O Programa para a Democratização da República

 

 

Programa para a Democratização da República

 

 

"A observação desapaixonada do panorama nacional mostra-nos a todos como, à medida que passam os anos, constantemente se agrava o conjunto dos problemas políticos em que vivemos, numa progressão inversa à da capacidade do regime para lhes fazer face."

 

Como afirmou Mário Soares "O Programa para a Democratização da República não representou um programa mínimo que toda a Oposição pudesse subscrever, limitado prudentemente - para isso mesmo - ao plano das consabidas generalidades. (…) Não pretendeu ser - nem o poderia, no contexto da época - uma mera declaração de princípios gerais como, por exemplo, o comunicado - programático da constituição do MUNAF. Quis ir mais longe e ser já um programa no sentido estrito do termo - definidor de um ideário e de uma política coerente de centro esquerda - susceptível de delinear uma verdadeira alternativa para o fascismo salazarista. O seu objectivo era dar a conhecer, tanto interna como externamente, a existência de uma linha de pensamento, de estilo europeu, capaz de assumir o poder, em qualquer oportunidade favorável, preenchendo o «vazio político» criado pelo salazarismo, e desmentindo assim o velho dilema absurdo da propaganda oficial de que as únicas alternativas para Salazar seriam «o comunismo ou o caos». (…)

 

Era tão só uma iniciativa de ordem meramente política, destinada a afirmar, responsavelmente, a existência de uma orientação política coerente, aplicável a todos os sectores da administração pública nacional e subscrita por alguns dos homens públicos capazes de a levar a cabo. Representou, por isso, algo de novo no panorama político português - apesar das incompreensões agudas que suscitou.

 

A ideia foi, na sua maior parte, realizada pelo grupo Resistência Republicana, sob a orientação efectiva do professor Azevedo Gomes, aliás perfeitamente identificado com o grupo, no plano doutrinário. (…)

 

Porém, o Programa ,quase todo elaborado por uma equipe composta por José Ribeiro dos Santos, Ramos da Costa, Piteira Santos e por mim (que constituíamos a comissão redactora, sob a presidência de Azevedo Gomes) não representou de modo algum o «ideário» do nosso grupo, situado nitidamente mais à esquerda: alargava-se para a direita, até aos republicanos liberais centristas (tipo Acácio Gouveia) e, noutro sentido, até ao grupo «Seara Nova», nessa altura integrado por Nikias Skapinakis, Rui Cabeçadas, etc.

 

A colaboração da «Seara Nova» foi particularmente difícil de obter, dado que muitos dos «seareiros» de então eram particularmente sensíveis às criticas do Partido Comunista, que via com desagrado no Programa a afirmação de uma orientação política perfeitamente autónoma. (…)

 

A tarefa de estruturar um texto de base com o Programa para a Democratização da República não foi nada simples. (…)

Assim, a elaboração do primeiro projecto, levou alguns meses de trabalho árduo a pôr de pé e as discussões a que deu lugar, até à redacção definitiva, ocuparam algumas dezenas de sessões plenárias, que se prolongaram por horas a fio e durante bastante tempo. Por isso, tendo inscrita a data de 31 de Janeiro de 1961, o Programa só veio a público em meados de Maio numa conferência de imprensa mais ou menos «clandestina», isto é: que teve lugar, bem entendido, à luz do dia, no escritório do Acácio Gouveia, mas de que a PIDE ignorou tudo até depois de realizada!

 

No dia seguinte de manhã cedo, o «feito» custar-nos-ia caro: Acácio Gouveia, Gustavo Soromenho e eu fomos presos! Depois, sucessivamente, foram sendo detidos os outros signatários do Programa, em número de sessenta e dois e cobrindo praticamente todo o País - por espaços de tempo variáveis segundo as presunções de culpabilidade estabelecidas arbitrariamente pela PIDE. Eu tive então a honra de ser o mais contemplado na lotaria: apanhei seis meses certos de prisão sem culpa formada. (…)"

 


 

APRESENTAÇÃO  

(...)

2 - IMPERATIVO NACIONAL

A decisão de preparar e de pôr à discussão um programa de alternativa política revelou-se como um verdadeiro imperativo das próprias condições da vida nacional, em que um angustioso e crescente estado de crise impõe à consciência dos Portugueses a obrigação inalienável de acautelar o futuro do País. 

Em boa verdade, não pode a vida de um povo entender-se como um simples momento histórico, mas como toda a linha evolutiva que vem das raízes do seu passado e que se projecta rasgadamente no seu futuro. E o futuro do País mesmo o futuro mais próximo, revela-se aos nossos olhos perturbado pelas mais densas preocupações, não já, apenas, no plano ideológico ou de estrutura política, mas num plano verdadeiramente nacional, através de realidades que não é possível por mais tempo esconder ou ignorar. Pelo contrário, torna-se cada vez mais necessário olhar essas realidades corajosamente de frente. ir ao seu encontro, ganhar delas inteira consciência e preparar as soluções que caibam pela aplicação firme de vontades esclarecidas.

 

A observação desapaixonada do panorama nacional mostra-nos a todos como, à medida que passam os anos, constantemente se agrava o conjunto dos problemas políticos em que vivemos, numa progressão inversa à da capacidade do regime para lhes fazer face. Podia assim dizer-se, sem que a afirmação traduza mais que a simples observação do ambiente, que, ao fim de 35 anos do actual regime, apesar de todas as sucessivas limitações impostas aos direitos de cidadania, o conjunto da obra empreendida está longe de fazer esquecer aquela que se levou a cabo durante 16 anos que durou a República de 1910. (...)

 

5 - RAZÃO DE OPORTUNIDADE

 

(...) Após 35 anos de isolamento, no ostracismo em que foi confinada, após 35 anos em que o Poder tem vivido divorciado da Nação e deliberadamente tem ignorado as ansiedades que todos sentem, a Oposição Democrática, Republicana, Liberal e Socialista terá de perfilhar a síntese do seu ideário e aparecer, perante o País, serenamente, conscientemente, trazendo em si a mensagem da regeneração da República, a certeza de que a República que vem será a República para todos.  

 

I - RESTAURAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA

1 - A restauração da ordem democrática concretizar-se-á imediatamente pelo restabelecimento das liberdades públicas, designadamente pela liberdade de expressão de pensamento - o que implica a abolição de qualquer forma de censura à Imprensa -, pela liberdade de associação, liberdade de trabalho, liberdade de crença e de cultos religiosos. (...)

II - LIQUIDAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO CORPORATIVA

1 - Serão extintas as corporações. Considerando, porém, a posição avassaladora que a organização corporativa adquiriu, económica e financeiramente na vida nacional, a transformação da sua estrutura e integração necessária em novas instituições democráticas não deixará de ter em conta os legítimos interesses e a garantia dos direitos dos que nela trabalham e angariam a sua manutenção sempre que estes não estejam comprometidos em actividades contrárias ao interesse nacional ou práticas de corrupção. (...)

V - POLÍTICA ULTRAMARINA

1 - Parte-se da afirmação de princípio de que o esquema das relações Metrópole - Ultramar, repudiando qualquer manifestação de imperialismo colonialista, subordinar-se-á ao objectivo de assegurar os direitos fundamentais dos povos no plano político, económico, social e cultural. Por consequência, um tal esquema visará a imediata institucionalização da vida democrática, sem discriminação racial ou política, para todos os territórios e todos os povos, tirando da autenticidade do funcionamento das instituições democráticas todas as consequências morais, económicas e políticas. (...)

(OBS.: Veja-se o aditamento final a este capítulo.) (... )

VIII - DA ORDEM ECONÓMICA

A - Princípios definidores de uma política económica

1 - A todos os cidadãos se deve não só conferir a dignidade dos direitos políticos dentro das instituições democráticas, como também assegurar-se-lhes o fundamento económico da sua livre fruição. (...)

D - Política Agrária

35 – Parte-se sempre do princípio normativo de que em todas as formas de actividade, a propulsionar e a conduzir mediante novos métodos, o objectivo supremo a atingir é o da beneficiação do nível geral de vida da população portuguesa, na qual a grei campesina tem um lugar de relevo, e fazer com que a vida rural se integre no quadro actual das possibilidades oferecidas pela civilização. Isto implica, falando tão só da população activa agrícola e seus imediatos dependentes, assegurar a todos:

a) A satisfação das condições inerentes a uma existência fisicamente sã e acautelada, ao que se opõe, no panorama actual do agro português metropolitano, a presença de números avultados de pequenos rendeiros sujeitos a renda injusta e sem garantias, a percentagem notoriamente excessiva de assalariados (60 %) entre os componentes da referida população activa (censo de 1950), e a situação endémica de subemprego;

b) A habilitação com um mínimo de instrução e a criação, em número crescente, de unidades activas habilitadas com especialização profissional, de modo que sejam agentes efectivos do progresso e bons intérpretes de novas técnicas;

c) A integração do sector populacional em causa numa obra educativa de valorização humana que, do ponto de vista de educação cívica, converta o rural em cidadão independente, capaz de servir e sustentar a democracia;

d) O gradual acesso à cultura e à aquisição dos bens do espírito. que apague no rural o sentimento de inferioridade que, por vezes o aflige e lhe tira aos próprios olhos razão para exigir que não sejam os seus próprios direitos objecto de atenção menor que os de outras classes. (...)

XII - DEFESA NACIONAL

1 - As forças armadas, de Terra, Mar e Ar, devem constituir um corpo técnico altamente especializado ao serviço da Nação, afastado de qualquer interferência ou responsabilidade política colectivas na Vida Nacional. (...)

XIII - POLÍTICA EXTERNA

1 - A política externa portuguesa, tendo como primeiro objectivo a cooperação internacional, dará particular relevância à posição de Portugal como país membro da Organização das Nações Unidas e vincular-se-á ao acatamento das obrigações resultantes das regras estabelecidas na respectiva carta. (...)

 

OBSERVAÇÃO FINAL  

 POLÍTICA ULTRAMARINA

Promulgou-se a elaboração deste documento em termos de ser, apenas, possível pôr-lhe um fecho no decurso de Janeiro do ano corrente. Leva a data histórica de «31 de Janeiro» por motivos que é desnecessário encarecer.

Não obstante o empenho dos seus apresentantes entrará, porém, em circulação decorrido três meses sobre aquela data e isto implica que vem defrontar-se com sucessos graves que, ao tempo em que foi redigido, eram tão só previsões portadoras de séria apreensão.

O capítulo deste programa que se refere à política ultramarina fica directamente afectado pelos acontecimentos supervenientes.

As afirmações contidas no primeiro número desse capítulo constituem uma verdadeira declaração de princípios que os democratas portugueses consideram verdadeiro ponto de honra. Estes princípios ficam de pé.

O modo da sua realização. que está nos números seguintes do programa, terá de ser subordinado às circunstâncias; é matéria para quem governe em nome da democracia operante.

A reprovação de processos internacionalmente condenados há que acentuá-la neste momento.

Problema essencialmente político como este é, torna-se forçoso reencontrar na paz - nunca na guerra - o caminho do diálogo entre as populações e o asseguramento de todos os direitos.

Como Povo que se honra de encaminhar outros povos para a vida de homens livres e estados superiores de civilização, a representação dos portugueses tem que ser confiada a um governo que acredite nas virtudes da Democracia e delas saiba extrair as verdadeiras soluções nacionais. 

Consideram-se apresentantes deste documento os abaixo assinados que, ou participaram da sua elaboração, ou puderam ter imediato conhecimento dele, aprovando-o.

Admite-se, e deseja-se naturalmente, que adesões futuras aos princípios e propósitos aqui exarados venham a registar-se, para o que o documento fica aberto à assinatura de todos os democratas. Tentar-se-á, na medida das possibilidades, dar publicidade às sucessivas assinaturas com reserva, porém, daquelas que os interessados julguem dever acautelar-se. As adesões podem ser comunicadas a qualquer dos apresentantes. 

Mário de Azevedo Gomes, Hélder Ribeiro. José Mendes Cabeçadas Júnior. Acácio de Gouveia, Agostinho Sá Vieira, Alberto Ferreira. Álvaro Monteiro. Álvaro Salema, Álvaro Silva. António de Macedo, António Veloso de Pinho. Armando Adão e Silva, Armando Castanheira, Arnaldo Veiga Pires. Artur de Andrade. Artur Santos Silva, Augusto Abelaira, Bento de Melo, Carlos Cal Brandão, Carlos Pereira, Carlos Sá Cardoso, Domingos Soeiro, Eduardo de Figueiredo, Eduardo Mansinho, Eduardo Ralha, Fernando Abranches Ferrão, Fernando Homem de Figueiredo, Fernando Mayer Garção, Fernando Lopes, Fernando Piteira Santos, Fernando Simões, Fernando Vale, Francisco Ramos da Costa, Francisco Salgado Zenha, Francisco Tinoco de Faria, Gustavo Soromenho, Hernâni Paciência, João Araújo Correia, João Gomes, João Santiago Presado, Joaquim Bastos, José Fernandes Fafe, José Magalhães Godinho, José Moreira da Assunção, José Moreira de Campos, José Ribeiro dos Santos. Luís Caseiro. Luís Dias Amado, Luís Roseira, Manuel Coelho dos Santos, Mário Cal Brandão, Mário Soares, Nikias Skapinakis, Nuno Rodrigues dos Santos, Olívio França, Raul Madeira, Raul Rego, Teófilo Carvalho dos Santos, Urbano Tavares Rodrigues, Vasco da Gama Fernandes, Zacarias Guerreiro.

 

Fonte:

Programa para a democratização da República, Lisboa, Janeiro de 1961

 

A ler também:

Mário Soares, Portugal Amordaçado, Lisboa, Arcádia, 1974.

 

Outros documentos políticos
A lista completa ordenada cronologicamente.

 

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