Alegoria à Revolução de 1820 |
Manifesto
da Nação Portuguesa aos
Soberanos e Povos da Europa
"O que hoje, [os portugueses], querem, e desejam, não é uma inovação: é a restituição de suas antigas e saudáveis instituições corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado"
Como afirma Adelino Maltez, "[a] ideia da existência de leis fundamentais [, defendida entre outros por António Ribeiro dos Santos (1745 1818)] assinala toda uma corrente de opinião consensualista que (...) se manifesta em certa faceta do nosso liberalismo moderado bem como nalguns autores do tradicionalismo anti-absolutista. A Revolução desencadeada a partir de 24 de Agosto de 1820, marcadamente nacionalista e independentista, exprime o desejo de autonomia de um povo que, ao longo de duas décadas, fora sucessivamente invadido por franceses e ocupado pelo protectorado dos libertadores ingleses, enquanto o monarca e o nossos restos de legitimidade independentista se radicavam no Brasil. Basta atentar no tomada própria proclamação revolucionária 24 de Agosto 'nossos avós foram felizes porque viveram nos séculos venturosos, em que Portugal tinha um governo representado nas Cortes da Nação, e obrar em prodígios de valor enquanto obedeciam às leis que elas sabiamente constituíam, leis que aproveitavam a todos, porque a todos obrigavam'. (...) No Manifesto da Nação Portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa, da autoria da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino retomam-se as teses deste consensualismo tradicionalista, criticando-se o desvio despotista do absolutismo: 'não é uma inovação, é a restituição de suas antigas e saudáveis instituições corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado; é a restituição dos inalienáveis direitos que a natureza lhes concedeu, como concede a todos os povos; que os seus maiores constantemente exercitaram e zelaram, e de que somente há um século foram privados, ou pelo errado sistema do governo, ou pelas falsas doutrinas com que os vis aduladores dos príncipes confundiram as verdadeiras e sãs noções de direito público. As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes reinos: são os nossos direitos e os dos nossos pais.' Esta mesma filosofia básica do Estado já aparece também entre os próprios emigrados liberais sitos em Londres. João Bernardo da Rocha Loureiro, em O Portuguez, em 1814, se repudia o governo absoluto e despótico, diz também claramente que nenhum 'apreço damos à democracia pura', preferindo um governo 'misto como o da Inglaterra' ou semelhante à 'representação nacional dos Estados Unidos da América'. Para tanto, requer 'uma Constituição e a restauração das Cortes e das antigas formas do nosso Governo, que mais se achegam às do governo britânico e tanto distam da maneira absoluta e destemperada por que hoje somos governados'. A
Nação Portuguesa animada do mais sincero, e ardente desejo de manter
as relações políticas, e comerciais, que até agora a tem ligado a
todos os Governos e Povos da Europa; e tendo ainda mais particularmente
a peito continuar a merecer na opinião, e conceito dos homens
ilustrados de todas as Nações a estima e consideração, que nunca se
recusou ao carácter leal e honrado dos Portugueses: julga de indispensável
necessidade oferecer ao público a sucinta, mas franca exposição das
causas, que produzirão os memoráveis acontecimentos há pouco
sucedidos em Portugal; do verdadeiro espírito que os dirigiu; e do único
alvo, a que tendem as mudanças, que se têm feito e pretendem fazer na
forma interna da sua Administração: E confia que esta exposição,
rectificando as erradas ideias, que porventura se hajam concebido dos
referidos acontecimentos, merecerá a benévola atenção dos Soberanos,
e dos Povos. Toda
a Europa sabe as extraordinárias circunstâncias, que no ano de 1807
forçaram o Senhor D. João VI, então Príncipe Regente de Portugal, a
passar com a Sua Real Família aos seus domínios transatlânticos: E
posto que esta resolução de Sua Majestade se julgou então mais
reconhecida vantagem para a causa geral da Liberdade Pública da Europa,
ninguém contudo deixou de prever a crítica situação em que ficava
Portugal por esta ausência do seu Príncipe, e os factos ulteriores
provaram demonstrativamente que esta previdência não era vã, e temerária.
Portugal, separado do seu Soberano pela vasta extensão dos mares, privado de todos os recursos de suas possessões ultramarinas, e de todos os benefícios do comércio pelo bloqueio de seus portos, e dominado no interior por uma força inimiga, que então se julgava invencível, parecia haver tocado o último termo da sua existência política, e não dever mais entrar na lista das Nações independentes. Em tão apurada crise, este Povo heróico não perdeu nem a honra, nem o valor, nem a fidelidade ao seu Rei; porque estes sentimentos não lhe podiam ser arrancados do coração pela violência das circunstâncias, nem pela força prepotente do inimigo. Eles se manifestaram efectivamente, da maneira mais enérgica, logo que se ofereceu conjunção oportuna. Os Portugueses, com o auxílio dos seus Aliados; conquistaram à custa dos mais penosos sacrifícios a sua própria existência política, restituíram com generosa lealdade, ao seu Monarca, o Trono e a Coroa, e a Europa imparcial há-de confessar ( ainda que nem sempre se tenha feito esta justiça) que a eles deve também em grande parte os triunfos, que depois alcançou em beneficio da liberdade, e independência dos Tronos e dos Povos. Qual
fosse porém a situação interna de Portugal depois de circunstâncias
tão novas, de esforços tão extraordinários, e de um transtorno tão
universal e transcendente, mais fácil é concebê-lo do que exprimi-lo. A
ruína da sua povoação, começada pela emigração dos habitantes, que
seguiram o seu Príncipe, ou procuraram escapar à suspeitosa desconfiança,
ou à perseguição sistemática do inimigo, aumentou-se pelas duas
funestas invasões de 1809 e
1810, e pelas perdas inevitáveis de uma dilatada e porfiosa guerra de
sete anos. O
Comércio e a indústria, que nunca podem devidamente prosperar, senão
à sombra benéfica da paz, da segurança e da tranquilidade pública,
tinham sido não só desprezados e abandonados; mas até parece que de
todo destruídos pela ilimitada franqueza concedida aos vasos
estrangeiros em todos os portos do Brasil; pelo desastroso Tratado de
1810; pela consequente decadência das fábricas e manufacturas
nacionais, pela quase total extinção da marinha mercante e militar, e
por uma falta absoluta de todo o género de providências,
que protegessem, e animassem, estes dois importantíssimos ramos
da prosperidade pública. A
Agricultura, base fundamental da riqueza e força das Nações, privada
dos braços que lhe roubara o exército e a morte; destituída dos
capitais que a sustentam, e que talvez se haviam empregado em objectos
de mais instante necessidade; desamparada do alento e vigor vital que
costuma dar-lhe a indústria nacional, e o giro activo do Comércio
tanto interno, como externo, jazia em mortal abatimento, e somente
oferecia ao espectador admirado, o triste quadro da fome e da miséria. A
sensível diminuição das rendas públicas causada pela ruína da povoação,
do comércio, e da indústria; pela perda irrevogável dos grandes
cabedais que o inimigo extorquira violentamente das mãos dos
Portugueses, e pelas excessivas despesas da guerra; obrigando a Nação
a contrair novas, e avultadas dívidas, para cuja satisfação eram
desiguais os seus recursos; acabou de dar o último golpe no Crédito público,
já vacilante pela escandalosa malversação dos agentes fiscais, e
ainda mais pelo errado sistema da administração. Se
os Portugueses não amassem, e respeitassem o seu Príncipe, e a sua
Augusta Dinastia com uma espécie de amor, e adoração quase religiosa;
se não quisessem receber da sua só justiça, e beneficência as
reformas, e melhoramentos públicos; que um tal estado de coisas
imperiosamente exigia; muito fácil lhes seria, naquela época, pôr
limites ao poder, ou ditar-lhes condições acomodadas a tão urgentes
circunstâncias. Eles não ignoravam seus direitos: a tendência geral
da opinião, dirigida pelas luzes do século, e sobejamente manifestada
entre os povos mais civilizados da Europa, os convidava a fazer uso
desses direitos, que os seus maiores haviam já reconhecido; e
exercitado em ocasiões menos forçosas: o
exército vitorioso e triunfante apoiaria tão justas
pretensões, e a Nação seria hoje livre, ou certamente menos
desditosa. Porém
o carácter dos Portugueses nunca soube desmentir-se. Eles quiseram
antes esperar tudo do seu Príncipe, do que dar à Europa, ainda aflita
das passadas desgraças, o espectáculo de uma Nação seria hoje
insofrida, e inquieta; ou parecer que abusavam da facilidade, e
oportunidade das circunstâncias para se mostrarem revoltosos, ou menos
submissos. O sofrimento silencioso, e pacífico de seus males foi a base
dos seus procedimentos : a confiança nas reconhecidas virtudes do Príncipe,
o fundamento de suas esperanças. Mas
(é forçoso dizê-lo!) estas esperanças foram perfeitamente baldadas,
e aquele sofrimento foi levado ao último termo, a que parece poder
chegar a paciência de uma Nação briosa, cheia do sentimento das suas
desgraças, e não ignorante dos meios de remediá-las. Não
é preciso para prova desta penosa verdade renovar agora aqui o triste
quadro da situação progressivamente decadente de Portugal em todos os
ramos de sua administração, nos seis anos que tem decorrido desde a
paz geral da Europa até ao presente. A Europa toda, ou o tem
presenciado, ou o tem ouvido recontar de com mágoa: e os Augustos
Soberanos das diferentes Nações não podem deixar de ter sido
informados de tamanha desventura pelos seus Ministros ou Agentes Diplomáticos,
que havendo lido na História o esplendor, a glória, e a grandeza, a
que em outros tempos chegaram os Portugueses, terão sem dúvida
admirado, e não poucas vezes lamentado, o incompreensível abatimento,
a que se acha reduzido este Povo, que nos favores, e benefícios da
natureza não cede a nenhum outro Povo da Europa. A
sua povoação, já exausta pelos motivos que ficam indicados, continuou
a ser depauperada pela forçada remessa para o Brasil de alguns milhares
de homens, que depois de terem exposto as suas vidas pela Pátria, e
pelo Trono, e de haverem merecido descansar em tranquila paz no seio de
suas famílias, ou gozarem no seu país natal o prémio de seu zelo e
valor, foram continuar na América do Sul os duros trabalhos de guerra;
de uma guerra que fazendo-se a tamanha distância de Portugal, parece
que somente sobre este Reino tem descarregado seus pesados golpes,
atacando por muitos modos as fontes essenciais do seu vigor, e expondo-o
ao mesmo tempo às empresas de uma nação vizinha, e poderosa, sempre
rival, e agora estimulada, e até (em sua opinião) ofendida e agravada. O
comércio, em vez da protecção solícita, que a sua situação
demandava, e que ainda poderia conservar-lhe algum alento de vida, e
ressuscitá-lo pouco a pouco do mortal letargo a que se achava reduzido,
não obteve senão raras e mesquinhas providências, que não sendo o
resultado de combinações judiciosas sobre o verdadeiro estado
comparativo das relações comerciais dos diferentes povos da Europa,
nem ligadas entre si, e dependentes de um sistema geral adaptado às
presentes circunstâncias ; ou faziam cada vez mais difíceis e
complicadas as suas transacções, ou até cediam em prejuízo directo
do comércio nacional, transportando todas as suas vantagens às mãos
dos estrangeiros, e desviando da circulação pública os capitais que
nele deviam empregar-se. A
indústria não foi mais favorecida, nem era de esperar que a sua sorte
fosse mais feliz. Os Portugueses viram e sofreram, que as suas fábricas,
e manufacturas fossem destruídas e quase de todo aniquiladas : Que os
produtos do seu trabalho não pudessem suportar a concorrência dos
estrangeiros: Que os móveis mais insignificantes de suas casas, os
vestidos e roupas do trajo mais ordinário e usual, as próprias camisas
e sapatos que vestem e calçam,
lhe fossem trazidos de fora, deixando inumeráveis artífices e oficiais
na ociosidade e na miséria. Os Portugueses viram e sofreram, que os
seus vasos mercantes lhe fossem roubados por amigos e inimigos: Que
andassem expostos aos insultos dos piratas, e fossem por eles apresados
até à vista de suas próprias fortalezas. Os Portugueses viram, e
sofreram... mas para quê renovar aqui tão profundas e sensíveis mágoas?
para quê recordar males tão notórios; e tão universalmente
sentidos?... Digam-no os próprios estrangeiros: digam-no os mesmos que
têm tirado proveito da espantosa indiferença ou frouxidão do Governo
Português, e que não poucas vezes repetiram com honrada franqueza “que
este belo país era digno de melhor sorte”. A
Agricultura, no meio de tamanho abandono de todos os interesses públicos,
não era natural que obtivesse a particular atenção e desvelo que por
sua reconhecida influência sobre a felicidade das nações que é
devido. Peja-se o brio Português de confessar haver recebido da
generosidade de uma Nação estrangeira ténues socorros a beneficio da
classe a mais útil, e a mais miserável dos seus habitantes: socorros,
que não podendo produzir utilidade alguma real, nem pelo seu valor, nem
pelo modo da sua distribuição, somente serviram de patentear aos olhos
da Europa espantada, o profundo abismo de miséria, a que esta Nação,
outrora rica e opulenta, se achava reduzida. A
Providência quis favorecer o agricultor Português, abrindo em seu
benefício o seio fecundo da terra, e dando-lhe anos de copiosa
colheita: mas este mesmo favor do Céu foi inutilizado pelos erros dos
homens. O numerário tinha desaparecido da circulação pela estagnação
do comércio, pela ruína da indústria, pelas avultadas somas que todos
os dias passavam sem retorno aos estrangeiros, em troca dos géneros
indispensáveis ao consumo da Nação, e pelas continuadas remessas
eventuais ou regulares, que se faziam para o Brasil com diferentes
motivos e aplicações, chegando a tal ponto a falta de giro, e
consequentemente a pobreza pública, que no meio da abundância de pão,
aumentada ainda por uma importação excessiva, e imprudentemente
tolerada deste género, o povo morria de fome; o lavrador desamparava as
suas terras e os seus trabalhos; todos lamentavam a geral penúria; e a
cada momento se temia, que a desesperação rompesse em tumultos, e que
os tumultos degenerassem na mais completa e horrível anarquia. Sendo
tal o estado em que se achavam as principais fontes da prosperidade
riqueza nacional, fácil é de conjecturar qual seria também o estado
do Tesouro, e do Crédito Público. Não
somente se conservaram sem necessidade, e sem diminuição as antigas
despesas proporcionadas à grandeza, aparato, e esplendor de uma Corte,
que já não existia em Portugal; mas acrescentavam-se cada dia outras
igualmente escusadas, e não menos exorbitantes, ao mesmo passo que
decrescia sensivelmente a receita, já pelas causas indicadas, e já
pela pasmosa negligência ou prevaricação dos administradores
subalternos, a muitos dos quais a impunidade, afiançava de algum modo o
pacifico uso de suas criminosas Especulações. Sobre
estes males acresceram ainda as extraordinárias despesas de algumas
expedições marítimas, destinadas a fornecer tropas à desastrosa
guerra da América do Sul, e os contínuos saques de moeda para soldo e
manutenção da porção do exército Português ali destacada:
despesas, que tirando irrevogavelmente grandes somas do giro nacional,
tinham ao mesmo tempo a mais nociva influência sobre o valor do
dinheiro papel, cujo câmbio se tornava de dia em dia mais desfavorável
e mais ruinoso. Os
empregados públicos, o Corpo Militar, os melhores e mais úteis servos
do Estado sofriam um extraordinário (atrazamento - no original)
atraso na satisfação de seus merecidos salários, e ao mesmo tempo que
esta falta abismava a uns na miséria e na desesperação, excitava a
outros a romper em altos e perigosos clamores, ou a aventurarem-se aos
excessos da mais funesta venalidade e corrupção. Os
credores do Estado invocavam em vão a fé pública, e o cumprimento das
sagradas promessas que se lhes haviam feito, e sobre as quais somente se
podia manter o crédito do Tesouro, e a esperança de novos recursos,
quando fossem necessários. Enfim,
que precisando ultimamente o Erário de abrir um empréstimo de quatro
milhões de cruzados, e parecendo de esperar, que a própria estagnação
do comércio convidasse os capitalistas a entrarem à porfia nesta
negociação, que parecia de segura vantagem pelo valor das hipotecas
oferecidas ao pagamento do juro regular,
e à amortização do capital, não foi possível (com vergonha o
dizemos) preenchê-lo, nem ainda quando o Governo, trespassados os
limites da espontaneidade, que ao princípio anunciara, quis forçar a
isso os capitalistas, e proprietários, por meio de uma derrama
calculada sobre a avaliação
da propriedade individual, e dos pressupostos fundos de cada casa
comerciante. Em
meio de tantas desgraças, que por espaço de seis anos oprimiram os
Portugueses em progressivo crescimento, ainda de vez em quando se
avivava em seus corações algum lume de esperança de que o Rei viria
ao meio deles ouvir suas queixas, e dar o possível remédio a males tão
rezados e opressivos. Conheciam por experiência a natural bondade do
seu coração, herdada de seus augustos Avós, e sempre propensa a
promover a felicidade dos povos de seus Domínios: e confiavam que ela
lhes prepararia as reformas, melhoramentos, e benefícios, de que tanto
necessitava em todos os ramos da publica administração - Sua Majestade
parecia haver dado por algumas vezes lugar a esta lisonjeira esperança. Ela
porem foi-se desvanecendo pouco a pouco, e o Ministério do Rio de
Janeiro, que talvez desviava do ânimo do Rei o pensamento de realizá-la,
até sofria de mau grado, que algum cidadão amigo da sua Pátria
ousasse expor ao público, as suas opiniões sobre este importante
objecto, e mostrasse as vantagens de se restituir a Portugal a sede da
Monarquia. Desta
maneira começaram os Portugueses a desconfiar do único
recurso, e meio de salvação, que ainda parecia restar-lhes no
meio da quase total ruína da sua cara Pátria. A ideia do estado de Colónia,
a que Portugal em realidade se achava reduzido, afligia sobre maneira
todos os cidadãos, que ainda conservavam, e prezavam o sentimento da
dignidade nacional. A justiça era administrada desde o Brasil a povos
fiéis da Europa, isto é, desde a distância de duas mil léguas, com
excessivas despesas, e delongas, e quando a paciência dos vassalos
estava já fatigada e exausta de fastidiosas, e talvez iníquas
formalidades. Muitas vezes se desviavam dos olhos e atenção do Rei, ao
arbítrio dos Ministros, e válidos, as representações, que se
dirigiam ao Trono, e que não podiam ser ao menos acompanhadas das
importunações, e lágrimas dos pretendentes. Todos enfim conheciam a
impossibilidade absoluta de pôr em marcha regular os negócios públicos
e particulares de uma Monarquia, achando-se a tamanha distância o
centro de seus movimentos, e sendo estes muitas vezes impedidos ou
retardados pela malignidade dos homens, pela violência das paixões, e
até pela força dos elementos. Esta
mesma distância, dificultando as queixas dos povos ou dos indivíduos
oprimidos, fazia mais ousada a iniquidade dos maus administradores da
Justiça, e dos infiéis depositários de qualquer porção de
Autoridade Pública. A torpe venalidade tinha corrompido tudo. A ambição,
a avareza, o egoísmo insensato haviam substituído o amor da ordem pública,
o amor da Pátria, virtudes em outro tempo tão familiares ao Povo
Português, e origens verdadeiras dos heróicos feitos, que a Europa
ilustrada ainda hoje admira, e admirará sempre na História desta
grande Nação. Todos os vínculos sociais se achavam relaxados; todos
os interesses em contradição; todas as opiniões em discórdia; todos
os partidos em divergência; todas as paixões e vícios em campo, e em
combate. Um único sentimento era comum a todos os Portugueses – o da
sua profunda desgraça. Em um só desejo se uniam todos os bons cidadãos
– o de uma nova ordem de coisas, que salvasse a nau do Estado, do
lamentável e miserando naufrágio, em que ia perder-se. Que
deveria pois fazer o Povo Português, uma Nação inteira, em tão
apurada situação? – Sofrer, e esperar? – Ela sofreu, e esperou em
vão por largos anos. – Gemer, representar, queixar-se? – Ela gemeu,
e os seus gemidos não foram escutados: que dizemos não foram
escutados? Foram reprimidos, foram cruelmente sufocados. – Ela
representou, e queixou-se; mas as suas queixas, e representações não
chegavam aos degraus do Trono. Dizia-se ao Rei que os seus povos viviam
contentes, e eram fiéis... Sim, eles eram, e são fiéis: nenhuma Nação
do mundo tem dado mais constantes provas de amor aos seus Príncipes, de
lealdade aos seus Monarcas. – Agora mesmo eles têm protestado, e
protestam ainda à face da Europa, e do mundo inteiro, a mais firme adesão
ao seu Rei, e à sua Augusta Família, a quem cordialmente amam, e
adoram: mas eles não viviam contentes, nem o contentamento pode jamais
aliar-se numa Nação com a pobreza, e miséria, com a triste decadência
de todos os estabelecimentos úteis, com a perda de dignidade, e da
consideração pública, com a ignorância sistematicamente introduzida
ou sustentada, com a ruína enfim da honra, da glória, e da liberdade
nacional. – Eles não eram felizes, e quiseram sê-lo. – Pode
disputar-se a alguma Nação este direito, e os meios de o exercitar, e
pôr em prática? Pode algum povo, grande ou pequeno, alguma associação
de homens racionais prescindir deste direito inalienável, para
sujeitar-se irrevogavelmente ao arbítrio de algum ou de alguns homens,
para obedecer cegamente a um poder ilimitado, a uma vontade, que pode
ser injusta, caprichosa, desregrada? Para deixar-se levar ao abismo da
desgraça sem dar um passo que o desvie do precipício, sem fazer um
esforço generoso para salvar-se? O
Povo Português apela para o sentimento íntimo de todos os seus
concidadãos, dos homens ilustrados de todos os países, dos Povos da
Europa, e dos Augustos Monarcas que os regem. Não
são, como se diz, os falsos princípios de um
filosofismo absurdo, e desorganizador das sociedades. – não é
o amor de uma liberdade ilimitada, e inconciliável com a verdadeira
felicidade do homem, que o tem conduzido em seus patrióticos
movimentos. - É o sentimento profundo da desgraça pública, e o desejo
de remediá-la – é a necessidade inevitável de ser feliz, e o poder
que a natureza depositou em suas mãos de empregar os recursos próprios
para o conseguir. A
natureza fez o homem social para lhe facilitar os meios de prover à sua
felicidade, que é o fim comum de todos os seres racionais. As
Sociedades não podem existir sem governo: a natureza, pois, aconselha a
existência desse governo, autoriza
o poder que ele deve exercitar; mas um poder subordinado ao fim – um
poder limitado pelo seu próprio destino – um poder que deixa de
merecer este nome para tomar o odioso nome de tirania, logo que
exorbitando dos seus naturais limites, impede, em lugar de promover, a
felicidade dos povos que lhe estão sujeitos. De
qualquer modo que este poder tenha sido exercitado numa Nação, ou por
um, ou por muitos; ou concentrado, ou repartido; ou limitado por leis
expressas, ou confiado sem alguns limites – nem a força das armas,
nem os hábitos inveterados, nem o decurso dos tempos podem jamais
despojar essa Nação da faculdade, e invariável direito, que sempre
conserva, de rever suas leis fundamentais, de rectificar seus primeiros
passos, de melhorar a forma do seu Governo, de prescrever-lhe justos
limites, e de fazê-lo útil à colecção dos associados. A própria Nação
inteira, se em massa pudesse exercitar os poderes do Governo, não os
teria ilimitados; porque nenhuma sociedade poderia razoavelmente querer
aprovar, autorizar a sua própria infelicidade, e comum desgraça. Eis
aqui, pois, os verdadeiros princípios que dirigiram os Portugueses; que
os constituíram na indispensável, e absoluta necessidade de levantarem
unânimes a voz, não para ofenderem, ou menosprezarem o seu Príncipe;
não para o despojarem, ou à sua Augusta Casa dos direitos que por
tantos títulos, e muito especialmente por sua bondade, clemência, e
amor de seus povos, tem adquirido sobre os corações de todos eles; não,
enfim, para colocarem sobre o Trono a licença, a imoralidade, e a
absurda e bárbara anarquia: mas sim para darem a esse Trono as bases sólidas
da Justiça, e da Lei; para o libertarem das insídias da lisonja, dos
laços da ambição, das astúcias da arbitrariedade; para o fazerem
firme, sem poder ser injusto; para o porem a igual distância dos
excessos violentos do despotismo tirânico, e da frouxidão não menos
funesta do negligente e inerte desmazelo. Foram
estes os votos de todos os Portugueses, quando proclamaram a necessidade
de uma Constituição, de uma Lei fundamental, que regulasse os
limites do Poder e da Obediência; que afiançasse para o futuro os
direitos e a felicidade do Povo; que restituísse à Nação a sua
honra, a sua independência e a sua glória;
e que sobre estes fundamentos mantivesse firme e inviolável o
Trono do Senhor D. João VI, e da Augusta Casa, e Família de Bragança,
e a pureza, e esplendor da Religião Santa, que em todas as épocas da
Monarquia tem sido um dos mais prezados timbres dos Portugueses, e tem
dado o mais nobre lustre a seus heróicos feitos. Debalde
se pretende caluniar este generoso esforço, qualificando-o de inovação
perigosa. Os homens doutos, e imparciais, versados na História das Nações,
sabem que em todas as idades os povos oprimidos reconheceram o mesmo
direito e o empregaram ainda com maior amplitude. A mesma História de
Portugal subministra exemplos disso, e a actual Casa Reinante a um
semelhante esforço deve a sua exaltação, e a sua mais distinta glória.
Se a moderna Filosofia criou o sistema científico do Direito Público
das Nações e dos Povos, nem por isso inventou ou criou os direitos
sagrados, que a própria mão da natureza gravou com caracteres indeléveis
nos corações dos homens, e que tem sido mais ou menos desenvolvidos,
mas nunca de todo ignorados. Os
Portugueses deram o Trono em 1139 ao seu primeiro ínclito Monarca, e
fizeram nas Cortes de Lamego
as primeiras Leis Fundamentais da Monarquia. – Os Portugueses deram o
Trono em 1385 ao Rei D. João I, e lhe
impuseram algumas condições, que ele aceitou e guardou. – Os
Portugueses deram o Trono em 1640 ao Senhor D. João IV, que também
respeitou, e guardou religiosamente os foros e liberdades da Nação.
– Os Portugueses tiveram sempre Cortes até 1698, nas quais se
tratavam os mais importantes negócios relativos à Política, Legislação
e Fazenda: e neste período que abrange a mais de cinco séculos, os
Portugueses se elevaram ao cume da glória, e da grandeza, e se fizeram
credores do distinto lugar, que a despeito da inveja, e da parcialidade hão-de
sempre ocupar na História dos Povos Europeus. O que hoje, pois, querem,
e desejam, não é uma inovação: é a restituição de suas antigas e
saudáveis instituições corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século
e as circunstâncias políticas do mundo civilizado: é a restituição
dos inalienáveis direitos, que a natureza lhes concedeu, como concede a
todos os Povos; que os seus maiores constantemente exercitaram, e
zelaram; e de que somente há um século foram privados, ou pelo errado
sistema do Governo, ou pelas falsas doutrinas, com que os vis aduladores
dos Príncipes confundiram as verdadeiras e sãs noções do Direito Público. O
nome de rebelião, a qualificação de ilegitimidade têm
sido igualmente empregados para com eles se manchar a glória dos
Portugueses, para se fazerem odiosos os seus patrióticos movimentos,
para se atribuir a crime a sua nobre ousadia. Mas a rebelião é
a resistência ao poder legítimo, e não é legítimo o poder,
que não é regulado pela Lei, que se não emprega conforme a Lei, que não
é dirigido ao bem dos governados, e para felicidade deles. – Não é ilegítimo
senão o que é injusto, e não é injusto senão o que se pratica sem
direito, ou contra direito. Com
semelhantes denominações pretendeu Filipe IV infamar perante as Cortes
da Europa o glorioso levantamento dos Portugueses em 1640. A justiça
prevaleceu: o Senhor D. João IV deixou de ser rebelde e usurpador
: os Portugueses que o fizeram Rei foram heróis beneméritos da Pátria:
e a Augusta Casa de Bragança começou a fazer as delícias da Nação.
– Não pretendemos fazer o paralelo dessa época com a actual em todas
as suas circunstâncias. Estamos muito longe de pretender comparar o carácter
de El-Rei D. Filipe IV com o do Senhor D. João VI; os sentimentos do
primeiro para com os Portugueses, com as virtudes que eles mesmos
reconhecem no segundo, e com o amor e benevolência de que lhe são
devedores. Mas nem por isso é menos certo que a Nação sofria ao
presente a mesma pobreza, a mesma decadência, os mesmos vícios e a
mesma opressão que naquela época. – Os seus direitos são os mesmos.
– O desenvolvimento deles, que então se reputou legítimo não pode
hoje ser criminoso. Os
que atribuem esse desenvolvimento, nas circunstâncias actuais de
Portugal, a efeitos de uma facção, honram por certo em demasia
este nome: porque nunca houve facção alguma nem tão sagrada nos seus
motivos, nem tão desinteressada nas suas intenções, nem tão moderada
nos seus procedimentos, nem tão unanimemente desejada, aprovada,
aplaudida. Nunca houve facção alguma, que no curto espaço de trinta e
sete dias mudasse a face de uma Nação inteira, e de uma Nação que se
preza de religiosa, e leal, sem derramar uma só gota de sangue; sem dar
lugar a um só insulto contra a autoridade, a um só ataque contra a
propriedade pública ou individual; sem ocasionar a mais ligeira desgraça,
ou desordem, ou ainda qualquer desagradável acidente. Nunca houve facção
alguma, que com tão justa razão excitasse a admiração, e merecesse o
aplauso dos estrangeiros, que a viram começar, que observaram o seu
progresso, e o seu espírito, e que não podem deixar de render a devida
homenagem ao carácter nobre, generoso e pacífico dos Portugueses,
assim como muitas vezes lamentavam a sua triste decadência e infeliz
situação. À
vista de tudo o que fica substanciado, não podem os Portugueses duvidar
de que os seus patrióticos movimentos hajam de merecer, não só a mais
favorável consideração, mas até justo louvor, tanto na opinião pública
das Nações ilustradas, como na dos Gabinetes dos Soberanos, que regem
os diferentes Povos da Europa. Seria
por certo bem doloroso para a Nação Portuguesa, que grandes, e
poderosos Monarcas, com quem ela tem mantido em todos os tempos relações
amigáveis, fiel, e religiosamente guardadas, e respeitadas, abusassem
agora do seu poder, e superioridade para subjugá-la, e impor-lhe leis;
ou empregassem a sua influência para reprimir o nobre, e ousado esforço
de um Povo sobejamente humilhado, e infeliz, o qual achando-se
impossibilitado pela sua situação geográfica, de estender o seu
poder, de dilatar-se em conquistas, de perturbar os outros povos na
livre e pacífica fruição de seus direitos, e de suas instituições,
somente pode intentar, e somente intenta em realidade melhorar a sua
sorte; reformar a sua interna administração; recobrar os direitos
sagrados que a natureza lhe concedeu, de que já gozou, e de que nenhum
poder a deve despojar; e finalmente restituir à Coroa do seu Augusto Príncipe
a independência, o esplendor, e a glória que em mais felizes idades
constituíram o seu melhor ornamento. Nunca
a Nação Portuguesa se intrometeu nos negócios internos das outras Nações
da Europa. Ela reconhece e respeita os direitos que competem aos povos
independentes, e deve esperar que também sejam reconhecidos e
respeitados os que ela mesma tem por igual razão. Como poderia pois ver
sem grande mágoa, que postergados a seu respeito estes direitos, se
abusasse do poder, e da força para a conservar na humilhação, e no
abatimento, para agravar mais a sua desgraça, para a fazer vítima de
um poder ilimitado, e arbitrário, e para roubar-lhe o distinto lugar,
que pelas eminentes qualidades de seus habitantes lhe cabe entre as Nações
civilizadas? Por ventura aqueles mesmos, que há pouco desdenhavam a Nação
Portuguesa pela sua decadência, e quase a queriam relegar para a costa
fronteira de África, intentaram agora forçá-la a permanecer nesse
estado de abjecção?... A
reconhecida prudência, sabedoria, e magnanimidade dos Príncipes da
Europa; o respeito que eles professam aos severos princípios da Moral Pública,
e da imparcial Justiça; a justa deferência à opinião geral dos
homens livres de todas as Nações, e até a particular consideração,
que há-de merecer um Povo ilustre, a quem o mundo moderno deve em
grande parte a sua civilização, e os seus progressos, são em verdade
motivos de segura confiança para a Nação Portuguesa, e que lhe não
permitem duvidar das disposições pacíficas dos Soberanos, que à face
da Europa tem posto por base de seus procedimentos as santas máximas da
fraternidade universal, tão recomendada no Código Sagrado do
Evangelho. Contudo,
se a despeito de todas estas considerações se acharem frustradas as
esperanças dos Portugueses, eles depois de invocarem o Supremo Árbitro
dos Impérios, como testemunha de suas intenções, e como auxiliador da
justiça da sua causa, empregarão em sua justa e necessária defesa,
todos os meios e forças que têm à sua disposição: eles sustentarão
seus direitos com toda a energia de um povo livre, com todo o entusiasmo
que inspira o amor da independência. Cada Cidadão será Soldado para
repelir a agressão iníqua, para manter a honra nacional, para vingar a
pátria ultrajada: e em último recurso eles virão antes talar seus
campos, devastar suas províncias, reduzir a lastimosas ruínas suas
habitações, e exterminar o nome Português do que hajam de submeter-se
a um jugo estrangeiro, ou receber a lei de Nações, que lhe são na
verdade superiores em forças, e poder, mas não em honra, e dignidade. Jamais
deixa de ser livre um povo que o quer ser. Este princípio
adoptado em teoria, é derivado da natural elasticidade do coração
humano, e comprovado com factos ilustres dos nossos dias. Os Gabinetes
da Europa são assaz ilustrados para avaliarem até que ponto se podem
desenvolver os recursos de um Povo honrado e brioso, quando se vê
atacado iniquamente em seus mais sagrados direitos, e quando pugna pela
sua liberdade e independência. Os acontecimentos recentes da última
guerra mostraram à Europa admirada, que o carácter nacional dos
Portugueses não havia degenerado do que fora no tempo dos Romanos, e
dos Árabes, e em épocas mais modernas, e não menos gloriosas. Ele se
desenvolveria pois com igual energia e constância, quando este Povo
ilustre, pugnasse por tudo o que uma Nação sisuda e grave pode reputar
de seu mais verdadeiro e sólido interesse. O Povo Português terá
uma justa liberdade, porque a quer ter: mas se por extrema
infelicidade lhe não couber em sorte conseguir esta ventura, será
antes destruído, do que vencido ou subjugado. Nenhum de seus concidadãos
sobreviverá às ruínas da sua Pátria; às ruínas da pública
felicidade. Mas atentem os Monarcas e os Povos, que a injustiça e a
imoralidade de uma guerra, por mais felizes que sejam aparentemente os
seus resultados, nunca deixa de ser punida, cedo ou tarde, pelas Leis
invariáveis da Ordem eterna que o Supremo Árbitro do mundo prescreveu
a todos os seres, e às quais não pode esquivar-se nem a força, nem a
grandeza, nem poder algum sobre a terra. Lisboa 15 de Dezembro de 1820.
Fonte: Manifesto da Nação Portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa, Lisboa, s.n., 1820 |
A ler também: José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política. Introdução à Teoria Política, Lisboa, ISCSP – Centro de Estudos do Pensamento Político, 1996. Outros
documentos políticos
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