Sintra em 1875

Sintra, estrada de Lisboa
Cintra. Tirada de San Pedro
Rep. pintura, W. Colebrooke Stockdale, 1875

Carta aos Eleitores do Círculo de Sintra
de Alexandre Herculano

 

«A DESCENTRALIZAÇÃO É A CONDIÇÃO IMPRETERÍVEL DA
ADMINISTRAÇÃO DO PAÍS PELO PAIS»

 

Este texto de Alexandre Herculano é um bom resumo da sua teoria municipalista, que defendeu como salvaguarda das prepotências  do poder central, e que foi a ideia base da pesquisa histórica sobre a Idade Média que realizou. A defesa do municipalismo levou-o a condenar o Setembrismo, o Cabralismo e a Regeneração, como abastardamento ou negação do liberalismo, porque defensores do centralismo.  Para Herculano o alargamento da vida política à vida local era necessário para que «o governo central possa representar o pensamento do País», e por isso defende a eleição de campanário, isto é, a escolha do representante político em função do local onde esse representante vivia, e unicamente pelos eleitores locais, os únicos que conheciam os problemas do país real.


Ajuda, 22 de Maio de 1858

Sr. Redactor:

Tendo estado ausente no campo alguns dias por negócios particulares achei, voltando a Lisboa, retardada no correio a comunicação oficial da minha eleição de deputado pelo círculo 26. Decidido a não aceitar aquela honrosa missão, era do meu dever dar imediata razão de mim a quem assim me dera uma prova de apreço. Tardei talvez, mas a culpa foi involuntária. da sua amizade espero que, dando quanto antes lugar no seu jornal à inclusa carta, me ajude a remir de modo possível a minha falta.


 

Senhores eleitores do círculo eleitoral de Sintra.

Acabais de me dar uma demonstração de confiança, escolhendo-me para vosso procurador no parlamento: sinto que me não seja permitido aceitá-la.

Se tal escolha não foi uma daquelas inspirações que vêm ao mesmo tempo ao espírito do grande número, o que é altamente improvável, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de vós; se alguém, se pessoas preponderantes nesse círculo, pelo conceito que vos merecem, vos apresentaram a minha candidatura, andaram menos prudentemente, fazendo-o sem me consultarem, e promovendo uma eleição inútil.

Há anos que os eleitores de um círculo da Beira, na sua muita benevolência para comigo, pretenderam fazer-me a honra que me fizestes agora. Um deles, um dos mais nobres, mais puros e mais inteligentes caracteres dos muitos que conheço, sumidos, esquecidos, nessa vasta granja da capital chamada – as províncias –, encarregou-se de vir a Lisboa consultar-me. Respondi-lhe como a consciência me disse que lhe devia responder, e o meu nome foi posto de parte. De Sintra a Lisboa, é mais perto, e a comunicação mais fácil, do que dos remotos e quase impérvios sertões da Beira.

Duas vezes nos comícios populares, muitas na imprensa tenho manifestado a minha íntima convicção de que nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu representante indivíduo que lhe não pertença; que por larga experiência não tenha conhecido as suas necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os que o elegeram comunidade de interesses, interesses que variam, que se modificam, e até se contradizem, de província para província, de distrito para distrito, e às vezes de concelho para concelho. Esta doutrina, posto que tenha vantagem no presente, reputo-a sobretudo importante pelo seu alcance, pelos seus resultados em relação ao futuro. É, no meu modo de ver, o ponto de Arquimedes, um fulcro de alavanca, dado o qual as gerações que vierem ‑depois de nós poderão lançar a sociedade num molde mais português e mais sensato do que o actual, inutilizando as cópias, ao mesmo tempo servis e bastardas, de instituições peregrinas, que em meio século têm dado sobejas provas na sua terra natal do que podem e do que valem para manterem a paz e a ordem públicas, e mais que uma honesta liberdade.

Durante meses, no decurso de dois anos, tive de vagar pelos distritos centrais e setentrionais do reino. Pude então observar amplamente quantas misérias, quanto abandono, quantos vexames pesam sobre os habitantes das províncias, principalmente dos distritos rurais, como o vosso, que constituem a grande maioria do país. Vi com dor e tristeza definhados e moribundos os restos das instituições municipais que o absolutismo nos deixara: vi com indignação essas solenes mentiras a que impiamente chamamos instrução primária e educação religiosa: vi a agricultura, a verdadeira indústria de Portugal, lidando inutilmente por desenvolver-se no meio da insuficiência dos seus recursos; vi, em resultado dos erros económicos que pululavam na nossa legislação, a má organização da propriedade territorial e a desigualdade espantosa na distribuição das populações rurais, precedida da mesma origem, e dando-nos ao sul do reino uma imagem das solidões sertanejas da América, e ao norte uma Irlanda em perspectiva: vi a injusta repartição e a pior aplicação dos tributos e encargos: vi a falta de segurança pessoal e real, especialmente nos campos, onde o homem é obrigado a confiar só em si e em Deus para obter: vi um sistema administrativo mau por si e péssimo em relação a Portugal, com uma hierarquia de funcionários e uma distribuição de funções que tornam remotas, complicadas, gravosas, e até impossíveis, a administração e a justiça para as classes populares, e incómodas e espoliadoras para as altas classes: vi, sobretudo, a falta da vida pública, a concentração do homem na vida individual e de família, que é ao mesmo tempo causa e efeito da decadência dos povos que se dizem livres: vi todos esperarem e temerem tudo do governo central; confiarem nele, como se fosse a Providência; maldizerem-no, como se fosse o princípio mau: ideias completamente falsas, posto que bem desculpáveis num país de centralização; ideias que significam uma abdicação tremenda da consciência de cidadão, e da actividade humana, e que são o sintoma infalível de que os males públicos procedem, não da vontade deste ou daquele indivíduo, da índole particular desta ou daquela instituição, mas sim do estado moral da sociedade e da índole em geral da sua organização.

E isto que vi perspicuamente, apesar de uma observação transitória, vêem-no todos os dias, palpam-no, e, o que mais é, padecem-no centenares de homens honestos e inteligentes que vivem obscuramente por essas vilas e aldeias de Portugal. Como os seus vizinhos, eles são vítimas da nossa absurda organização; disso a que por antífrase chamamos administração e governo. É entre tais homens que os círculos deveriam escolher os seus representantes; é entre eles que os escolherão por certo no dia em que compreenderem que o direito eleitoral é uma espada de dois gumes com que os cidadãos estão armados para se defenderem a si e aos seus filhos, mas com que também podem assassinar-se e assassiná-los. Foi o que disse a todos aqueles, e não foram poucos, que durante a minha peregrinação pareceram confiar, se não no valor das minhas opiniões, ao menos na sinceridade delas. Interrogado acerca do lenitivo que supunha possível para os males que presenciava, indiquei sempre, não como remédio definitivo, mas como preparação para ele, como instrumento de uma reforma futura, a eleição exclusivamente local e os esforços constantes para obter, contra o interesse das facções, -dos partidos e .dos governos, a redução dos grandes círculos a círculos de eleição singular, que um dia possam servir à restauração da vida municipal, da expressão verdadeira da vida pública do país, e de garantia da descentralização administrativa, como a descentralização administrativa é a garantia da liberdade real.

Fortes tendências para a eleição da localidade se manifestam já por muitas partes, e os governos e as parcialidades vêem-se constrangidos a transigir com esse instinto salvador. Se não me é lícito gloriar-me de ter contribuído para ele se desenvolver, ser-me-á lícito, ao menos, aplaudi-lo. É o primeiro passo no caminho do verdadeiro progresso social: cumpre não recuar.

Mas, pensando assim, como poderia eu, sem desmentir a minha consciência e as minhas palavras; sem trair a verdade, sem vos trair a vós próprios, aceitar em silêncio o vosso mandato? É honroso merecer a confiança dos nossos concidadãos, mas é mais honroso viver e morrer honrado.

Não haverá no meio de vós um proprietário, um lavrador, um advogado, um comerciante, qualquer indivíduo, que, ligado convosco por interesses e padecimentos comuns, tenha pensado na solução das questões sociais, administrativas e económicas que vos importam; um homem de cuja probidade e bom juízo o trato de muitos anos vos tenha certificado? Há, sem dúvida. Porque, pois, não haveis de escolhê-lo para vosso mandatário?

Os que não vêem como eu nesta ideia da representação exclusivamente local o primeiro elo de uma cadeia de transformações, que serão ao mesmo tempo administrativas e políticas, podem, sem desdouro, não só aceitar, mas até solicitar os vossos votos. Ninguém deve aferir os seus actos livres senão pelas próprias opiniões, pelas doutrinas que tem propugnado. Aferir pelas minhas ideias o meu proceder é o que unicamente faço.

Recusando o vosso favor, nem por isso vo-lo agradeço menos; e a prova é que vo-lo retribuo com estes conselhos, que não serão bons, mas que evidentemente são desinteressados. Da confiança que mostrastes ter em mim deriva o meu direito a dar-vo-los.

Aconselho-vos, como acabais de ver, uma coisa para a qual os estadistas de profissão olham com supremo desprezo, a eleição de campanário, só a eleição de campanário, a eleição de campanário, permiti-me a expressão, até à ferocidade.

Não sei se podereis sofrer o afrontoso ridículo que anda associado à doutrina que vos inculco. Eu posso. Em mim este alto esforço é o hábito que resulta de longo trato. A aguda e graciosa invectiva de deputado de campanário tem cãs veneráveis. Conheço-a há muitos anos. Além dos Pirinéus andava já em serviço dos ambiciosos, dos oficiais de política há bem meio século. Os nossos políticos encartados traduziram-na para seu uso. É que, assim como traduzem leis, traduzem o mais, posto que, se me é lícito dizê-lo, o façam mal, muito mal, de ordinário.

Indubitavelmente este país transborda de homens grandes, de profundos estadistas. Aqui o estadista nasce, como nasce o poeta; precede a escolha: dispensa-a, até. Sou o primeiro a confessá-lo. E a paixão dos homens grandes, dos profundos estadistas, é a salvação da pátria: é a sua vocação, o seu destino, a sua suprema felicidade. Esses varões ilustres pertencem, porém, ao país: é do país que devem ser deputados. Entendem-no eles assim, e parece-me que entendem bem. Em tal caso, eleja-os o país. Quando algum vos mendigar de porta em porta, e com o chapéu na mão, os vossos votos, respondei-lhe, como os eleitores dos diversos círculos do reino lhe responderiam, se o são juízo fosse uma coisa desmesuradamente vulgar:

«Somos uma pobre gente, que apenas conhecemos as nossas necessidades, e queremos por mandatário quem também as conheça e que nelas tenha parte; quem seja verdadeiro intérprete dos nossos desejos, das nossas esperanças, dos nossos agravos. Se os deputados dos outros círculos procederem de uma escolha análoga, entendemos que as opiniões triunfantes no parlamento representarão a satisfação dos desejos, o complemento das esperanças, a reparação dos agravos da verdadeira maioria nacional sem que isto obste a que se atenda aos interesses da minoria, que aí se acharão representados e defendidos como se representa e defende uma causa própria. Na vulgaridade da nossa inteligência, custa-nos a abandonar as superstições de nossos pais: cremos ainda na aritmética, e que o país não é senão a soma das localidades. Homem do absoluto, das vastas concepções, se a vossa abnegação chega ao ponto de solicitar a deputação do campanário, fazei que vos alejam aqueles que vos conhecem de perto, que podem apreciar as vossas virtudes, o vosso carácter. Certamente vós habitais nalguma parte. Se não quereis abater-vos tanto, arredai-vos da sombra do nosso presbitério, que ofusca o brilho do vosso grande nome. Sede, como é razão que sejais, deputado do país. Não temos para vos dar senão um mandato de campanário.»

A resposta dos eleitores aos estadistas parece-me que deveria ser esta.

A eleição de campanário é o sintoma e o preâmbulo de uma reacção descentralizadora, é a condição impreterível da administração do país pelo país, e a administração do país pelo país é a realização material, palpável, efectiva da liberdade na sua plenitude, sem anarquia, sem revoluções, de que não vem quase nunca senão mal. Para obter este resultado, é necessário começar pelo princípio; é necessário que a vida pública renasça.

Na verdade, a doutrina de que o excesso de acção administrativa, hoje acumulada, deve derivar em grande parte do centro para a circunferência repugna aos partidos, e irrita-os. Sei isso, e sei porquê. Os partidos, sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. Se não lhes dá maior número de probabilidades de vencimento nas lutas do poder, concentra-as num ponto, simplifica-as, e, obtido o poder, a centralização é o grande meio de o conservarem. Nunca esperem dos partidos essas tendências. Seria o suicídio. Daí vem a sua incompetência, e nenhuma autoridade do seu voto nesta matéria. É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que é, e do funcionalismo que quer e que há-de ser.

A centralização tem ido até às Saturnais. A hierarquia administrativa chegou já, por exemplo, a arrogar-se o direito de declarar suspensas ou em vigor as leis civis e criminais do reino e a acção dos tribunais. Lede o artigo 357 ° do Código Administrativo e estudai a sua jurisprudência, que haveis de ficar edificados. Vede se algum governo, se algum grande estadista, saído de qualquer parte, propôs a sua revogação. Não o espereis jamais.

O poder que pela imunidade do funcionário criminoso, que pelo monopólio na distribuição e todas as funções retribuídas, que pela monstruosa invenção do contencioso administrativo, que pelas mais ou menos disfarçadas ditaduras, cuja necessidade ele mesmo cria, que por mil concessões arrancadas à fraqueza ou à condescendência parlamentar, acha grandes facilidades para penetrar na esfera dos outros poderes, deve ir longe na própria esfera. E vai.

Quereis encontrar o governo central? Do berço à cova encontrai-lo por todas as fases da vossa vida, raramente para vos proteger, de contínuo para vos incomodar. Nada, a bem dizer, se move na vida colectiva do povo que não venha dc cima o impulso, ou que pelo menos o governo se não associe a esse impulso. Entrai, por exemplo, no presbitério da primeira aldeia que topardes. Vereis aí um homem enchendo a pia de água benta, apagando ou acendendo as velas, arrumando os ciriais. É o governo central. O sacristão, exornado com o título pomposo de tesoureiro, e seu funcionário; é a mão dele estendida até ao gavetão das vestimentas. Essa personagem tem carta pela secretaria de Estado.

Isto é impossível que, seja racional, sensato. Essa imensa tutela de milhões de homens por seis ou sete homens é forçosamente absurda. Deve haver um dia em que a sociedade, como os indivíduos, chegue à maioridade.

Não receeis que a descentralização seja a desagregação. O governo central há-de e deve ter sempre uma acção poderosa na administração pública; há-de e deve cingi-la; mas cumpre restringir-lhe a esfera dentro de justos limites, e os seus justos limites são aqueles em que a razão pública e as demonstrações da experiência provarem que a sua acção é inevitável. O âmbito desta não deve dilatar-se mais.

A centralização, na cópia portuguesa, como hoje existe e como a sofremos, é o fideicomisso legado pelo absolutismo aos governos representativos, mas enriquecido, exagerado; é, desculpai-me a frase, o absolutismo liberal. A diferença está nisto: dantes os frutos que dá o predomínio da centralização supunha-se colhê-los um homem chamado rei: hoje colhem-nos seis ou sete homens chamados ministros. Dantes os cortesãos repartiam entre si esses frutos, e diziam ao rei que tudo era dele e para ele: hoje os ministros reservam-nos para si ou distribuem-nos pelos que lhes servem de voz, de braços, de mãos; pelo partido que os defende, e dizem depois que tudo é do país, pelo país, e para o país. E não mentem. O país de que falam é o seu país nominal; é a sua clientela, o seu funcionalismo; é o próprio governo; é a tradução moderna da frase de Luís XIV -l'état c'est moi, menos a sinceridade.

Não acuso alguém em particular; descrevo um facto geral; não sirvo, nem combate, nenhum partido: pago-vos com a franqueza um pouco rude da minha linguagem a vossa benevolência. Se acusasse, acusava-me também a mim, e talvez a vós. Ninguém está acima das paixões, dos preconceitos, das fórmulas, da índole da sua época. Nem sequer, e muito é, os estadistas o estão, se me é concedido avaliar essas altas capacidades. A carne é fraca. Sejam quais forem as nossas aspirações, as nossas teorias, e, se quiserem, os nossos sonhos quanto ao futuro, vivemos no presente, e quando não nos abstemos da política, enfileiramo-nos nos partidos, às vezes, até, sem o querermos, sem o sabermos. Como tive a honra de vos fazer notar, a questão da liberdade na sua plenitude e na sua existência real está fora ou, antes, acima dos partidos. Se, conforme creio, a eleição na qual quisestes que eu tivesse uma parte honorífica manifesta as vossas propensões para manter o ministério actual, não se deduz do que vos digo a necessidade de mostrar propensões contrárias. Por ora não se trata senão de adoptar um princípio, uma regra, cujas consequências verdadeiramente importantes virão mais tarde. Não importa, em relação a essas consequências, que escolhais neste ou naquele partido: o que importa é que escolhais de entre vós; o que importa é que os círculos rurais não obriguem algum homem grande a consumir dez minutos em procurar no mapa do reino a situação relativa do distrito que representa, e muitas horas em soletrar os nomes romanos, góticos, mouriscos, bárbaros, que nesse mapa designam rios, montes, lugarejos, aldeias, freguesias, concelhos, em que nunca ouviu falar. Pelos recostos das vossas pitorescas montanhas, pelos vossos vales frondosos, pelas quintas e granjas mais remotas, no campo ou nas povoações, deve habitar algum amigo do ministério que mereça os vossos votos. Dai-lhos, se entendeis que os homens que estão no poder são menos maus do que os seus adversários.

Não me consentindo a brevidade do tempo e a urgência de outras ocupações expor-vos todos os motivos por que dou tanta importância à doutrina eleitoral que submeto à vossa consideração, não tenho direito a insistir em que a sigais com a inabalável firmeza com que intimamente creio que a deveríeis seguir. Nessa hipótese, se vos apresentarem candidaturas de indivíduos estranhos ao vosso círculo, cujo carácter não possais avaliar por vós mesmos, consenti em que vos lembre um arbítrio para não serdes ludibriados. Consultai aqueles que pessoalmente os conhecerem, mas só aqueles que, pagando tributos, e não desfrutando-os, viverem no meio de vós, há longos anos, do produto do seu trabalho ou da sua propriedade, e que gozarem de sólida reputação de inteligência e de probidade. Como homens de bem, e como tendo interesses análogos aos vossos e confundidos com os vossos, eles não podem enganar-vos. Escolhei o que eles escolherem; rejeitai o que eles rejeitarem. Vença qual partido vencer, tereis ao menos um procurador honesto; porque todos os partidos têm no seu seio gente honrada. Escusado é dizer-vos o que haveis de ganhar.

Depois, quando alguém, que acidentalmente se ache no meio de vós, sem casa, sem bens, sem família, sem indústria destinada a aumentar com vantagem própria a riqueza comum, e só porque o seu talher na mesa do tributo ficou posto para esse lado, se mostrar .demasiado solícito em nobilitar o vosso voto pela escolha de algum célebre estadista, em que talvez nunca ouvistes falar, ou em livrar-vos de elegerdes algum mau cidadão, cujas malfeitorias escutais da sua boca pela primeira vez, voltai-lhe as costas. Padre, militar, magistrado, funcionário civil, seja quem for, esse homem que tanto se agita, aflito pela vossa honra eleitoral, pelos vossos acertos ou desacertos políticos, pode ser um partidário ardente e desinteressado; mas é mais provável que seja um hipócrita, um miserável, que já tenha na algibeira o preço do vosso ludíbrio, ou que, por serviços abjectos, espere obter, ou dos que são governo, ou dos que querem fazer o imenso sacrifício de o serem, a realização de ambições que a consciência lhe não legitima, e acerca das quais só podeis saber uma coisa: é que as haveis de pagar.

Permiti-me, senhores eleitores, que termine esta carta, já demasiado extensa, reiterando-vos os protestos da minha gratidão pela vossa bondade para comigo, e assegurando-os que, se me falece ambição para aceitar os vossos votos contradizendo as minhas opiniões, sobeja-me avareza para buscar não perder jamais um ceitil da vossa estima.

 

 
Fontes:
Jornal do Commercio, Industria e Agricultura, 5.º ano, n.º 1.399, Lisboa, 23 de Maio de 1858

Alexandre Herculano,
Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra por ... (Extraído do Jornal do Commercio)
Lisboa, 1858.

Alexandre Herculano
Opúsculos, volume I, organ., introd. e notas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia
Lisboa, Editorial Presença, 1982 (1.ª ed., 1873)

Joel Serrão (sel.)
Liberalismo, Socialismo, Republicanismo. Antologia de pensamento político português,
2.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte («Horizonte Universitário»), 1979 (1.ª ed., 1969)

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