Apoteose - Viva a República

Apoteose

capa do O Século, suplemento Ilustrado de Julho de 1911

Lei da Separação das Igrejas do Estado

 

"A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português."

 

Como escreveu o Prof. Oliveira Marques: "A Lei da Separação do Estado das Igrejas foi decretada em 20 de Abril de 1911, com influências da legislação estrangeira - nomeadamente brasileira e francesa -, mas representando sobretudo um esforço notável de adaptação ao fenómeno português. Começava por reconhecer e garantir a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e estrangeiros residentes em Portugal (art.. 1.°), declarando em seguida que a religião católica deixava de ser a religião do Estado e que todas as igrejas ou confissões religiosas eram igualmente autorizadas (art.. 2.°). Sendo assim, o Estado deixava de subsidiar o culto católico, extinguia as côngruas impostas aos cidadãos, considerava livre o culto de qualquer religião, permitindo que as casas a isso destinadas tivessem a aparência dê templo, não autorizava qualquer acto de culto fora das igrejas, perseguia os que tentassem impedir a livre prática religiosa ou ofender os clérigos e punia os que, pela violência ou ameaça, quisessem constranger alguém a praticar ou a não praticar actos de culto religioso. A lei cometia depois os encargos com o culto e entregava os respectivos rendimentos (com descontos para a assistência pública) a corporações de assistência e beneficência existentes misericórdias, confrarias, irmandades, etc. ou a associações que, para o efeito, viessem a constituir se (associações cultuais), não podendo aquele realizar se sem a sua existência. Os padres seriam inelegíveis para membros das juntas de paróquia e para as direcções, administrações ou gerências das próprias corporações ou associações cultuais. Todo o culto era livre, dentro de determinados horários, com restrições derivadas da manutenção da ordem pública e cometidas às autoridades civis (caso de procissões, toque de sinos, exibição de ornamentos e insígnias religiosas, etc.). (...)

Apesar dos seus propósitos de tolerância e imparcialidade frente a quaisquer crenças religiosas - não se esqueça que o seu nome oficial era Lei da Separação do Estado das Igrejas -, ou talvez por causa deles, a Lei da Separação tinha um cunho profundamente revolucionário, porventura o mais revolucionário de toda a legislação republicana. Não tanto no acto específico da separação propriamente dita, apesar de este, para a época, se afastar da regra seguida pela maioria dos países. Mas na tentativa de entregar o culto aos cidadãos, corporativamente organizados, retirando-o ao clero e procurando, com isso, reduzir o papel deste ao de mero executante de decisões de outrem. A Igreja Católica não ficava apenas empobrecida e nivelada com todos os demais corpos existentes no. País. Ficava reduzida a uma situação de subserviência frente ao povo católico como jamais tivera no passado, pelo menos no passado português. Por outro lado, a lei assentava no princípio de que a propriedade dita eclesiástica era, na realidade, propriedade nacional posta ao serviço da Igreja, princípio igualmente revolucionário e subversivo, ao menos na sua prática. Se aplicada com rigor e constância, a Lei da Separação laicizaria de facto o Estado e abateria, de uma vez por todas, o poderio eclesiástico, descendo até às 'raízes do mal e arrancando-as', na expressão de Afonso Costa."


Lei da Separação daS IgrejaS do Estado

 

O Governo Provisório da República faz saber que em nome da República se decretou, para valer como lei, o seguinte:

Capítulo I

Da liberdade de consciência e de cultos

Artigo 1.º

A República reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda aos estrangeiros que habitarem o território português.

Artigo 2.º

A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português.

Artigo 3.º

Dentro do território da República ninguém pode ser perseguido por motivos de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da religião que professa.

Artigo 4.º

A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum; e por isso, a partir do dia 1 de Julho próximo futuro, serão suprimidas nos orçamentos do estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos.

Artigo 5.º

Da mesma data em diante serão extintas as côngruas e quaisquer outras imposições destinadas ao exercício do culto católico.

Artigo 6.º

O Estado, os corpos administrativos e os estabelecimentos públicos não podem cumprir directa ou indirectamente quaisquer encargos cultuais, nem mesmo quando onerarem bens ou valores que de futuro lhes sejam doados, legados ou por outra forma transmitidos com essa condição, que será nula para todos os efeitos, aplicando-se, de preferência, os respectivos bens ou valores a fins de assistência e beneficência, ou de educação e instrução. 

Artigo 7.º

O culto particular ou doméstico de qualquer religião é absolutamente livre e independente de restrições legais. 

Artigo 8.º

É também livre o culto público de qualquer religião nas casas para isso destinadas, que podem sempre tomar forma exterior de templo; mas deve subordinar-se, no interesse da ordem pública e da liberdade e segurança dos cidadãos, às condições legais do exercício dos direitos de reunião e associação e, especialmente, às contidas no presente decreto com força de lei. (...)

Artigo 11.º

Aquele que, por actos de violência, perturbar ou tentar impedir o exercício legítimo do culto de qualquer religião, será condenado na pena de prisão correcional até um ano, e na multa, conforme a sua renda, de três meses a dois anos.

Artigo 12.º

A injúria ou a ofensa cometida contra um ministro de qualquer religião, no exercício ou por ocasião do exercício legítimo do culto, será considerada crime público e punida com as penas que são decretadas para os mesmos crimes quando cometidos contra as autoridades públicas. (...)

Capítulo II
Das corporações e entidades encarregadas do culto

Artigo 16.º

O culto religioso, qualquer que seja a sua forma, só pode ser exercido e sustentado pelos indivíduos que livremente pertençam à respectiva religião como seus membros ou fiéis.

Artigo 17.º

Os membros ou fiéis de uma religião só podem colectivamente contribuir para as despesas gerais do respectivo culto por intermédio de qualquer das corporações, exclusivamente portuguesas, de assistência e beneficência, actualmente existentes em condições de legitimidade dentro da respectiva circunscrição, ou que de futuro se formarem com o mesmo carácter, de harmonia com a lei e mediante autorização concedida por portaria do Ministério da Justiça, preferindo a misericórdia a qualquer outra, e na falta de misericórdia ou de corporação com individualidade jurídica, não compreendida no artigo 4º, que tenha a seu cargo um serviço análogo, como hospício, albergaria, asilo, creche, albergue ou recolhimento, uma confraria ou uma irmandade que tenha sido ou seja também destinada à assistência e beneficência. (...)  

Capítulo III
Da fiscalização do culto público

Artigo 43.º

O culto público não depende de autorização alguma prévia, nem da participação a que se refere a lei de 26 de Julho de 1893, actualmente reguladora do direito de reunião, quando se exerça nos lugares, que a isso têm sido habitualmente destinados, ou que legalmente o forem de futuro e entre o nascer e o pôr do sol. 

Artigo 44.º

O culto público só pode ser exercido fora das horas mencionadas no artigo anterior quando a autoridade administrativa municipal verifique que não é possível ou é muito incómodo para os fiéis realizá-lo naquelas horas e assim o declare por escrito especificamente para cada caso. (...)

Artigo 50.º

É expressamente proibido realizar reuniões políticas nos lugares habitualmente destinados ao culto público de qualquer religião, incorrendo nas mesmas penas do artigo 48º, não só os ministros desse culto que a elas assistirem, mas quaisquer promotores delas, os membros da mesa e as outras pessoas que para elas contribuirem incitando ou convidando o público ou os fiéis, directamente ou por qualquer forma de publicidade, a comparecer ou a tomar parte nas reuniões ou na execução das deliberações aí tomadas. 

Artigo 51.º

Se a reunião tiver sido anunciada como cultual e tomar carácter político, as pessoas que se mostrarem responsáveis nos termos do artigo antecedente serão condenadas na mesma pena, agravada. (...)

Artigo 53.º

As crianças em idade escolar, que ainda não tiverem comprovado legalmente a sua habilitação em instrução primária elementar, não podem assistir ao culto durante as horas das lições.  (...) 

Artigo 57.º

As cerimónias, procissões e outras manifestações exteriores do culto não poderão permitir-se senão onde e enquanto constituírem um costume inveterado dos cidadãos da respectiva circunscrição, e deverão ser imediata e definitivamente proibidas nas localidades onde os fiéis, ou outros indivíduos sem seu protesto, provocarem, por ocasião delas, tumultos ou alterações da ordem pública. (...)

Artigo 59.º

Os toques dos sinos serão regulados pela autoridade administrativa municipal de acordo com os usos e costumes de cada localidade, contanto que não causem incómodo aos habitantes, e se restrinjam, quando muito, aos casos previstos no decreto de 6 de Agosto de 1833. De noite, os toques de sinos só podem ser autorizados para fins civis e em casos de perigo comum, como incêndios e outros.

Artigo 60.º

É proibido, de futuro, sob pena de desobediência, apor qualquer sinal ou emblema religioso nos monumentos públicos, nas fachadas de edifícios particulares, ou em qualquer outro lugar público, à excepção dos edifícios habitualmente destinados ao culto de qualquer religião e dos monumentos funerários ou sepulturas dentro dos cemitérios. (...)

CapítuloIV
Da propriedade e encargos dos edifícios e bens

Artigo 62.º

Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários, que têm sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião e doutros funcionários, empregados e serventuários dela, incluindo as respectivas benfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com personalidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados, mas sem necessidade de avaliação nem de imposição de selos, entregando-se os mobiliários de valor, cujo extravio se recear, provisoriamente, à guarda das juntas de paróquia ou remetendo-se para os depósitos públicos ou para os museus. (...)

Capítulo V
Do destino dos edifícios e bens

Artigo 89.º

As catedrais, igrejas e capelas que têm servido ao exercício público do culto católico, assim como os objectos mobiliários que as guarnecem, serão, na medida do estritamente necessário, cedidos gratuitamente e a título precário pelo Estado ou pelo corpo administrativo local que deles for proprietário, à corporação que nos termos do artigo 17º e seguintes for encarregada do respectivo culto.

Artigo 90.º

Os edifícios e objectos até agora aplicados ao culto público católico, e que para eles não forem necessários, incluindo os das corporações com individualidade jurídica, deverão ser destinados pela entidade proprietária, e poderão sempre sê-lo, de preferência, pelo Estado, a qualquer fim de interesse social, e nomeadamente à assistência e beneficência, ou à educação e instrução.  (...)

Artigo 102.º

O Estado concede os actuais edifícios dos seminários de Braga, Porto, Coimbra, Lisboa (S. Vicente) e Évora para o ensino da teologia, sem pagamento de renda, durante cinco anos, a partir de 31 de Agosto próximo. (...)

Artigo 195.º

Este decreto será sujeito à apreciação da próxima Assembleia Nacional Constituinte.

Artigo 196.º

Fica revogada a legislação em contrário.  (...)

Os Ministros de todas as repartições o façam imprimir, publicar e correr. Dado nos Paços do Governo da República, em 20 de Abril de 1911. Joaquim Teófilo Braga, António José de Almeida, Afonso Costa, José Relvas, António Xavier Correia Barreto, Amaro de Azevedo Gomes, Bernardino Machado, Manuel de Brito Camacho

 

Fonte: Diário do Governo, n.º 92, de 21 de Abril de 1911

A ver também:

A ler também:
  • A. H. de Oliveira Marques, "A Lei da Separação" in Portugal da Monarquia para a República, vol. XI da Nova História de Portugal, sob a dir. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 1991.

Outros documentos políticos
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