Alegoria à Constituição

Alegoria à Constituição, de Domingos Sequeira

1821, Óleo sobre tela, Museu de Arte Antiga

Bases da Constituição Política da
Monarquia Portuguesa

10 de Março de 1821

A aprovação em 9 de Março de 1821 das Bases da futura Constituição política, tem um significado jurídico relativamente obscuro. Os constitucionalistas, reunidos desde 26 de Janeiro na Assembleia Constituinte, parece terem querido resolver dois problemas. Primeiro, mostrar os princípios em que assentaria a substituição das «velhas leis fundamentais» pelo novo «pacto social», e substituía-las imediatamente para que o regime liberal não se continuasse a reger pelas «velhas leis», sendo por isso que as Bases servirão «provisoriamente de constituição». O segundo problema a resolver era o de reconhecer os princípios que haveriam de balizar os trabalhos da Constituinte, manifestando ao mesmo tempo o poder das Cortes Extraordinárias e Constituintes e mostrando o seu limite, tendo como outro possível objectivo o substituir a Constituição espanhola de 1812, como fonte da discussão constitucional em Portugal.

A Secção I é uma «Declaração de direitos», seguindo de perto o estabelecido nas primeiras dez emendas à constituição dos Estados Unidos de 1787, conhecidas pelo termo genérico de «Lei dos Direitos» (Bill of Rights) e pela «Declaração dos Direitos do homem e do cidadão», de 26 de Agosto de 1789.

A Secção II destina-se a definir as bases políticas e constitucionais da futura organização do Estado liberal.

Pode-se dizer que estas Bases são uma constituição de facto, condicionadora e informadora da futura constituição de 1822.

 


 

A regência do Reino, em nome de el-rei o senhor D. João VI, faz saber que as Cortes gerais, extraordinárias e constituintes, da Nação Portuguesa têm decretado o seguinte:

As Cortes gerais, extraordinárias e constituintes da Nação Portuguesa, antes de procederem a formar a sua constituição política, reconhecem os mais adequados para assegurar os direitos individuais do cidadão, e estabelecer a organização e limites dos poderes públicos do Estado.

 

SECÇÃO I

DOS DIREITOS INDIVIDUAIS DO CIDADÃO

 

A Constituição Política da Nação Portuguesa deve manter a liberdade, segurança e propriedade de todo o cidadão.

2

A liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exacta observância das leis.

3

A segurança pessoal consiste na protecção que o Governo deve dar a todos para poderem conservar os seus direitos pessoais.

4

Nenhum indivíduo deve jamais ser preso sem culpa formada.

5

Exceptuam-se os casos determinados pela Constituição, e ainda nestes o juiz lhe dará em vinte e quatro horas, e por escrito, a razão da prisão.

6

A lei designará as penas com que devem ser castigados, não só o juiz que ordenar a prisão arbitrária, mas a pessoa que a requerer e os oficiais que a executarem.

7

A propriedade é um direito sagrado e inviolável que tem todo o cidadão de dispor à sua vontade de todos os seus bens, segundo a lei. Quando por alguma circunstância de necessidade pública e urgente for preciso que um cidadão seja privado deste direito, deve ser primeiro indemnizado pela maneira que as leis estabeleceram.

8

A livre comunicação dos pensamentos é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo o cidadão pode, consequentemente, sem dependência de censura prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria, contanto que haja de responder pelo abuso desta liberdade, nos casos e na forma que a lei determinar.

9

As Cortes farão logo esta lei, e nomearão um tribunal especial para proteger a liberdade da imprensa e coibir os delitos resultantes do seu abuso.

10

Quanto porém àquele abuso que se pode fazer desta liberdade em matérias religiosas, fica salva aos bispos a censura dos escritos publicados sobre dogma e moral, e o Governo auxiliará os mesmos bispos para serem castigados os culpados.

11

A lei é igual para todos. Não se devem, portanto, tolerar nem os privilégios de foro nas causas cíveis ou crimes, nem comissões especiais. Esta disposição não compreende as causas que pela sua natureza pertencerem a juízos particulares, na conformidade das leis que marcarem essa natureza.

12

Nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade. Toda a pena deve ser proporcionada ao delito, e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente. A confiscação de bens, a infâmia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro quente, a tortura e todas as mais penas cruéis e infamantes ficam em consequência abolidas.

13

Todos os cidadãos podem ser admitidos aos cargos públicos sem outra distinção que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes.

14

Todo o cidadão poderá apresentar por escrito às Cortes e ao poder executivo reclamações, queixas ou petições, que deverão ser examinadas.

15

O segredo das cartas será inviolável. A administração do correio ficará rigorosamente responsável por qualquer infracção desta lei.

 

SECÇÃO II

DA NAÇÃO PORTUGUESA, SUA RELIGIÃO, GOVERNO E DINASTIA

 

16

A Nação Portuguesa é a união de todos os portugueses de ambos os hemisférios.

17

A sua religião é a católica romana.

18

O seu Governo é a monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais que regulem o exercício dos três poderes políticos.

19

A sua dinastia reinante é a da sereníssima casa de Bragança. O nosso rei actual é o senhor D. João VI, a quem sucederão na Coroa os seus legítimos descendentes, segundo a ordem regular da primogenitura.

20

A soberania reside essencialmente em a Nação. Esta é livre e independente, e não pode ser património de ninguém.

21

Somente à Nação pertence fazer a sua Constituição ou lei fundamental, por meio de seus representantes legitimamente eleitos. Esta lei fundamental obrigará por ora somente aos portugueses residentes nos reinos de Portugal e Algarves, que estão legalmente representados nas presentes Cortes. Quanto aos que residem nas outras três partes do mundo, ela se lhes tornará comum, logo que pelos seus legítimos representantes declarem ser esta a sua vontade.

22

Esta constituição ou lei fundamental, uma vez feita pelas presentes Cortes extraordinárias, somente poderá ser reformada ou alterada em algum ou alguns de seus artigos, depois de haverem passado quatro anos contados desde a sua publicação, devendo, porém, concordar dois terços dos deputados presentes em a necessidade da pretendida alteração, a qual somente se poderá fazer na legislatura seguinte aos ditos quatro anos, trazendo os deputados poderes especiais para isso mesmo.

23

Guardar-se-á na Constituição uma bem determinada divisão dos três poderes – legislativo, executivo e judiciário. O legislativo reside nas Cortes, com a dependência da sanção do rei, que nunca terá um veto absoluto, mas suspensivo, pelo modo que determinar a Constituição. Esta disposição, porém, não compreende as leis feitas nas presentes Cortes, as quais leis não ficarão sujeitas a veto algum.

O poder executivo está no rei e seus ministros, que o exercem debaixo da autoridade do mesmo rei.

O poder judiciário está nos juízes. Cada um destes poderes será respectivamente regulado de modo que nenhum possa arrogar a si as atribuições do outro.

24

A lei é a vontade dos cidadãos declarada pelos seus representantes juntos em Cortes. Todos os cidadãos devem concorrer para a formação da lei, elegendo estes representantes pelo método que a Constituição estabelecer. Nela se há-de também determinar quais devam ser excluídos destas eleições. As leis se farão pela unanimidade ou pluralidade de votos, precedendo discussão pública.

25

A iniciativa directa das leis somente compete aos representantes da Nação, juntos em Cortes.

26

O rei não poderá assistir às deliberações das Cortes, porém somente à sua abertura e conclusão.

27

As Cortes se reunirão uma vez cada ano em a capital do reino de Portugal, em determinado dia, que há-de ser prefixo na Constituição; e se conservarão reunidas pelo tempo de três meses, o qual poderá prorrogar-se por mais um mês, parecendo assim necessário aos dois terços dos deputados. O rei não poderá prorrogar nem dissolver as Cortes.

28

Os deputados das Cortes são, como representantes da Nação, invioláveis nas suas pessoas, e nunca responsáveis pelas suas opiniões.

29

Às Cortes pertence nomear a regência do Reino, quando assim for preciso; prescrever o modo por que então se há-de exercitar a sanção das leis, e declarar as atribuições da mesma regência. Somente às Cortes pertence também aprovar os tratados de aliança ofensiva e defensiva, de subsídios e de comércio; conceder ou negar a admissão de tropas estrangeiras dentro do Reino; determinar o valor, peso, lei e tipo das moedas, e terão as demais atribuições que a Constituição designar.

30

Uma junta composta de sete indivíduos eleitos pelas Cortes, de entre os seus membros, permanecerá na capital onde elas se reunirem, para fazerem convocar Cortes extraordinárias nos casos que serão expressos na Constituição, e cumprirem as outras atribuições que ela lhes assinalar.

31

O rei é inviolável na sua pessoa. Os seus ministros são responsáveis pela falta de observância das leis, especialmente pelo que obrarem contra a liberdade, segurança e propriedade dos cidadãos, e por qualquer dissipação ou mau use dos bens públicos.

32

As Cortes assinarão ao rei e família real, no princípio de cada reinado, uma dotação conveniente, que será entregue em cada ano ao administrador que o mesmo rei tiver nomeado.

33

Haverá um conselho de Estado, composto de membros propostos pelas Cortes, na forma que a Constituição determinar.

34

A imposição de tributos e forma da sua repartição será determinada exclusivamente pelas Cortes. A repartição dos impostos directos será proporcionada às faculdades dos contribuintes, e deles não será isenta pessoa ou corporação alguma.

35

A Constituição reconhecerá a dívida pública, e as Cortes estabelecerão todos os meios adequados para o seu pagamento, ao passo que ela se for liquidando.

36

Haverá uma força militar permanente de terra e mar, determinada pelas Cortes. fl seu destino é manter a segurança interna e externa do Reino, com sujeição ao Governo, ao qual somente compete empregá-la pelo modo que the parecer conveniente.

37

As Cortes farão e dotarão estabelecimentos de caridade e instrução pública.

 

 
Fontes:
Joel Serrão (sel.), Liberalismo, Socialismo, Republicanismo. Antologia de Pensamento Político Português, 2.ª ed., Lisboa, Livros Horizontes, 1979, págs. 66-70;

J. Joaquim Gomes Canotilho, «As Constituições» in José Mattoso (dir.), História de Portugal, 5.º Volume: Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque (coord.), O Liberalismo (1807-1890), Lisboa, Editorial Estampa, 1998, págs. 126-139.

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