apoio: Fernão Lopes utilizou crónicas estrangeiras – Ayala principalmente (vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens e terras) – e algumas crónicas parcelares portuguesas hoje perdidas – de Martim Afonso de Melo; do Dr. Cristóvão –, ouviu testemunhos de contemporâneos dos acontecimentos relatados e – resultado da sua formação notarial e da profissão que desempenhava – serviu-se abundantemente de documentos avulsos, quer colhidos nos livros de chancelaria e noutros textos da Torre do Tombo, quer obtidos algures em arquivos do País («vimos [... ] públicas escrituras, de muitos cartórios e outros. lugares»; «Por cuja razão o dito Fernão Lopes despendeu muito tempo em andar per os mosteiros e igrejas buscando os cartórios e os letreiros delas pera haver sua informação»), e deslocou-se em pessoa a vários pontos do Reino onde tivessem ocorrido factos importantes ou vivessem testemunhas idóneas («E assim foi necessário ao dito Fernão Lopes de andar per tôdalas partes do Reino pera haver comprida informação do que havia de começar.»). Parece ter redigido primeiramente as crónicas de D. Pedro e de D. Fernando e passado depois à de D. João I, que não pôde concluir, «assim pela grandeza da obra [...] como pelos avisamentos delo serem caros e maus de apanhar, e isto porque a dita história foi começada tão tarde que muitas das pessoas que verdadeiramente sabiam eram já partidas deste mundo [... ] ». Sabemos que trabalhava na 1ª parte em 1443 e que escreveu ainda a 2.ª parte. É possível que tenha iniciado a 3.ª parte (por certo recolheu para ela muitos, elementos), mas foi já Zurara quem lhe deu o estilo e a elaborou de todo. Quanto às crónicas anteriores a D. Pedro, subsiste o problema e o debate da sua autoria. A forma de tratamento, a linguagem e o estilo (a não ser talvez em alguns capítulos) dificilmente nos permitem atribuí-Ias à lavra de Fernão Lopes. É fora de dúvida que ele as teria utilizado como fontes (como mais tarde fez Rui de Pina) se o tempo lho tivesse permitido. O testemunho de Damião de Góis, único em abono da sua autoria, foi exarado cem anos mais tarde, talvez com apoio na carta régia de 1434 que lhe dava esse encargo ou numa tradição mais ou menos falaciosa. Apaniguado dos príncipes de Avis, é evidente que Fernão Lopes tinha de ser parcial. Vemo-lo com clareza na condenação de um D. Fernando ou de uma Leonor Teles, como, na exaltação de um D. Pedro, pai do seu rei D. João I («E diziam as gentes que tais dez anos nunca houve em Portugal, como estes que reinara el-rei D. Pedro), de um mestre de Avis (apesar de todas as suas fraquezas humanas) ou de um Nun'Álvares (já então tido por santo e tronco da poderosa Casa de Bragança). António José Saraiva demonstrou à saciedade como Fernão Lopes tinha diversos objectivos de carácter político a atingir -todos justificativos da nova dinastia – e como, em geral, o conseguiu modelarmente. É verdade que a sua origem popular, com desconfiança por tudo aquilo que era nobreza ou alto clero, lhe deu um sentido crítico que o fez incomparável no panorama do tempo e lhe temperou as subserviências de valido do Paço. Citando ainda A. J. Saraiva, «pelo senso crítico com que joeirou a sua documentação, pelo método de crítica das fontes, ele vai muito além do seu tempo e se antecipa aos historiadores do século XIX». Mas os relatos dos principais acontecimentos partidários e a caracterização das mais importantes figuras não podem ser tomados como a verdade intocável que a grande massa dos historiadores portugueses lhes têm conferido. Muitos dos episódios afamados da Crónica de D. João I (sobretudo na 1.ª parte) valem antes como romance histórico de alto nível literário (pela movimentação das massas, pela psicologia dos homens, pelo desenrolar dos actos) do que como testemunhos de uma realidade passada. As melhores páginas históricas de Fernão Lopes são talvez as da Crónica de D. Fernando, sobretudo quando se referem a factos controláveis e isentos da possibilidade de partidarismo. Aqui, toda a probidade do cronista-tabelião se revela abonada pelas fontes documentais que persistiram até hoje e se transmuta até – ela própria – em fonte quantas vezes. E pena foi que Fernão Lopes não dispusesse do tempo bastante para refundir por completo as crónicas dos reinados anteriores a D. Pedro, alargando-as com o desenvolvimento proporcional a cada uma e recheando-as dos testemunhos documentais a que ele tinha tão fácil acesso e de que hoje não restam vestígios. Do valor literário de Fernão Lopes não cabe aqui falar. O seu poder evocativo e descritivo, o seu sentido do movimento, sobretudo quando individualiza as massas ou personaliza uma cidade como Lisboa, tornam-no um dos maiores escritores de todos os tempos.

Fonte:
Oliveira Marques, António Henrique de
«Lopes, Fernão»,
Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Portugal,
Lisboa, Iniciativas Editoriais, 
páginas 806 a 808.

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