A GUERRA EM MOÇAMBIQUE.

 

3. A ofensiva dos portugueses e a contra-ofensiva alemã

 

Trincheira no Rovuma
Trincheira portuguesa na
posição de Namoto

 

Reconhecimentos, passagem do Rovuma e combate de Maúla

Se até aqui, nesta campanha, apontamos muitas faltas no esforço colectivo de se improvisarem forças militares sem preparação, poderemos agora neste capítulo salientar actos de valor individual, que uma vez coordenados justificam a mais ardente fé nos nossos destinos nacionais. Diz o General comandante da expedição, no seu relatório, que eram muitas as deficiências e que, «ao assumir a grave responsabilidade do comando, não desconhecia que a luta, na qual íamos empenhar-nos, era bem mais difícil e perigosa do que aquelas que anteriormente se haviam efectuado, com êxito glorioso e brilhante, no continente negro, mas contava e devia contar com as virtudes ingénitas na lusa gente, nunca até hoje desmentidas e nunca até hoje ultrapassadas».

Mais pelo instinto do que pela preparação, vamos sentir, efectivamente, palpitar dedicações nas gentes das fileiras, afirmando estar ainda viva aquela antiga fé patriótica dos tempos das descobertas e conquistas.

Nos primeiros reconhecimentos para a travessia do Rovuma encontrámos Jorge de Castilho, hoje já inscrito nos quadros parietais das nossas escolas primárias, celebrizado como aviador na travessia cio Atlântico. Na madrugada de 15 de Agosto de 1916, nos reconhecimentos dos vaus do Rovuma, marchou ele todo o dia, a pé, com um sol criador de insolações, em socorro. de uma pequena força. Foram louvados. neste lanço um soldado e um sargento de infantaria 24, tendo caído morto o cabo que comandava a guarda avançada da pequena escolta. A escolta foi reforçada por dois pelotões vindos dos postos vizinhos, tendo apresentado o relatório acerca do reconhecimento do vau o alferes Pais de Ramos, que comandava o pelotão da Guarda Republicana e que, tendo desmaiado quando dentro do rio procedia ao seu reconhecimento, foi salvo por dois soldados indígenas debaixo do fogo do inimigo. O oficial e, os indígenas tiveram a Cruz de Guerra. Esta episódica acção permitiu descobrir um vau do Rovuma, no triângulo de Quionga, abandonado pelos alemães, descoberta valiosa, porque a topografia do rio nos era completamente desconhecida e os reconhecimentos tinham de ser feitos de noite, às vezes debaixo de fogo da margem norte e sob a ameaça constante dos crocodilos que infestavam o rio.

Infantaria 28 no Rovuma

O batalhão de infantaria 28 atravessando o Rovuma

O tenente Viriato de Lacerda, morto depois em Serra Mecula, começou a distinguir-se nestes reconhecimentos do rio, de noite, pelo espírito alegre com que animava os  camaradas, quando um europeu se, enterrava num charco ou um indígena, medindo o vau na água, se mostrava ,menos arrojado. Também neste período de reconhecimentos houve um forte ataque dos alemães ao nosso posto de Nangadi, nó de comunicações, onde comandava o capitão Curado, cuja figura ficou, pela sua bravura, tão popular nesta campanha. Lembrar estes nomes é animador e é justo.

Refere ainda o General no seu relatório que o reconhecimento dos vaus no Rovuma fora um estudo cuidado e completo, sendo-lhe «apresentado um sucinto mas conceituoso relatório, inteligentemente elaborado, em que se forneciam preciosos dados» 1.

Foram lixados os vaus de Nacoa e Namoto Entretanto no médio Rovuma não só reocupávamos Maziúa, onde fôramos afrontados, mas atravessávamos esse rio, sendo louvados nesta acção um tenente e um sargento.

A situação militar nas duas margens do Rovuma, junto da foz, era de estreito contacto com o adversário, trocando-se tiroteio com frequência e vindo ele atacar-nos com uma audácia e valor, que as nossas bisonhas tropas mal possuíam. Tudo aconselhava a maior concentração das nossas forças, considerando o malogro da tentativa de passagem do rio em 27 de Maio; por isso resistiu o General aos pedidos de reforços dos postos a montante, porque entendia que a acção decisiva seria junto à foz, onde havia recursos apreciáveis. Todavia, preparou movimentos ofensivos simultâneos em Mocímboa do Rovuma e no Unde, além de dotar também com alguns meios a coluna do Lago, entregando à iniciativa dos comandantes esses movimentos, que considerava terem um papel secundário, mas de útil cooperação. Se a sorte das armas nos fosse favorável e se revelasse algum, notável condutor de homens, poder-se-iam atingir alguns daqueles objectivos secundários como Songea, localidade importante na vasta região pobre a sudoeste da colónia alemã.

Registemos, agora, um dos contratempos que surgia à expedição e paralisava a ofensiva. Só no dia 6 de Setembro tinha chegado à base em Palma o vapor Beira, desembarcando a companhia de transportes, que deveria ser das primeiras a desembarcar mas fora demorada em Lisboa por vários transtornos, incluindo a greve dos operários metalúrgicos.

Durante os dois meses de demora na base em Palma, aguardando os transportes que só chegaram em Setembro, as tropas não estiveram ociosas, porque o tempo foi dedicado à instrução militar e ao levantamento de barracões para armazenar víveres e todo o material, que ficou a coberto. Os navios levavam ás vezes quinze dias a descarregar, sendo em Setembro também empregados os soldados brancos na descarga dos cunhetes, trabalho muito fatigante naquele clima. O desembarque de 1.500 solípedes representou também um grande esforço.  

 


Gráfico das fortificações de Nevala

 

Entretanto os telegramas do Governo da Metrópole e do Governador da Colónia eram constantes no sentido de incitar a expedição a tomar a ofensiva. A 5 de Setembro o Governador-geral telegrafava, dizendo que o cônsul inglês informava dever acabar a campanha nesse mês. E a 9, o Governo de Lisboa dizia: «ser indispensável não esperar o desembarque dos navios, nem a chegada dos camiões para começar a ofensiva, porque carecia evitar que a guerra acabasse estando nós parados». Respondendo a estas imperiosas determinações, objectava o General comandante que não tinha naquele momento os meios para poder avançar, mas já marcara os dias 17 e 19 para a travessia do Rovuma, apesar de lhe faltarem viaturas para transporte da alimentação. Os víveres e as tropas não desfilaram, entrando no Rovuma, como em 27 de Maio, pela frente do adversário, mas em 19 de Setembro os barcos com víveres esperavam na foz do rio o resultado da segunda tentativa. Em 27 de Maio não se esperou pela Guarda Republicana, que era a melhor tropa colonial, mas em Setembro o General não quis repetir essa falta imperdoável de não concentrar as suas forças para uma operação decisiva como era a passagem do rio.

O ano de 1916 foi o de maior movimentação na campanha da África Oriental. Assinalámos já que 1915 fora um ano neutro, mas permitira às forças alemãs tomar fôlego e receber dois navios vindos da Alemanha com material diverso, forçando o bloqueio dos barcos de guerra britânicos. 2 Eram agora relativamente em menor número as forças alemãs, que mal chegavam a 3.100 europeus e 13.000 indígenas, formados em companhias que, sendo conveniente, se agrupavam em duas ou três. A capacidade de manobra dessas tropas estava, porém, muito apurada. A densidade da resistência alemã fora decrescendo desde a fronteira norte, em face dos ingleses, até ao sul na fronteira do Rovuma, onde tinham, nesta zona secundária de operações, numerosos postos e duas companhias de reserva muito à retaguarda. Os entrincheiramentos alemães junto da foz do Rovuma tinham uma capacidade para mil homens.

A passagem do Rovuma, junto à foz, pela expedição portuguesa na sua máxima força, sob o comando directo do General, foi o fruto daquela instrução militar de dois meses realizada na base em Palma, enquanto se esperava o material de transportes. A passagem efectuada em 19 de Setembro foi uma operação de relativo valor para a nossa vulgar preparação militar. Assim o entendeu o General, que mandou louvar as tropas 3.

A cooperação da marinha fez-se sentir pela presença do Adamastor na foz do rio, protegendo o comboio de víveres marítimo e fazendo um pequeno bombardeamento da margem alemã. Entretanto os alemães na véspera tinham evacuado aquela zona e retirado para montante, abandonando os seus postos militares.

Fazendo uma finta, a coluna negra - organizada com duas companhias indígenas, uma companhia europeia de infantaria n.º 23, uma bateria de quatro metralhadoras, duas peças e um pelotão de infantaria montada, sob o comando do capitão Gordo, -realizava a travessia do rio a 40 quilómetros da foz, no dia 18 de Setembro, tendo tido algum tiroteio no reconhecimento efectuado na véspera no vau de Nhica, com os alemães do posto de Tchidia.

Aqui foi o baptismo de fogo de alguns europeus 4 e tudo correu bem, remediando-se alguns percalços o melhor que se pode. A guarda avançada do comando do capitão Demony atravessou o rio em Mayembe e içou a bandeira. portuguesa na margem alemã, sinal para que as restantes forças efectuassem por sua vez a travessia, que se levou a efeito sem um tiro.

A coluna negra seguiu para Migomba, em frente de Namoto, aonde todas as forças deviam dirigir-se.

A força portuguesa concentrada para a passagem do Rovuma junto à foz, na madrugada de 19 de Setembro, contava 120 oficiais e 4.060 praças, apresentando na linha de fogo 2.682 espingardas, 10 metralhadoras, 12 peças de montanha de tiro rápido e uma peça de marinha de 10,5 cm, trazida com grande dificuldade até o posto dominante de Namoto.

Organizadas três colunas e uma reserva, as duas colunas a montante passaram o rio a vau e a coluna de jusante passou em jangadas construídas pela companhia de engenharia, à retaguarda de parapeitos, que se abateram de noite para as lançar à água; operação que foi bem conduzida pelo capitão António de Melo, apesar de nessa noite, nas trincheiras próximas, ter surgido um pânico, que, porém, não se generalizou.

Reduto alemão

Reduto alemão em frente de Namoto

As três colunas atravessaram o rio simultaneamente, em 19, com o auxílio de um fraco luar e na maré baixa. Nas duas colunas da esquerda e centro a altura das águas era pelo peito; o percurso era cortado por ilhas na coluna da esquerda e, na do centro, o rio tinha uma largura  atravessando um braço profundo do rio por meio de jangadas, tinha depois a percorrer um grande areal bastante fatigante. As três colunas tinham objectivos em ligação, de modo a cooperarem no seu avanço e, quando, ao nascer. do sol, já as colunas pisavam a margem norte, foi dada ordem à cavalaria para explorar a distância e à reserva para rapidamente atravessar o rio nas jangadas. A despeito das ordens relativas a esta operação (publicadas no livro do Marechal Gomes da Costa), interessante será registar que as tropas nessa noite já com dificuldade mantinham as prescrições de segurança regulamentares, convencidas de que a campanha terminara.

Após a travessia do Rovuma foi enviado um reconhecimento de oficiais e escolta a povoação de Mikindani, a 60 quilómetros, sendo estabelecida a ligação com o batalhão de tropas indianas que a ocupava; e, no desejo de colaborar eficazmente com o Comando britânico, a expedição estabeleceu uma linha telegráfica até Mikindani com um posto militar guardando a estrada. No local da travessia por jangadas foi lançada uma boa ponte sobre o Rovuma.

Propondo-se o General prosseguir na ofensiva, para valorizar o esforço da expedição e, conforme o desejo do Alto Comando britânico, procurando operar pelo vale do Rovuma e depois para o norte na direcção de Liwale, onde se supunha estarem guardados os portugueses feitos prisioneiros, foram tomadas disposições nesse sentido.

As comunicações estendiam-se por Nevala e Massassi, localidades que desce logo foram indicadas como objectivos. Nevala era um centro administrativo e de recrutamento, cujo fortim de alvenaria era apontado pelos indígenas como difícil de atacar por estar situado num planalto bem defendido.

Para ocupar o terreno que o adversário nos fosse abandonando, foi enviado uni reconhecimento a Nevala (capitão Liberato Pinto), que marchou. em 25 de Setembro de Migomba pela margem Norte do Rovuma. A escolta do reconhecimento era formada por três companhias indígenas e uma bateria de metralhadoras, com o fim de ir guarnecendo os postos abandonados e ter capacidade para ir varrendo as patrulhas adversas: Não podia ser mais numerosa a nossa tropa, porque nos faltavam transportes para a abastecer; mas ainda essa foi reduzida a duas companhias, a 21.ª e a 24.ª, porque a outra recebeu ordem para ficar em Nichichira.

Em Maúta, cerca de 2 km a Leste de Nevala, os alemães tinham preparado uma posição que cortava a estrada de marcha e conseguiram surpreendera nossa extrema guarda-avançada, num combate a 4 de Outubro, ficando perdido o alferes Camisão que a comandava. A guarda-avançada era formada pela 21.ª companhia indígena (capitão Curado); a 24.ª (capitão Demony), no grosso da coluna, levava intercalada a bateria de metralhadoras (tenente Júlio César de Almeida) e uns centos de carregadores.

Era propício para o ataque o ponto escolhido pelos alemães: uma curva da estrada de marcha, estreita, tendo na esquerda um escarpado de grande altura e na direita uma mata densa e impenetrável. O fogo de metralhadoras, varrendo a estrada, produziu o pânico nas muares e nos carregadores que debandaram. As companhias desenvolveram e as metralhadoras, conduzidas à mão para a linha de atiradores e providas de água, ainda prestaram bom serviço, causando bastantes baixas ao inimigo. Também as houve do nosso lado e perderam-se alguns cunhetes com munições e algumas espingardas, mas não se perderam as 5 metralhadoras, como alguns supõem. O combate de Maúta começara ao cair da tarde, pelo que teve curta duração, pois, ao anoitecer e por ordem do Comando, as forças retiraram para um local um pouco à retaguarda, onde se entrincheiraram.

O dia 4 de Outubro fora de sol excepcionalmente ardente e de calor intensíssimo.

Assim, a absoluta falta de água, levou o comando da coluna a ordenar a retirada das forças, ainda nessa noite, para o posto de Nichichira, a 30 km. à retaguarda, onde se aguardaram reforços que o General se apressara a enviar-lhes.

A Coluna de Massassi e os combates de Nevala

Ao reconhecimento de Nevala seguia-se em apoio é reforço a coluna de Massassi, marcando-lhe este nome o seu objectivo imediato. Infelizmente essa força, que, incorporando a anterior, ficava elevada a cinco companhias indígenas, duas companhias europeias de infantaria 28, duas baterias de metralhadoras, quatro peças de montanha, um pelotão de infantaria montada e os serviços de saúde e administrativos, coluna sob o comando do major José Pires de infantaria 24, não teve a capacidade de combate que era necessária para rapidamente avançar.

A colona de Massassi define a falta de entusiasmo das forças expedicionárias de Moçambique. Todavia foi ela 5 que susteve a retirada do reconhecimento de Nevala; prestou esse serviço, mas foi pouco mais além.

Outro reforço mandou o General, logo que a capacidade de transportes o permitiu, formado por duas companhias de infantaria 28, duas peças e um pelotão indígena. Contudo a coluna de Massassi não avançava, apesar das ordens do General, quando no Alto da Serra de Nangadi o chefe do estado-maior lhe intimou o avanço. Este oficial com uma escolta formada pelo resto das forças disponíveis, o esquadrão de cavalaria 3 reduzido a dois pelotões, três pelotões indígenas das 17.ª e 22.ª companhias e uma bateria de metralhadoras, marchou sobre Nevala pelo Sul, enquanto a coluna de Massassi deveria marchar por Leste, atacando pelo planalto.

Ponte de cavaletes em 1916

1916 - Ponte de cavaletes sobre o Rovuma construída pelas tropas de engenharia

Foi com dificuldade que esta última coluna iniciou a marcha, tendo reunido previamente um conselho de oficiais, que se manifestaram contra o avanço, por falta de víveres, até que o provisor capitão Seixas afirmou dispor de dois dias de alimentação. Então arrastou-se a coluna 6 não pelo itinerário marcado na ordem de marcha, mas sim ao longo do Rovuma e à retaguarda. da escolta, deixando assim de efectuar a manobra ordenada de atacar Nevala por Leste, simultaneamente com a escolta que atacaria pelo Sul.

A ordem determinava à coluna de Massassi que enviasse um reconhecimento de oficial no dia 18 de Outubro pela estrada para Nevala, mas a essa determinação não foi dada execução, sendo a secção de telegrafistas sem fios, do tenente Moreira de Sá, a primeira tropa portuguesa a marchar por essa estrada, depois da tomada de Nevala.

Alguns tiroteios com patrulhas alemãs demoraram a coluna, que só chegou defronte de Nevala em 26 de Outubro, quando poderia, conforme a ordem para a marcha, chegar a 18, numa etapa de trinta quilómetros por estrada viável a camiões.

Em telegrama de Lisboa, o Governo tomava a responsabilidade de afirmar «que, naquele momento, preferível era afrontar uma batalha difícil e perigosa do que ficar parado». Esta razão suprema fez lançar as ordens de marcha e fazer das fraquezas forças, para se avançar, embora com uma disciplina frouxa e sem vontade de combater.

Desconhecia-se completamente o território inimigo; e a espionagem que se organizara era, em princípios de 1916, dirigida por um boer que fora apanhado a fazer sinais ao adversário, sendo julgado em Palma, mas absolvido por falta de provas; depois foi a espionagem dirigida por um mestiço e, em 1917 e 1918, por um oficial inglês, a título provisório. Não estávamos melhor a respeito de organização civil, porque, ao atravessar o Rovuma, foi nomeado comissário dos territórios ocupados um dos intérpretes da expedição e, tendo este adoecido, outro funcionário mais modesto o substituiu. Os serviços civis de Moçambique não se encontravam habilitados para prestar qualquer auxílio à expedição.

Falhando o plano de avançar pelo litoral, com o auxílio dos transportes de víveres de porto em porto, como sucedera de Porto Amélia para Palma, e depois para a foz do Rovuma, tínhamos de marchar pelas estradas alemãs, para montante do Rovuma até Nevala, e depois pelos caminhos secundários até o vale definido pelo rio Lukuledi.

Dando o exemplo, a escolta do comando do chefe do E. M. avançara, com dois capitães na flecha 7 bem compenetrados de «que, naquele momento, preferível era afrontar uma batalha difícil e perigosa do que ficar parado». Esses oficiais tinham os seus lugares à retaguarda, um como ajudante do General, o capitão Joel Vieira, outro como comandante da zona de Mocímboa do Rovuma, o capitão Torre do Vale, mas ambos compreendiam o dever que se lhes impunha naquele momento difícil. Evidenciam-se as dificuldades dos abastecimentos, notando que foi necessário passar em jangadas alguns camiões para a margem norte do Rovuma, para aproveitar a estrada que o marginava em território alemão, enquanto não se conseguia abrir comunicações pela nossa margem em relativas condições de segurança.

Felizmente os indígenas daquela zona de operações foram-nos sempre favoráveis (atribuindo-se essa enorme vantagem à revolta contra os alemães em 1905) e espontaneamente nos davam informações dos movimentos alemães.

Os combates de Nevala são a história da campanha de Moçambique.

Um grande esforço foi improvisado, mas desconexo, para defender e assegurar o nosso património colonial que, desde o ultimato de 1891, aspirava a ressurgir. A verdade é que, pelas informações, a campanha estava a acabar e o General, impulsionando as forças até Nevala, queria lá chegar antes dos ingleses, para que nós ocupássemos a tal faixa em território inimigo, conforme o Governo desejava, não sucedesse o mesmo que no litoral, onde a ocupação de Mikindane pelos ingleses nos tolheu os passos.

As tropas, porém, sentiram por instinto que a contenda seria resolvida na Europa, faltando-lhes a fé e o entusiasmo necessário para arrostar com a dureza da campanha. Escasseava-lhes, na verdade, aquele ódio ao alemão, que a proclamarão ao exército 8 preconizava, esse «ódio patriótico» não existia.

A disciplina militar era frouxa, reflexo inevitável da disciplina nacional.

Narrando com verdade os acontecimentos, eles somente se poderão compreender pelo jogo de forças morais, ora impulsivas ora depressivas.

O avanço para Nevala foi directamente impulsionado por aqueles dois capitães da flecha da escolta. O choque com os alemães deu-se uma légua ao sul de Nevala, junto dos poços que eles defendiam. Foi em 22 que se feriu o combate da Ribeira de Nevala, onde tivemos dois europeus mortos e doze indígenas feridos, tratados pelo cabo enfermeiro Coelho, porque a escolta não tinha médico. Repelidos os alemães, a escolta ocupou os poços, entrincheirou-se à vista de Nevala, a dois quilómetros ao sul, e esperou a coluna de Massassi desde 22 a 26 de Outubro.

A coluna, como dissemos, em lugar de vir pelo planalto a leste de Nevala, executando a manobra determinada, veio a aparecer pela retaguarda da escolta. Desde logo, sem descanso se organizaram três colunas para investir Nevala. Depois de uma troca de tiros de artilharia, os alemães abandonavam a praça e à tarde ocupávamos o fortim e as trincheiras que o rodeavam, sendo a 17.ª companhia indígena a primeira a entrar nele. Todos estavam fatigadíssimos. A bandeira foi erguida no mastro do fortim 9 e as duas melhores companhias indígenas, a 21.ª e a da Guarda Republicana de Lourenço Marques, foram para os postos avançados.

Para perseguir o inimigo foram nomeadas duas companhias de infantaria 28, duas companhias indígenas, um pelotão de cavalaria e outro de infantaria montada, que marchariam para Norte, na direcção de Massassi. A 10 quilómetros de marcha os alemães barravam a estrada e uma acção se seguiu, comandada pelo alferes Carlos Afonso dos Santos, a qual durou toda a tarde, tendo nós perdido três brancos e não chegando a entrar em fogo a infantaria indígena, que ficou abrigada à retaguarda. Retirou a força para Nevala, não obstante ter instruções para se aproximar de Massassi. Outros pequenos reconhecimentos foram lançados, mas sem resultado.

O novo comandante da coluna de Massassi, major Leopoldo Silva, oficial distinto, competente e enérgico, ao assumir o comando, quis ouvir, antes de marchar, o capitão Curado, que lhe disse ter a sua companhia, 21.ª, extenuada e andrajosa, com os seus oficiais há quatro meses dormindo no chão dos bivaques; observou mais o capitão Curado que, não se conseguindo abastecer as tropas em Nevala, menos ainda se conseguiria no avanço em território inimigo, onde a linha de comunicações não tinha protecção possível; contudo o comandante podia contar incondicionalmente com a companhia e com os seus oficiais.

O major Leopoldo Silva, depois de ouvir o capitão Curado, ficou meditando e passou uma noite agitada, segundo disseram os camaradas que o admiravam. Certamente, o dever militar de cumprir as ordens, nos termos categóricos que os, Governos de Lisboa e de Moçambique insistiam em salientar, obrigou moralmente o novo comandante a manter a ordem de marcha sobre Massassi, procurando atingir o objectivo designado.

A marcha foi iniciada em 8 de Novembro, e nesse mesmo dia chocou a coluna com o inimigo, que lhe cortava a estrada em Lulindi (Quivambo).

Tomado o primeiro contacto com o inimigo, duas peças de montanha e as nossas metralhadoras apoiaram o fogo da infantaria indígena da guarda avançada, comandada pelo capitão de engenharia António de Melo. Generalizado o combate, - combate de Lulindi ou de Quivambo - uma metralhadora alemã, que enfiava a estrada, dificultava o remuniciamento, e o comandante da coluna, para dar o exemplo, aproximou-se da linha de fogo com um cunhete, sendo atingido, eram treze horas, por duas balas, vindo a morrer dois dias depois em Nevala.

Embora os alemães fossem forçados a retirar, foi-nos adversa a sorte das armas, tendo ficado ferido, mortalmente, o prestigioso comandante logo no seu primeiro combate, quando as suas qualidades excepcionais poderiam galvanizar as nossas tropas, perseguindo o adversário e coroando o heróico, esforço do bravo capitão Curado com a sua 21.ª e alguns bons pelotões indígenas, um da Guarda Republicana e outro da 22.ª, depois de terem cooperado num renhido combate de guarda avançada, que bem merecia as honras duma monografia.

Com a morte do major Leopoldo Silva a coluna estacionou, perdendo o fôlego, à vista dos rochedos de Massassi. Já corriam boatos de que os alemães se concentravam para virem em força contra nós. A 15 de Novembro assume o comando da coluna o major Aristides Cunha, que em breve, informado do avanço de algumas companhias alemãs, fez reunir o conselho de oficiais, que votou pela retirada para Nevala. A coluna contava então 486 espingardas, mas com um diminuto valor militar perante o adversário, que, reforçado, tomava a contra-ofensiva, incorporando os marinheiros do cruzador Koenisberg, com o seu antigo comandante capitão Loof.

Jangada no Rovuma

Jangada para a passagem do Rovuma

Retirou a coluna em 19, e em 22 de manhã estabelece-se o contacto com os alemães que atacam logo de madrugada os defensores da água, no sopé do planalto. Comandava o posto da água o tenente Montanha, com a 24.ª companhia indígena e um pelotão de infantaria 28.

Semelhantemente ao que pensáramos precisamente um mês antes, também os alemães entendiam que a água era a vida do fortim. Houve um combate renhido que durou todo o dia, faltando uma eficiente cooperação da nossa artilharia de Nevala, porquanto a visibilidade era dificultada pelo denso mato onde se tinham desenvolvido os alemães, que atacaram principalmente as faces Oeste e Norte dos entrincheiramentos da água. A nossa resistência foi até ao esgotamento das munições tendo sido morto o alferes Matos e aprisionado o comandante, tenente Montanha, quando cobria a retirada dos seus homens através do mato até ao Rovuma. Os entrincheiramentos do nosso posto, com os seus três poços da preciosa água, foram tomados de assalto.

De 22 a 28 de Novembro sofreram bastante nas trincheiras os sitiados de Nevala, porquanto a ração de água era insuficiente, não obstante se ter procurado encher a cisterna, pagando-se aos indígenas locais o transporte de água.

Em 28 uma coluna de socorro a Nevala 10, sob o comando do capitão A. Benedito de Azevedo, penosamente organizada, saindo o comandante do hospital e incorporando os homens que se tinham escapado do combate da água, dias antes, foi lançada de Maúta sobre Nevala, com um total de 11 oficiais e 252 praças entre europeus e indígenas 11 tendo sido determinado pela telegrafia sem fios que de Nevala saísse uma força, para cooperar em ligação com essa coluna. A dez quilómetros de Nevala à coluna de socorro foi barrada a passagem pelos alemães, cuja infantaria «dispersa pelo mato, bem oculta, desenvolve intensa fuzilaria, atingindo a guarda avançada. Numa volta da estrada, mais além, a flecha descobre duas metralhadoras que imediatamente ataca. O inimigo responde, a coluna faz alto 12. E o combate generaliza-se, evidenciando-se a superioridade numérica e as melhores condições da parte do ataque. «Num último esforço – porque as munições iam falhando – manda-se armar baioneta! O cornetim toca «à carga»! Os soldados landins rompem o seu canto guerreiro, que se perde no mato selvagem.» Mas «um emaranhado de trepadeiras e de espinheiros formando mato cerrado» é impenetrável à carga. Aproximando-se a medo, sem se achar o inimigo, resolve-se a retirada que duas metralhadoras procuram cobrir. Assim retirou a coluna de socorro, sem que se tivesse efectivado a ligação com Nevala, ainda -que um pelotão da 22.ª, chegasse a sair das trincheiras com esse fim.

Sentinela

Sentinela num posto do Rovuma

Em vista deste fracasso e estando já doente o major Aristides Cunha, foi reunido o conselho de oficiais em Nevala e resolvido que pela noite de 28 se abandonasse o fortim. Nessa tarde choveu em Nevala, dando alento essa água providencial às tropas sitiadas. Destruiu-se o material pesado, incluindo quatro peças de montanha. E a famosa retirada de Nevala, em direcção ao Rovuma, iniciou-se pelas 22 horas, constituindo a guarda da retaguarda o capitão Curado com a sua 21.ª companhia.

Afirma o capitão Curado, no seu relatório, que através de muitas dificuldades e apesar de haver muitos extraviados, dentre os quais ficou prisioneiro um tenente de artilharia, a regularidade da operação foi mantida, não só até ao Rovuma, que era atravessado em 30 de Novembro, mas ainda mais além.

Os alemães, que nesse dia 28 tinham conseguido meter em bateria contra Nevala uma peça comprida de marinha de 10,5 cm trazida com grandes dificuldades do Rufigi, e que esperavam, por terem cortado a água aos portugueses, que os defensores de Nevala se rendessem sem condições, ficaram logrados com a retirada (que só perceberam ás 8h30 de 29) e lançaram-se logo numa tenaz perseguição com patrulhas na direcção sul e com as tropas pelo planalto, onde perdíamos os nossos postos de etapas da margem norte do Rovuma na direcção da sua foz.

Perdeu-se muito material, mas na sua maioria incapaz. A secção de telegrafia sem fios funcionou até dar o último sinal, com o motor esburacado e as bobines queimadas 13. O seu comandante, tenente Moreira de Sá, obrou prodígios de habilidade e valor para consertar os motores quando, depois de várias tentativas em que se distinguiu um pelotão de infantaria 28, a estação foi removida, debaixo de fogo, para dentro do recinto dos entrincheiramentos.

A perseguição dos alemães pelo planalto fez-se mais sentir em 1 de Dezembro pelo meio-dia, quando a peça de 10,5 cm do cruzador Koenisberg começou a bater com certeira pontaria o posto de Nangadi, que em breve incendiava. Em Nangadi procurava-se organizar uma defesa, mas as tropas estavam sem força moral. Houve algumas repressões violentas para se formarem unidades, distinguindo-se nelas pela sua energia o tenente Gemeniano Saraiva 14. A 21.ª companhia do comando do capitão Curado novamente formou a guarda da retaguarda, enquanto o chefe do estado maior da expedição, com patrulhas, ia até ao Rovuma e ficava alguns dias no Alto da Serra, na crista militar do planalto da margem Sul do Rovuma.

No Alto da Serra foi adoptada a táctica alemã, de activo serviço de patrulhas, de preferência a abrir um campo de tiro. Nesse serviço de patrulhas distinguiu-se o alferes Viriato de Lacerda, conseguindo tirar bom partido dos dedicados cipais.

Contudo os alemães passaram um destacamento de perseguição para a margem sul, o qual teve um encontro com a companhia do capitão Curado, que, entre outras perdas, ficou sem o capitão médico Silva Pereira, desaparecido e dado por morto no mato.

Naquela incerteza das comunicações, que é característica das campanhas coloniais, foi morto, em 7 de Janeiro de 1917, o capitão de cavalaria Ferreira da Silva, com algumas praças, quando retirava de noite num camião, depois de desempenhar uma missão de parlamentário, afirmando a patrulha alemã, que fizera a emboscada, desconhecer a qualidade de parlamentário de quem passava.

Cessara o avanço dos portugueses em território alemão, sendo seguido por uma rápida retirada, somente restando na margem Norte do Rovuma o posto colocado na Fábrica, junto à foz do rio, posto que foi evacuado meses depois, por desnecessário e fatigante para a guarnição.

Nos meados de Dezembro começaram as chuvas torrenciais naquela região e logo subiram as águas rapidamente constituindo o rio um fosso insuperável. Esta circunstância permitiu que as nossas tropas tomassem fôlego; uma melhor alimentação foi dada aos soldados indígenas distribuindo-se-lhes café de manhã 15 e assim voltaram a ser reocupados os nossos postos da margem sul, sendo a primeira companhia a dar o exemplo de marcha, a 21.ª do capitão Curado.

Três cruzadores ingleses vieram sucessivamente visitar-nos e um deles trazia um avião, que nalguns voos tirou fotografias dos nossos postos.

O General comandante da expedição tinha adoecido gravemente e o Governo autorizara o seu regresso à Metrópole. A campanha estava num ponto morto, os sul-africanos iam retirar em grande número, sendo substituídos por tropas negras inglesas vindas da África Central. Aquela insistente informação de que a guerra estava a acabar, não se confirmava.

Mas, assim como, ao referirmo-nos ao combate de Tanja, observámos que esse sucesso dos alemães conseguira neutralizar os ingleses durante o ano de 1915, assim também agora, depois de Nevala, termo das operações na zona secundária do Rovuma em 1916, podemos repetir que os alemães conseguiram neutralizar a fronteira portuguesa durante o ano de 1917, em que comandou as nossas forças o Governador Geral, Álvaro de Castro, que consumiu o primeiro semestre num trabalho lento de indispensável reorganização 16.

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Notas:

1. Revista Militar – 1919. Número comemorativo da Grande Guerra. (voltar ao texto)

2. História da Guerra, do jornal Times, Volume 19, parte 236, pág. 41. (voltar ao texto)

3. Ordens de serviço da Expedição de 1916. Arquivos do Estado Maior do Exército, Ministério das Colónias e Quartel General de Moçambique. (voltar ao texto)

4. Tropa de África, de Carlos Selvagem, pág. 130, 2.ª edição. (voltar ao texto)

5. General Gomes da Costa, A Guerra nas Colónias, pág. 165 e 170. (voltar ao texto)

6. António de Cértima, Epopeia Maldita. Diário de um expedicionário. (voltar ao texto)

7. Livro de Ouro da Infantaria, 1922 – Artigos do capitão Curado e do C.E.M. págs. 135 e 166. (voltar ao texto)

8. Ordem do exército (2.ª série) n.º 6, de 25 de Março de 1916. (voltar ao texto)

9. A adriça embaraçou-se e a bandeira ficou a meio do mastro. Mau prenúncio? ... (voltar ao texto)

10. Como Fizeram os Portugueses em Moçambique, tenente Mário Costa. pág. 99. (voltar ao texto)

11. Revista Militar – 1928, pág. 458. «Coluna de Socorro a Nevala». (voltar ao texto)

12. Cartas de Moçambique, tenente Mário Costa, págs. 143 a 155. (voltar ao texto)

13. A Grande Guerra em Moçambique, capitão A. J. Pires, pág. 78. (voltar ao texto)

14. Revista Militar – 1930, pág. 305. (voltar ao texto)

15. Ordens de Serviço da Expedição de 1916. Logo na Ordem n.º 1 se determinava que a instrução às tropas fosse registada nos diários de campanha das unidades e que a instrução sobre higiene fosse diária, fazendo notar às praças a gravidade de infracções a esses deveres. (voltar ao texto)

16. O Governador Geral assumiu o comando das forças por Decreto n.º 2.924 de 4 de Janeiro de 1917, quando regressou à metrópole o General Ferreira Gil. (voltar ao texto)

Fonte:  

Coronel Eduardo Azambuja Martins, «A campanha de Moçambique»,
in General Ferreira Martins (dir.), Portugal na Grande Guerra, Vol. 2, Lisboa, Ática, 1934,
págs. 155 - 168

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