© Dr. Nuno Carvalho de Sousa |
A Inquisição em Portugal. Gravura a cobre de Jean David Zunner, de 1685 |
A Inquisição em Portugal
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"Nosso desejo é, e a este ofício da Santa Inquisição pertence, estripar e arrancar e apartar dentro os cristãos estas malvadas e perniciosas heresias e seitas que a nossa Santa fé católica a qual a Santa madre Igreja tem e prega preservar e seja guardada, para que os cristãos que em ela crêem se hajam de salvar"
Como escreveu
Sofia Aparecida de Siqueira: “O Santo Oficio da Inquisição contra a herética
pravidade e apostasia inseriu-se em Portugal exatamente no momento da passagem
do Renascimento para o Barroco. Configurada pela mentalidade do tempo, a
refletir-se em cada aspeto de sua existência, é exemplo institucional de um
período da história do Ocidente. Portanto, é de mister ver-se a história do
Santo Oficio em suas conexões com sua, época, isto é, com os séculos da
Modernidade. Importa
a reconstituição da atmosfera mental do tempo, quando religião era valor
vinculado à vida coletiva, a sugerir ou a comandar a empresa de se vencer o mal
pelo bem. Mal e bem conforme aqueles homens, os definiam, haurindo inspirações
gerais que dominavam motivos, conceitos, estilos de vida, comportamentos. Cada
época elabora um plano de unidade – que é condição de sobrevivência da
sociedade – com seus caracteres próprios. Cria-se, assim, um ‘sistema
mental’ que aprisiona os indivíduos como numa cerca e nutre as intolerâncias
que o modelam. Este ‘sistema mental’ pode sofrer ruturas. Com essas ruturas
lidou o Ocidente e, dentro dele, Portugal, no fim do Século XV e primeiras décadas
do XVI. O
descortino de novos mundos e de outros povos fora convite para repensar a
realidade e a condição humana. Implicara na renovação das inteligências,
dos costumes, das ideias, dos sentimentos e do pensamento. Abrigara desafios à
inteligência, o tratamento racionalista dos dados. Fixara uma ideia do
progresso: superar a Idade Média, Na ordem político-social, o Estado procurava
substituir a Cristandade. Ruía, aos poucos, o mundo teocêntrico, garantido
pela autoridade da Santa Sé, do clero, da tradição. Conceções novas dos filósofos
enlaçavam-se com opiniões novas dos políticos. Contra os tomistas e
escotistas, levantavam-se os nominalistas, buscando liberar a razão das afirmações
da fé. Havia uma forte tensão espiritual, resultante de conflitos íntimos. As
fermentações críticas rompiam a unidade do pensamento, liberavam uma
disparidade que, por sua vez, engendravam a instabilidade dos espíritos. O
teste da liberdade, o imperativo das opções que se multiplicavam acabou por
aninhar o desassossego até à angústia, Tentando recuperar o Cristianismo,
pela volta às fontes puras, mediante enriquecimento pelas filosofias antigas,
para a reconstrução do edifício havia-se atingido seus alicerces, seus
fundamentos, e com isto, paradoxalmente, abalara-se o próprio edifício. A razão,
intentando servir à crença, ameaçava sacrificar crença serviço da razão. Essa
recolocação dos problemas do espirito favorecia o desenvolvimento de uma
atividade livre e independente, Mudava-se, gradativamente, nos diversos países
da Europa, a própria maneira de encarar o mundo. Infiltrava-se um pendor
sensualista, definido por Campanella, um neonominalismo passou a ensinar que se
devia partir da experiência sensível pra se apreenderem as coisas. A
ciência empírica procurava libertar-se da física aristotélica para se
transformar numa ‘experiência’. O conhecimento oriundo da experiência era
confrontado com o conhecimento proveniente das teorias. Muitas das supostas
conquistas definitivas da humanidade passavam a sofrer correções e
desmentidos. E alguns homens foram levados, diante dos factos, a formular juízos
de valor sobre certas ideias medievais e a fixar novos critérios para aferir
seus conhecimentos. Esboçava-se, em certos sectores, um método que levava a
outro tipo de conhecimento racional, ao conhecimento científico do mundo: o
exercício da crítica sobre a experiência, tendo experiência como condição
para alcançar verdade. Quando
o homem acolheu diferentes conceções sobre si próprio e sobre o mundo, e
aceitou novos valores dele advindos, entrou em crise. Crise do espirito, da
inteligência e do sentimento. Desorientou-se. Nesse desnorteamento, incluíram-se
suas relações com Deus e seu comportamento. Portugal
partilhou as crises do Ocidente. Esse
alargamento do campo cultural, elaboração de nova mentalidade, recebeu grande
impulso da expansão ultramarina. A orientação experimental que tomou o grupo
ligado às atividades náuticas contrapôs-se à cultura universitária, de
cunho teórico e livresco, amarrado ao Tomismo. O
catolicismo era a prevalente do génio próprio dos portugueses da época. Por
isso, quando buscaram a adoção das novas ideias, dos novos princípios, dos
novos costumes, submeteram-nos, primeiro, ao crivo de sua fé e aceitaram o que
se escoou temerosamente. Do Naturalismo nas especulações científicas, filosóficas
e políticas, foi veículo o franciscanismo – São Boaventura, Guilherme de
Ocam. André de Resende, o humanista, um dos melhores representantes do espírito
novo, esforçou-se para ser, ao mesmo tempo, christianus
et ciceronianus. Francisco Sanches, não obstante seu agudo senso crítico,
emudeceu em relação às dúvidas lançadas à crença, Na Rópica
Pnefma João de Barros fez a apologia da ‘razão católica’. Aceitou-se
o espírito novo, desde que esse se coadunasse com a autoridade da Igreja e a
integridade da crença. O criticismo não poupava a vida religiosa, os usos e
abusos da clerezia. Mas a fidelidade acatava a autoridade do Papa, as linhas
mestras do dogma e da piedade cristãs, reconhecia a missão do sacerdócio.
Buscavam-se modificações – eram próprias das inquietudes do tempo – mas
endereçavam-se à cristianização da vida, não ao enfraquecimento da Igreja."
Carta do Édito e tempo de
graça Dom
Diogo da Silva por mercê de Deus e da Santa madre Igreja de Roma, bispo de
Ceuta, confessor do Rei nosso Senhor e do seu conselho, inquisidor mor sobre os
crimes de heresia nos reinos e senhorios de Portugal, por autoridade apostólica
e bula do Santíssimo padre Paulo III, agora presidente na Igreja de Deus,
concedida à instância do muito alto e muito poderoso príncipe e Rei o Rei Dom
João nosso senhor etc. aos que esta nossa carta monitoria e de edicto e tempo
de graça virem, lerem ou ouvirem ou em qualquer modo que seja dela notícia
tiverem saúde em nosso senhor Jesus Cristo que de todos é verdadeira salvação. Fazemos
saber que nós somos informados por pessoas dignas de fé que nesta cidade de Évora
e seus termos há algumas pessoas, homens e mulheres, que não temendo o senhor
Deus, nem o grande perigo de suas almas apartados da nossa santa fé católica,
têm cometido e cometem crimes de heresia guardando ritos e cerimónias da lei
de Moisés. E consentem que se façam e guardem em suas casas. E
outros dizem que têm algumas opiniões heréticas e falsos errores, assim
luteranos como de outras danadas heresias e da perniciosa e muito danada seita
de Mafamede
e alguns outros cometem crimes de sortilégios e feitiçarias que manifestamente
contém em si heresia. E
porque nosso desejo é, e a este ofício da Santa Inquisição pertence,
estripar e arrancar e apartar dentro os cristãos estas malvadas e perniciosas
heresias e seitas que a nossa Santa fé católica a qual a Santa madre Igreja
tem e prega preservar e seja guardada, para que os cristãos que em ela crêem
se hajam de salvar e por tanto por esta presente nossa carta notificamos a
quaisquer pessoas, homens e mulheres, clérigos e religiosos, isentos e não
isentos de qualquer estado condição, dignidade e proeminência que sejam
vizinhos e moradores desta cidade de Évora e seus termos que se sentem ou
sentirem culpados nos ditos crimes e delitos da má vida heresia e de terem
feito e guardado ritos e cerimónias da dita lei de Moisés e seita de Mafamede
ou tem ou tem ou tiveram ou disseram qualquer herética e errada opinião ou
fizeram as ditas feitiçarias e sortilégios que manifestamente trazem consigo
heresias, que nós determinamos de inquirir e fazer inquisição nesta cidade e
seus termos sobre os ditos crimes delitos e erros, acerca dos quais entendemos
de proceder executar o que Deus assim como principal juiz de sua causa nos
administrar e acharmos por direito segundo que somos obrigado e darmos a bula
apostólica da Santa Inquisição a devida execução e os que forem culpados
nos ditos delitos se quiserem vir reconhecer suas culpas e pecados confessá-los
e manifestá-los inteiramente pedindo penitência deles com puro coração, e fé
não fingida. E quiserem ser tornados e incorporados na união da Santa madre
Igreja serão recebidos por nós benigna e caritativamente segundo doutrina de
nosso senhor e salvador Jesus Cristo o qual tem sempre os braços abertos para
perdoar e receber a todos aqueles que com verdadeira contrição se convertem a
Ele ainda que sejam mui grandes pecadores e lhe tenham muito errado e ofendido. E
porque mais justamente se faça a dita inquisição e haja efeito e execução e
que nenhum dos sobre ditos a quem toca ou tocar este negócio não possa
pretender ignorância mui afectuosa e caritativamente requeremos exortamos e
admoestamos em nome de nosso Senhor e redentor Jesus Cristo, Mandamos uma, duas
e três vezes a todos e quaisquer dos sobreditos vizinhos e moradores desta
cidade e que em ela e seus termos estão que cometeram e perpetraram os ditos
delitos e crimes de heresia e Apostasia da fé ou se sentirem culpados de ter caído
ou incorrido por qualquer via e forma que seja dos ditos crimes e errores acima
nomeados e declarados ou cada um deles contra nossa Santa fé católica que do
dia que lhe esta nossa carta for lida e publicada e de qualquer maneira que a
sua notícia vier ou dela souberem parte a trinta dias primeiros seguintes os
quais lhe damos e assinamos por todas as três canónicas admoestações
dando-lhe dez dias para pela primeira admoestação e dez pela segunda e outros
dez pela 3.ª, os quais trinta dias damos e assinamos por termo e tempo da graça
a todos e a cada um que nos ditos delitos e erros se sentirem culpados, para que
dentro nos ditos trinta dias pareçam perante nós em nossas pousadas nesta
cidade onde seremos presente e residente a confessar e declarar todos e
quaisquer erros e delitos que tenham feitos e cometidos de heresia e apostasia
da fé ou aconselhado feito obrado consentido e visto fazer e obrar a outras
quaisquer pessoas assim pais e mães como outros quaisquer parentes presentes ou
ausentes posto que mortos sendo eles confidentes companheiros consortes
participantes ou consentidos dos ditos delitos e erros e os que souberem ler e
escrever trarão os ditos crimes e erros por escrito e assinados de seus sinais
e nomes. E
os que não souberem escrever dirão e declararão os ditos erros e delitos na
dita maneira e os escreverá o escrivão e notário da Santa Inquisição por
termo o qual será assinado pelos confidentes e trazendo propósito com toda a
obediência, humildade e reverência de obedecer à penitência que por nós lhe
for dada e posta e de abjurar os ditos heréticos errores inteiramente e cada um
deles e toda espécie que seja ou possa ser de heresia e apostasia da fé, sendo
certos que pelo que assim confessarem e manifestarem e abjurarem inteiramente e
segundo forma de direito dentro do dito termo de trinta dias da graça em que
por nós serão recebidos benigna e caritativamente os absolvermos das censuras
e penas de excomunhão maior e outras em que pelos ditos crimes tenham incorrido
e lhe daremos penitências saudáveis para as suas almas a cada um segundo a
qualidade e maneira de seu delito pela forma e maneira que o direito em tal caso
dispõe, usando de misericórdia com os que assim vierem quanto honestamente e
com boa consciência e direito o pudermos fazer. E
pelos sobreditos errores e crimes de heresia que assim pediram perdão e
reconciliação como dito é não serão presos nem encarcerados nem se procederá
contra eles. De outra maneira se pelo contrário fizerem o que Deus não queira
e dentro do dito termo de trinta dias da graça que lhe assim damos assinamos não
vierem a cumprir o sobre dito: E quiserem ser revéis[1]
e pertinazes e perseverar em estarem obstinados em seus erros e delitos de
heresia apostasia e infidelidade: nós procederemos contra eles e cada um deles
usando o dito nosso ofício de inquisidor mor por nós e nossos comissários e
delegados segundo a forma da dita bula da Santa Inquisição guardando a cada um
sua justiça como nos parecer que é direito etc. E
por que as sobre ditas coisas venham a notícia de todos e de cada um a que
toque ou tocar possa e não possam pretender nem alegar ignorância e que não
souberam o sobre dito Mandamos que se publique nas igrejas desta Cidade e seus
termos e Mandamos a todos os priores, vigários perpétuos, beneficiados e curas
das ditas igrejas e a cada um deles em virtude de obediência e sob pena de
excomunhão que durando os ditos trinta dias todos os domingos e dias de festa a
leiam e publiquem em suas estações a seus fregueses e povo cuja sé (aliás fé)
e certeza de todo Mandamos ser feita a presente nossa carta. Dada
na Cidade de Évora sob nosso sinal e selo aos XX dias de Outubro Diogo Travaços
notário a fez de Mil quinhentos e trinta e seis. Concorda
este traslado com o do livro de verbo ad verbum com os dois riscados em
que diz apostasia, heresias e outro em que diz sessenta. E com antrelinha obediência
e por verdade assinei aqui de meu sinal raso.- Domingos Simões.
Fontes: Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, Livraria, códice 979 da secção dos Manuscritos, fl.
7v.
A ler:
Sónia Aparecida de Siqueira,
"A Disciplina da vida colonial: os regimentos da Inquisição", Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 157, n.º 392,
julho/setembro de 1996, págs. 497-571.
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