Maquiavel por Rosso Fiorentino

Retrato de Maquiavel (detalhe)
por Rosso Fiorentino (c. 1517)

 

O pensamento de Maquiavel segundo o
filósofo ALEMÃO Eric Voegelin

 


Tábua das Matérias:

1. Circunstâncias históricas e biográficas
2. O trauma de 1494
3. A Tradição Italiana

3.1. Collucio Salutati
3.2. A Historiografia Humanística

4. O Horizonte Asiático

4.1. Poggio Bracciolini (1380-1459)
4.2. A Vita Tamerlani

5. Vita di Castruccio Castracani
6. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, 1513-1522
7. O Príncipe
8. Conclusão

 


 

1. Circunstâncias históricas e biográficas

 

Maquiavel permanece ensombrado pela condenação como autor de uma obra famosa, publicada postumamente com um título dado pelo editor, e na qual é hábito destacar o conselho de que, em política, os fins justificam os meios. Esta caricatura é agravada pela sua reputação de figura isolada e monstro imoral. Maquiavel nasceu em 1469, sendo secretário da Signoria de Florença desde 1498 até à restauração de Giuliano de Médici, em 1512. A sua mais notável actuação foi criar uma milícia popular. O interlúdio republicano levou-o ao estudo da política: o conhecimento das regras de acção forneceria a chave de êxito. Aos 43 anos iniciou a redacção dos livros que o tornaram conhecido, Storie Florentine, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, Vita de Castruccio Castracani, Il Principe. Mas vida e obra separam-se aqui porquanto o pensador que emergiu destas obras pouco tem a ver com o político apagado que foi e o eventual pensador cínico que poderia ter sido. O seu contemporâneo Francesco Guicciardini, nascido em 1483, partilhava um idêntico republicanismo e pessimismo desprezivo da natureza humana, também levou a cabo uma análise desapaixonada da vida política mas não teorizou a política. Pelo contrário: aceitava o fluxo histórico sem distanciamento espiritual. Foi mais "cínico" que Maquiavel até porque, apesar de convicções em contrário, serviu o Papa e os Médici. Considerava que a estrita racionalidade da política de poder não deve ser perturbada por motivações de ordem espiritual ou moral. A luta quotidiana pelo poder, na acção diplomática e militar, não deixam espaço para o sonho. E é este homem que nas suas observações sobre os Discorsi (...) descreve Maquiavel como um entusiasta, um pouco irrealista e optimista.

 

2. O trauma de 1494

 

Maquiavel tratou os novos problemas de política de poder num nível especulativo. Sabia que a desintegração da Cristandade em Igreja e Estados nacionais afectara a ordem temporal e espiritual do Ocidente. Desintegração significa literalmente quebra do sentido do todo espiritual e implicava uma obsessão pelas jurisdições legais, pela insistência em direitos e pela procura de interesses pessoais e institucionais. Autores ex-conciliaristas, como Cesarini, Piccolomini e Cusa, acabaram por concordar que uma só cabeça deveria assumir a representação efectiva dos interesses da Igreja para que esta não desaparecesse devido à paralisia parlamentar ou às divisões nacionais; tornaram-se monarquioptantes. No campo temporal, verificou-se idêntica concentração da função representativa do monarca nos processos de unificação da França, Espanha, Portugal e Inglaterra.

Em Itália, a evolução foi muito diferente. O sistema político italiano no séc. XV assentava na balança de poder entre cinco estados: Nápoles, Florença e Milão equilibravam o poder de Igreja e Veneza. As desinteligências periódicas nesta aliança eram colmatadas, até Ludovico Sforza apelar à intervenção francesa. Em 1494 Carlos VIII, rei de França, invade a Itália e inicia um período multissecular de ocupação estrangeira. Piero de Médici é expulso de Florença pelo regime republicano. Os invasores franceses, espanhóis e alemães reduziram à impotência a mais civilizada área europeia. E, facto traumático, a invasão não resultava de desequilíbrio económico, revolução social ou defesa de princípios religiosos ou políticos. Era um caso puro de vitória de um poder militar superior sobre outro pior equipado. Maquiavel partilha a experiência desta geração que assiste à destruição da ordem pelo poder bruto. Para quem sofre este trauma, a moralidade deixa de contar em política. O moralista é visto como o oportunista que se aproveita do status quo para manter os outros em lugares inferiores; é preferível descrever a realidade imoral do que tentar encobrir a imoralidade do poder. A teoria política deve concentrar-se na racionalidade da acção política e na organização militar. A resposta política seria a criação de um poder nacional italiano. A resposta militar seria a criação de uma milícia nacional, patriota e republicana, que se opusesse com êxito à artilharia francesa e à infantaria suíça que destruíam as fortalezas e a cavalaria italiana. Mas esta visão, obcecada por uma realidade parcial, acabava por distorcer os próprios acontecimentos. A experiência de Maquiavel é traumática porque o cega para o facto de que o mistério do poder não ocupa toda a política nem esgota a natureza humana.

 

3. A Tradição Italiana

 

As diversas fontes de Maquiavel estão pouco divulgadas. Em primeiro lugar, a própria tradição institucional do poder eclesiástico, em particular a pacificação e unificação dos Estados da Igreja levada a cabo pelo cardeal Albornoz. As Constitutiones Egidianae, promulgadas no Parlamento de Fano em 1357 e apenas abolidas em 1816, organizavam os Estados da Igreja como um senhorio temporal da Santa Sé. Transformaram uma sociedade de poderes feudais numa instituição centralizada, com a divisão dos Estados em províncias dirigidas por reitores e podestás, sobre os quais pendiam múltiplas limitações que obrigavam à rápida circulação dos dirigentes: não podiam exercer no local de origem, tinham cargos limitados a seis meses, eram reelegíveis apenas passados dois anos e eram impedidos de fazer coligações.

3.1. Collucio Salutati. 

Chanceler de Florença desde 1375, Salutati procura na sua obra De Tyranno de 1400 retirar o estigma de tirania ao governo puramente secular. Remove a Christianitas como atitude legitimadora da acção política. Abandona as considerações teológicas; trata o estado como realidade autónoma e isola a esfera da política secular de contextos mais amplos. Considera que César não era um tirano mas sim um salvador da pátria que pôs fim à guerra civil e cujo principado se tornara inevitável face ao fraccionamento do poder, entre o senado, os equites e a plebe.

3.2. A Historiografia Humanística. 

Na sequência de Salutati, surgem outros chanceleres humanistas, tais como Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini, Benedetto de Accolti e Bartolomeo della Scala. Apresentam uma história oficial a fim de prestigiar o estado e impressionar o estrangeiro. Seguem Tito Lívio como modelo, concentrando-se na descrição de guerras e revoluções, excluindo outros factores. Dramatizam o indivíduo como centro da acção. Secularizam totalmente os problemas políticos e rompem com a visão cristã da história: nada de Providência nem de especulação sobre as quatro monarquias de Daniel. Tratam o Cristianismo como inexistente. O Papa é um príncipe territorial. Há estadistas e chefes militares. A vantagem nacional é único critério de acção política. Fazem propostas num ambiente secular anti-religioso e os juízos que emitem não são afectados pelas preferências pessoais. Mas o ambiente que retratam é muito mais histórico que o esboçado por Maquiavel.

 

4. O Horizonte Asiático

 

O Ocidente lembra-se ciclicamente que vive na sombra da Ásia. A cadeia de acontecimentos que se inicia com a unificação da China por Ch'in Shi Huang Ti em 221 A.C., e a consequente concentração e derrota do império Hiungnu a norte da Grande Muralha da China, leva essas populações nómadas a migrarem para Ocidente, empurrando tribos germânicas à sua frente, uma história posta em lenda nos Niebelungenlied. Em 451, os Hunos são detidos em Châlons. Agostinho começa a escrever a Cidade de Deus em 410, após Alarico saquear Roma e conclui a obra em 431, com os Vândalos às portas de Hipona. A invasão dos asiáticos Magiares no séc.X é quebrada em Lechfeld, 955. Nova expansão surge com o império Mongol no séc. XIII. Apesar da vitória em Liegnitz, 1241, a morte de Ogudai conduz as hordas mongóis a interromper a progressão. Datam de então as embaixadas a Karakorum e relatos de viagens como o Itinerarium de Rubruck, a Historia Mongolorum de Piano Carpini e as missões de Saint-Quentin e Ascelino. Os documentos diplomáticos mostram ao Ocidente as ordens de Deus que legitimavam a expansão mongol com o princípio "No céu há Deus o eterno; na terra Gengiscão é único e supremo senhor". A partir dos finais do século XIV, a vaga dos turcos otomanos atinge a Europa em 1354, em 1453 conquista Constantinopla e em 1520 alcança Viena. Os choques com os Mongóis de Tamerlão não quebra o processo de expansão, prosseguido por Maomé I. Trata-se de uma cadeia de acontecimentos de escala mundial sem precedentes. Tamerlão representava uma erupção de poder bruto com altos e baixos, o homem do destino, o príncipe conquistador retratado em inúmeras Vita Tamerlani. Desaparecido o perigo turco no século XVIII, surgiu a imagem da Rússia como ameaça ao Ocidente, descrita por Napoleão e Donoso Cortés.

4.1. Poggio Bracciolini (1380-1459). 

Poggio Bracciolini, chanceler e historiador de Florença foi o primeiro a ocupar-se da Vida de Tamerlão. A propósito da questão tipicamente humanística do valor relativo de armas e letras, não se decide sobre qual concede maior fama; afirma, porém, que o esquecimento das enormes vitórias e conquistas de Tamerlão mostra que mais facilmente as letras alcançam a fama a quem as cultivar assiduamente do que os feitos sem historiador. (Poggii Florentini Oratoris et Philosophi Opera, Basileia, 1538.) Tal como outros humanistas, também Poggio tentava persuadir os príncipes de que os respectivas feitos deveriam ser incorporados na memória da humanidade, através de trabalhos historiográficos bens pagos. Os materiais estavam disponíveis, como bem sabia Eneias Silvio Piccolomini ao dirigir-se a D.João II de Portugal, propondo-se celebrar as navegações. E afinal, Poggio lembrava-se bem de Tamerlão e não era o único a preocupar-se com a fama, um substituto atraente perante a dissolução da preocupação Cristã com o destino da alma.

A salvação eterna estava a ser paulatinamente substituida, desde o séc. XIII, pelo sentimento intramundano que atribui um significado imanente à existência humana. (Jakob Burckhardt, A Cultura do Renascimento na Itália, Parte II, cap.3). Num aspecto, a salvação pela fama assemelha-se à salvação pela graça; muitos são os chamados, poucos os escolhidos. O humanista pode imortalizar-se a si próprio. Mas o homem de estado e o grande capitão precisam dos bons ofícios de um historiador. Ademais, o domínio da acção é governado pela fortuna que favorece uns, fortuna secunda, e destrói outros, fortuna adversa. Nesta concepção renascentista da fama e da fortuna existe uma certa dignidade pagã que irá desaparecer com o impacto da sociedade competitiva pós-Reforma. No séc. XIX, a tensão entre o destino e o valor estará reduzido à atitude totalmente plebeia da sobrevivência dos mais aptos e que o sobrevivente é o melhor: O vencedor plebeu não deseja a sombra da fortuna; quer vencer por mérito próprio e exclusivo. No séc. XX surge a inclassificável postura de que "nothing succeeds like success": ao optimismo brutal dos colectivistas e materialistas de esquerda segue-se o optimismo hipócrita do materialismo de direita que ignora as vítimas. A adoração do sucesso faz coincidir as duas dimensões da acção - a dimensão do poder que leva à vitória e à derrota e a dimensão dos valores do bem e do mal. - e o fluxo da acção torna-se progressivo. Poggio, tal como Maquiavel, ainda admite uma tensão entre fortuna e virtù. Mas o seu pessimismo dará lugar ao idealismo dos renascentistas os quais, ao liquidarem a tensão entre fortuna e valor, existência e espírito, sapam as bases existenciais do Cristianismo.

Apesar de fraquezas humanistas e da proposta de auto-salvação pelas Letras, Poggio não é um megalómano; apenas está fascinado pela realidade do poder no seu tempo. Experimenta a sensação paradoxal de um homem que anda à caça de manuscritos antigos, a ponto de trapacear livreiros e praticamente roubar obras, mas que, simultaneamente, está saturado com a Antiguidade. A glória que foram Roma e Grécia já passaram; agora é preciso cantar a nova idade: "Eu não sou daqueles cuja memória do passado fê-los esquecer o presente". Mas onde situa ele grandeza do presente ? Não nas desordens europeias, nem na paralisia dos concílios nem na desintegração da Cristandade. Está nas conquistas de Tamerlão, o asiático, que ultrapassam tudo o que se viu. Ao menos na grandeza da miséria, a época presente é superior à Antiguidade. Portanto, porque razão não lançar luz sobre os novos feitos e contar a história do nosso tempo ?

Esta ironia de Poggio é um sintoma da visão pessimista de que a civilização pode ser abafada pelo poder. Poggio era um humanista e conhecia os clássicos; sabia que a velha luta entre a Europa e a Ásia ressurgia num Tamerlão que ocupa a posição de Xerxes e numa Europa que não tem Atenas, nem Esparta nem Macedónia. A sua descrição de Tamerlão será, em breve, superada por outras mais requintadas mas tem o interesse de ser a primeira feita com o objectivo de provar que a época presente é pelo menos tão grandiosa quanto a Antiguidade. Emerge assim a imagem de um novo tipo de herói, conquistador e destruidor, que saqueia e erige monumentos. Cidades, povos e humanidade são a sua argamassa. E numa idade em que o significado do poder e da política começa a ficar reduzido à auto-expressão individual, Poggio escreve o primeiro espelho do novo tipo de príncipe. Perante este fundo demoníaco de poder, o Príncipe de Maquiavel propôe uma aura mística de salvação nacional.

4.2. A Vita Tamerlani.  

Após o ensaio de Poggio, outros autores acrescentaram detalhes à vida de Tamerlão, até que Eneias Silvio Piccolomini (1405-1464), Papa Pio II desde 1458, fixou o padrão biográfico. Tamerlão teria sido de origem humilde. Afirmou-se entre o seu povo. Conquistou a Transoxiana e a Anatólia. Venceu o sultão otomano Bajazeto em Ankara. Disciplinou um exército especializado em cercos. Conquistou a Síria e o Egipto. Ficou conhecido pelo terror e pela crueldade. Enriqueceu Samarkanda e considerou-se a si próprio como um flagelo, Ira Dei, comparável a Aníbal. O que nos aparece hoje como uma falsificação da história foi, na época, uma tentativa de modelar materiais históricos para construir um tipo ideal, uma imagem mítica. Tamerlão veio do nada e arrastou povos inteiros, descritos na clássica parada de nomes de cidades destruídas. O resultado é um quadro da grandeza terrífica do poder pelo poder. A ideia de uma força bruta que irrompia do nada, tornava-se aliciante para o secularismo humanista. Era reforçada pelas comparações clássicas com Aníbal e Xerxes, com a luta da Ásia contra a Europa. Tratava-se, afinal, da tentativa de sondar o mistério do poder mediante a criação de uma imagem mítica para além do bem e do mal.

 

5. Vita di Castruccio Castracani

 

Na obra, Vita di Castruccio Castracani (1281-1328), senhor e duque de Lucca, Maquiavel segue o padrão da Vida de Tamerlão para transmitir un grandissimo exemplo, o mito do herói político cuja criação de ordem social manifesta uma força para além do bem e do mal. A ênfase na crueldade de Castruccio sugere que a ordem política depende de um poder intramundano. Os materiais históricos são deformados de modo a criar a imagem de um fundador de um stato, mas cuja virtú foi frustrada pela fortuna. A fortuna procede como quer; é ela, não a prudenza, que confere a grandeza. E contudo, diferentemente do que Maquiavel escreve, Castruccio não era um esposito, uma criança abandonada, mas um descendente de aristocratas de Lucca; não era solteiro pois casou e teve filhos; era um pro-vigário imperial, não propriamente um patriota; Enfim, as teorias militares de Castruccio coincidem estranhamente com as de Maquiavel.

 

6. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio 1513-1522

 

Os Discorsi tratam da fundação, organização, expansão e restauração da República Romana, com uma sistematização que deixa muito a desejar. A sequência de tópicos é muitas vezes associativa: muitos surgem a despropósito, outros são demasiado longos, tomando mesmo a forma de digressão como o capítulo III,6 sobre as conspirações. O Livro I trata da fundação de Roma, o Livro II dos meios militares de expansão, e o Livro III de como restaurar uma cidade corrompida. Os problemas são tratados como discussão de exemplos históricos e extraidos principalmente dos Anais de Tito Lívio. A história de Roma é o modelo de todas as histórias das repúblicas italianas. Ao invés do que fizera Salutati, César volta a ser apresentado como tirano e Bruto o herói, precursor do príncipe que irá restaurar Roma. Obra de um uomo buono preocupado com a sua pátria, o livro é dedicado aos giovani, como os Alemanni, Buondelmonti, Filippo dei Neri e Jacopo Nardi que se reuniam nos jardins de Cosimo Rucellai e aos quais Maquiavel lia os Discorsi e a Arte della Guerra. Alguns deles participaram na conspiração de 1522 contra os Médici, tendo Luigi Alemanni sido executado.

Entre os princípios para o estudo da política, o primeiro trata da legitimidade de reflectir no presente à luz do passado. Maquiavel não era um cientista mas também não fragmentava a história numa sequência de acções individuais. Não recorre a uma psicologia de prazer e dor, de auto-interesse ou de materialismo das paixões. O homem tem de ser integrado na natureza e na história e estas revelam a constância das paixões humanas. A vantagem de estudar a história da Antiguidade Romana é que esta oferece um ciclo completo de acontecimentos:"Perchè tutte le cose del mondo, in ogni tempo, hanno il proprio riscontro com gli antichi tempi". Se nos queremos orientar numa época de crise, temos de comparar antiche e moderne cose para mostrar o paradigma antigo e apontar para as possibilidades de imitação moderna. Retém de Políbio a descrição do início da existência dos homens como animais isolados e que depois se associam e escolhem os mais fortes para governantes. (Discorsi, I, 2) Este grupo de nobres cria leis para ditar os comportamentos correctos e castigar os réprobos. Estabelecida a legalidade, são os mais prudentes e justos que ascendem ao poder; depois desta forma inicial electiva se ter transformado em monarquia hereditária, começa um ciclo político com males inevitáveis. A unidade política mais abrangente é o politeion anakyklosis, a revolução cíclica das formas políticas, determinada pela physeos oikonomia, a ordem da natureza, exposta por Políbio em Histórias, VI, 9, 10. Um regime começa pela forma monárquica, passa por tirania aristocracia, oligarquia, democracia e degeneração permissiva que dará lugar a nova monarquia. Este é o círculo da república. Quando a república degenera, o cerchio pode recomeçar mas, mais frequentemente, é conquistada por vizinhos. Será sábio o legislador que souber equilibrar estas forças.

Até aqui, nada há de de original. O Livro II resume a história da sociedade como uma ordem no cosmos, um todo político, religioso e civilizacional. É o mito da natureza que deixa liberdade à acção restauradora do homem. As acções de fundação e restauração manifestam a força cósmica do indivíduo; e é essa força que é a substância da ordem. E embora os meios devam estar ao serviço dos fins, estes fins só são valiosos se forem manifestações da virtude ordenadora. A ética de Maquiavel tem de ser compreendida à luz deste mito do herói e da virtú. O amor Dei cristão desapareceu mas não foi substituído pelo amor sui; não é o vontade de poder que comanda a acção. O conspirador é importante porque se rebela contra o tirano que confunde a sua ambição com a principesca virtù. As repúblicas são corpi misti, seres naturais mas não organismos, corpos compostos por homens que vivem na tensão entre o interesse próprio e o interesse comum. Os desejos e a insaciedade levam-nos a criticar o presente, louvar o passado e desejar o futuro. E é deste material humano que são feitas as nações. Também Roma teve começos pouco auspiciosos, e rara é a sociedade como Esparta que possui um sábio legislador como Licurgo. O segredo do êxito Romano foi o regime misto. Rómulo fundou em Roma uma comunidade viva (um vivere civile) matando o irmão e consentindo no assassinato do co-regente. Parece um mau exemplo. Mas é regola generale que uma república só será bem ordenada se a ordem resultar do plano e da mente de um único indivíduo que pense no bem comum. O facto acusa, o êxito desculpa. A violência usada para a construção não é repreensível. A multidão não pode governar; mas o poder deve retornar ao povo após a morte do indivíduo extraordinário. Vem depois, o que se considera o elemento central da ética de Maquiavel, a sua tábua de valores. Os homens mais excelentes são os fundadores de religiões; seguem-se os fundadores de repúblicas e reinos, os grandes capitães, os homens de letras e os que têm outras ocupações. Os Infames são os destruidores de religiões, e os que são inimigos do povo, da virtude, das letras e das artes, os ímpios, os violentos, os ignorantes, os incapazes, os lisonjeiros e os malvados. (Discorsi, I, 10)

Maquiavel segue a lição polibiana de que a força de Roma residia na sua religiosidade. Onde só houver só virtù sem o culto de Deus, desaparece a república. (Sobre a deisidaimonia em Políbio cf. Histórias, VI, 56, 7). Mas o reverso do reconhecimento da religião como a força mais importante de uma cidade, é a avaliação maquiavélica do Cristianismo. A miséria da Itália seria causada pelo Cristianismo degenerado e pela Cúria Pontifícia, cujas armas impedem a unidade de Itália e cujo luxo corrompe os italianos. A posição de Maquiavel, que morreu confortado pelos últimos sacramentos, não é simples. O Cristianismo mostra-nos a verdade e o caminho da salvação e, por consequência, diminui a nossa estima pela honra mundana; l'onore del mondo era para o pagão a honra suprema. A religião antiga beatificava apenas homens gloriosos, enquanto a nossa religião apenas exalta os humildes e os contemplativos. O Cristianismo valoriza a humildade e a renúncia e despreza a humanidade; os antigos valorizavam a grandeza de alma, a força e glória. O Cristão prefere sofrer o mal do que infligi-lo. Mas Maquiavel admite que tenha sido a má interpretação do Cristianismo que causou a decadência e a menor liberdade dos modernos, subservientes da inacção (ozio) e esquecidos da virtude. O Cristianismo já teria morrido há muito, sem a acção de homens como S. Francisco e S. Domingos e sem a imitação da Vida de Cristo pelas Ordens mendicantes, que deram novo alento à Igreja comprometida pela corrupção dos prelados. A propósito do povo de Florença que se deixou persuadir de que Savonarola falava com Deus, escreve Maquiavel: "Não pretendo julgar se é verdade ou falso; porque de tal homem apenas se pode falar com reverência". Por outro lado, o Cristianismo permite a exaltação e a defesa nacionais e pretende mesmo que honremos e estimemos o país natal; a expansão romana, pelo contrário, quebrou a liberdade dos reinos que conquistava.(Discorsi, II, 2). Resta, esperar por uma reforma da religião (rinovazione) e um novo começo.(Discorsi, III, 1).

Bastam estes elementos para delinear o sistema filosófico de Maquiavel. No centro, uma metafísica da força cósmica que se manifesta em todos os seres, inclusive os estados. A natureza é a ordem total da existência humana na comunidade religiosa e na civilização histórica. As sociedades nascem através da virtù dos grandes indivíduos; a virtù gera tranquilidade, que gera lazer, que gera desordem, que gera ruína; da ruína nasce a ordem, da ordem nasce a virtù; e desta nasce a boa fortuna, que gera a fama. A estabilidade da ordem assenta num laço religiosos: o pensamento de Maquiavel jamais degenera numa apologia do poder. A tradição ética estabelece a tábua de valores religiosos, morais, civilizacionais e ocupacionais. A virtù não se confunde com a vontade de poder. Mas - e Maquiavel debatia-se com esta objecção - a metafísica da força cósmica e o mito da virtude só fazem sentido enquanto o onore del mondo não foi substituído pela visão beatífica de Deus como o bem supremo. Já não vivemos na Antiguidade, reconhece Maquiavel; mas a sua consciência fecha-se ao facto histórico do Cristianismo e oscila entre invectivas, à maneira de Nietzsche, e atitudes de respeito também Nietzschianas. O mito pagão morreu; Maquiavel não é um Cristão nem quer fundar uma nova religião; espera uma reforma que, aliás, chegou, no ano em que completou O Príncipe.

Apesar das hesitações, Maquiavel não era um pessimista. Se uma república morrer, a virtù passará para outros povos; "Quando considero como vai o mundo, acho que que tudo tem sido sempre igual e sempre houve tanto bem como mal; mas o bem e o mal variam de país para país". O mundo e a história não chegaram ao fim, só porque a Itália entrou em decadência. (Introdução ao Livro II). As calamidades históricas podem até ser um estímulo para explorar as possibilidades de retorno às origens. A história mostra como era necessário Roma ser invadida pelos Gauleses para depois reagir. A tarefa do presente é recobrar nova vida e nova virtude. A tarefa é renascer. E o homem de letras, que nem por virtù nem por fortuna pode ser o herói salvador, dedicar-se-á à evocação do príncipe libertador.

 

7. O Príncipe

 

Em 10 de Dezembro de 1513 quando se encontrava no exílio em San Casciano, perto de Florença, escrevia Maquiavel ao seu amigo Francesco Vettori o que fazia ao regressar à noite a casa, após mais um sórdido dia: 

"Debaixo da porta, deixo o que trago vestido e cheio de lama e de lodo e envergo vestes régias. Vestido com garbo, entro na companhia dos antigos e aí sou recebido com gentileza e partilho do alimento que é verdadeiramente meu e para o qual nasci. Não me assusto de falar com eles e de lhes pedir as razões dos seus actos; e eles, por humanidade, respondem-me. Durante as quatro horas seguintes não sinto aborrecimento, esqueço todas as penas, não tenho medo da pobreza nem da morte. Transfiro-me completamente para eles. E como Dante deixou escrito que compreensão sem memória não é conhecimento, aproveitei quanto pude dessa conversação e compus um pequeno livro De principatibus. Aí penetro tão profundamente quanto posso nos pensamentos acerca do tema: debato a natureza dos senhorios, quais as suas variedades, como podem ser adquiridos, mantidos e perdidos. E se alguns desejos meus alguma vez te agradaram, este não te desagradará. O livro deveria ser bem recebido por um príncipe, e especialmente por um príncipe de recente criação, pelo que dedicarei a obra a Sua Alteza Giuliano (de Médici)".

O Príncipe, a mais famosa obra de Maquiavel é um livro póstumo que poderia ter outro título, outro patrono e uma arrumação diferente das suas três partes. Era, afinal, um livro de circunstância. O título original De Principatibus cobre a primeira parte, caps. I - X acerca dos estados, que se dividem em repúblicas e principados e estes em hereditários e adquiridos, além dos senhorios eclesiásticos. O essencial desta primeira parte, caps. III a X, trata dos príncipes novos. A segunda parte deveria abordar os fundamentos do poder - as leis e as armas - mas como não pode haver boas leis onde não há boas armas, os caps. XII - XIV apenas apresentam a organização militar. A terceira parte, caps. XV - XXVI, trata das regras de conduta que um Príncipe deve adoptar para renovar a Itália. O tema do Livro III dos Discorsi, a restauração dos estados, é aqui adaptado ao caso particular italiano.

Se nos fixarmos nestas três partes, O Príncipe parece um livro mal organizado. Foi sugerido que Maquiavel era confuso; que era um oportunista que pretendia agradar aos Médici; ou que a parte realista é seguida por uma parte idealista. Na realidade O Príncipe vai definindo progressivamente o tópico principal. Começa com a descrição de todos os stati, repúblicas e senhorios. No cap. II restringe-se aos senhorios e depois apenas aos novos senhorios. A segunda parte concentra-se nos meios militares em ordem à libertação nacional italiana e a terceira parte é um conjunto de conselhos ao futuro príncipe italiano: o cap. XXVI contém um apelo directo aos Médici. Maquiavel passa de modo admirável da classificação dos stati para o fundamento existencial do poder. Com grande economia de linguagem, classifica os diversos tipos de stati e depois passa à diferenciação das variantes de virtú (caps. II - XI). Nos caps. XII - XIV trata das questões de guerra. No cap. XV afasta todas as considerações de ordem moral acerca da política. Na luta pela existência, o homem comporta-se como um animal e será a estrita racionalidade desse comportamento que decidirá da vitória ou da derrota. Mas o homem é mais do que um animal. A vontade de resistir e de criar uma nova ordem vem de uma fonte diferente É possível apelar à ordinata virtù que resiste à fortuna. (cap. XXV) Enfim, de acordo com as regras de construção dos mitos, o livro encerra com um apelo, de profundis, para que se erga o salvador da pátria: "As armas são santas para aqueles em que constituem a derradeira esperança". A partir da classificação sistemática e clarificação de conceitos, o Príncipe desce, passo a passo, ao fundo da força que cria a ordem na história. O primeiro passo é a força das armas: o segundo, a racionalidade do animal político; o terceiro, a força construtiva que desafia a fortuna; e enfim, a fonte de salvação, de profundis e a visão apocalíptica que anuncia a hora do redentor. Estamos perante uma dramaturgia criada por um grande artista, filósofo e patriota.

O modelo principal de Príncipe surge no cap. VI, sobre os novos Senhorios conquistados pelas armas e pela virtude. O homem humilde que se eleva ao poder é um dos grandissimi esempli a imitar. Moisés, Ciro, Rómulo e Teseu devem o êxito à virtù. Todos enfrentaram situações desesperadas das quais irrompeu a ordem. O herói tem de enfrentar a lei estabelecida, os interesses do status quo, a suspeita dos descrentes, o medo e a falta de imaginação dos seguidores. Para isso precisa de força porque os profetas desarmados (Savonarola) não ganham batalhas. O profeta em armas é seguido pelo príncipe que adquire poder através das armas estrangeiras e da fortuna, como sucedeu com César Borgia. Tem de usar a virtù para transformar um acidente de poder numa realidade estável, ao abrigo da fortuna. O terceiro modelo de príncipe é Agatocles, que nada deve à fortuna nem à virtude pois os massacres que levou a cabo após adquirir o poder não lhe deram fama. O quarto tipo é o do governador que se ergue por consenso dos concidadãos, para o que basta uma astuzia fortunata.

No cap. XV que inicia a listagem das notórias regras de conduta do Príncipe, Maquiavel insiste que está a decrever a verdade da política, habitualmente distorcida por outros autores. O debate é orientado pelo postulado que a observância de regras morais em política conduz geralmente à derrota: "A vida como é, está tão distante da vida como deveria ser, que um homem que desiste do que está feito, em prol do que deveria fazer, engendra a sua ruína mais do que a preservação". O príncipe deve ou não praticar o bem, conforme as necessidades. Há dois modos de lutar: com as armas ou com as leis, sendo este o próprio dos homens e o outro próprio dos animais. Ora o príncipe deve saber usar o animal e a besta que residem dentro de si. O centauro Quíron foi o tutor de Aquiles. O príncipe tem de ser como a raposa e o leão "porque o leão não se sabe proteger das víboras, nem a raposa dos lobos". O príncipe deve violar a palavra e todas as regras de fé, caridade, humanidade e religião embora as louve em palavras, porque os homens admiram a fachada da virtude e não se importam de ser iludidos pelos poderosos. Admiram o êxito e, se a aparência fôr boa, não buscam a realidade que está por detrás (cap. XVIII): "A massa é conquistada com aparências e êxito". O Príncipe não está isento da regra da imperfeição humana. A condição humana não permite possuir todas as virtudes. O príncipe deve prudentemente evitar a má reputação. Mas não se pode dar ao luxo de ter moralidade, porque a massa das pessoas pertencem à canalha, ingrata, desconfiada, medrosa e ávida. Seguem os poderosos enquanto vêem proveito; tudo oferecem, enquanto não são realmente precisas; mas revoltam-se quando as carências chegam. Como os laços de gratidão dependem do proveito, o príncipe deve confiar nos laços do medo. Pode mesmo matar mas não deve apropriar-se dos bens do morto. A massa aprecia a segurança no lar e nos bens. São poucos os que desejam ser livres de mandar: todos os outros só desejam a liberdade para viver em segurança.

Ao estabelecer diversos sentidos da fortuna, Maquiavel transita da esfera da observação realista para a esfera da fé. A sua esperança é a substância da fé, onde a ordinata virtù deve prevalecer. Muitos crêem que a existência é governada pela fortuna e por Deus. Mas a fortuna só governa metade das nossas acções, deixando-nos o controle da outra metade. Neste primeiro sentido, a fortuna determina a estrutura da situação; metade é necessidade, a outra metade depende da virtude. É preciso agir impetuosamente, pois a fortuna é feminina. A fortuna é, depois, uma relação entre as circunstâncias e a virtude de um homem. O carácter é constante; se acompanhado de boa fortuna, as circunstâncias não o deformam; a má fortuna não lhe dá oportunidades. Enfim, a fortuna torna-se quase idêntica à virtude porquanto selecciona o homem virtuoso que reconhece a oportunidade. Neste sentido, não podemos agir contra a fortuna e também não nos podemos entregar a ela, como se conhecêssemos os seus planos: a esperança é possível.

É essa esperança que surge na exortação final. A situação é desesperada. O tempo parece propício a um herói salvador. A Itália pede um redentor: a Casa de Médici foi visivelmente dignificada por Deus, que lhe conferiu o Papado. A constelação é favorável. Assistiram-se a portentos: "O mar abriu-se: a nuvem mostrou o caminho; da rocha jorrou água e o maná caiu do céu". Mas como Deus não fará tudo, o homem virtuoso deverá pegar em armas contra a violência bárbara. Esta exortação apocalíptica deve muito à série dos Dux ex Babylone, sugeridos pelo horizonte cultural que abrange Dante, Joaquim de Fiora e Cola di Rienzo e que tivera uma primeira incarnação em Frederico II Hohenstaufen. Nas Vidas de Castruccio Castracani e de Tamerlão Maquiavel absorveu elementos da Antiguidade mítica. Mas o terror inspirado por Tamerlão como castigo dos pecadores, flagelo de Deus, ultor peccatorum, terror gentium, são elementos apocalípticos de origem pós-Cristã, determinantes na formação da imagem do príncipe.

 

8. Conclusão

 

Basta o conhecimento da obra sem interpolações críticas para fazer desaparecer muitos pseudo-problemas. A ética de Maquiavel reconhece o facto elementar que a experiência humana comporta um conflito de valores. A moral de tipo platónica poderá afirmar que infligir o mal é pior que sofrê-lo. Mas este princípio moral não pode ser princípio de governação política pois impossibilitaria a realização de outros valores, a começar pela existência pessoal, a existência da comunidade e os valores da civilização realizados na história. Se a moral espiritual é um problema na existência humana, é precisamente porque esta não se reduz a espírito.

Maquiavel não inventou uma dupla ética que esquizofrenicamente separe a moral pessoal da razão de estado. Jamais pretende que as suas recomendações tenham valor moral. A ética de Calicles no Górgias é que a justiça é o direito do mais forte e o direito da força vale mais que a força do direito. Maquiavel diria apenas que a força permite instaurar a ordem, libertar a Itália e ganhar a honra mundana; mas nunca diria que estes valores são a justiça e a moralidade. Está consciente que eles exigem acções imorais e que carecem de justificação. Toda a ordem política comporta uma parte acidental e arbitrária de crueldade e violência, de injustiça residual que por, convenção social tácita, é silenciada pela esfera pública. O autor que chama a atenção para essa violência torna-se impopular. Ademais Maquiavel não parece preocupado com as implicações espirituais da sua filosofia da conduta. Sem manifestações exteriores de cristão, acreditava no mito da natureza, numa variante do estoicismo de Políbio. Tal espiritualidade intramundana cumpre-se através da virtude na comunidade. O spirito italiano deve manifestar-se numa nova ordem; república nacional em vez de Respublica Christiana; honra mundana em vez de beatitude; a fama em vez da graça. Sendo assim, não é a santificação dos meios que perturba; essa é uma dimensão incontornável da política. O que perturba mais fundamente é o paganismo dos fins, a incarnação mundana do espírito, a alma que adquire santidade ao manifestar a sua virtude no mundo. Trata-se de uma singular renascença do mito pagão da natureza. Maquiavel tem uma tábua de valores que abrange a existência humana em sociedade, desde o laço religioso até às mais humildes ocupações. Compreendeu num nível teorético a dialéctica da acção e do livre arbítrio. A fortuna governa o curso da história, quer cegando quer conferindo ao homem de virtú a oportunidade de ver, cumprindo o papel de uma providência imanentizada. Este determinismo da fortuna apresenta-se sub specie Dei. Mas sendo inescrutáveis os planos de Deus, Maquiavel não se apresenta como um intelectual que conhece o curso da história. A história será modelada pela virtú que acreditar em si própria. A esperança é a substância da fé na salvação política, como se verifica no final algo apocalíptico e semi-romântico de O Principe: Virtù contro a furore/ Prenderà l'arme, e fia el combatter corto;/ Ché l'antico valore/ Nelli italici cor non é ancor morto".

Embora não fosse um espiritualista, Maquiavel tem vida espiritual; não é um homem irreligioso. A sua religiosidade pagã tem de ser enquadrada num cenário de onde o significado da história está a desaparecer, submerso por sucessivos traumas: 1494, historiografia humanística, desintegração da ordem medieval Cristã, invasões asiáticas. Sempre que se negligencia o problema do curso natural de sociedade política, como sucede em interpretações Cristãs deficientes, torna-se necessário valorizar uma estrutura supostamente natural da história. É neste contexto que se torna notável a explicação do ciclo político de corrupção e redenção nacional. Seria niilista e materialista, quem, simplesmente se conformasse com os acontecimentos. E a reintrodução do problemática do ciclo significa uma recuperação da interpretação da história e da política que através de Giambattista Vico, conduz a elaborações mais recentes de Meyer, Spengler, Toynbee e Voegelin.

O paganismo de Maquiavel é negativo porquanto o Cristianismo não estava morto conforme supunha. Maquiavel sabia que o Cristão vive essencialmente de reforma: conhecia a obra de S. Francisco, de S.Domingos e de Savonarola. Uma vez que o Cristo veio ao mundo não é possível regressar ao paganismo ainda para mais pré-platónico; todos são chamados à salvação. Mas a experiência pessoal de Maquiavel foi mais forte: não considerava o mito da natureza, a fé na virtude e na honra mundana apenas uma teoria mas a expressão da sua religiosidade. Mas este spirito italiano implicava a rejeição trágica do significado transcendental da história, e a pouca fé obrigava a um fechamento da consciência à realidade suprema. A atitude apocalíptica de O Príncipe, terminado em 1516, ano anterior à a afixação das 95 teses de Lutero, diminuirá nas obras posteriores. A Vida de Castruccio (...) contém as seguintes palavras do moribundo Castracani ao jovem Guinigi: "Se eu soubesse, meu filho, que a Fortuna abandonaria a meio do caminho essa glória que me prometera tantos êxitos, não me teria esforçado tanto". Maquiavel morreu em 1527, aos 58 anos.

 

© Mendo Castro Henriques, para a tradução e adaptação.

Fonte:

Mendo Castro Henriques,
Eric Voegelin, Estudo de Ideias Políticas de Erasmo a Nietzsche,
Lisboa, Ática (Filosofia), 1996

A visitar:

  • O espaço de Mendo de Castro Henriques na Internet
    Descrevendo as suas muitas actividades académicas, tem áreas sobre ciência política e filosofia, disponibilizando também este e outros textos de Eric Voegelin, para além de muitos artigos de sua autoria.
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