As facções não têm aqui órgão;
todos somos de um partido. Mas, quando não é para se lamentar
profundamente que a tal ponto tenham as facções confundido as coisas
mais simples, sofismado os princípios mais claros, que até aqui
cheguem ecos de suas desvairadas e irracionais pretensões
transmitidos por lábios, aliás honestos, que eu suponho verdadeiros
mas iludidos mas que repetem as fátuas aberrações de um cérebro
confundido, enredado no labirinto que à volta de toda a gente de bem
formam essas facções perversas para a desorientar e perder!
Iludidos!.. . Sim, sois iludidos vós
todos os que, desejando o bem, fazeis tanto Dia]; vós que, abdicando
a razão que Deus vos deu para guia de vossas acções, – o
entendimento, a vontade, as palavras, as opiniões, tudo sujeitais ao
capricho de uma vã, de uma falsa e morredoura popularidade; que
cerrais os ouvidos à voz da consciência, quando ela vos brada: É
falso! e, conhecendo o erro das turbas, sem coração nem piedade,
bradais ás turbas: Têm razão!
Sim, sois iludidos: e quem nestes vinte
anos de oscilação não tem sido? Todos o fomos, a todos nos têm
enganado as facções; todos, cuidando pregar as nossas doutrinas,
temos sido pregadores de falsa lei; todos, cuidando trabalhar em nossa
lavoura, todos temos granjeado a fazenda alheia; uns pelo Povo, outros
pelo Rei, todos lidando em vão na nossa causa, todos obedecendo, sem
o sabermos, aos motores encobertos que nos dirigem, que zombam de
nossas fadigas, e se divertem com estes movimentos de manequim em que
nós sós nos afadigamos, e eles sós aproveitam. Sic vos non vobis.
Temos, temos todos, mais ou menos, abraçado
a nuvem por Juno; todos nos temos enganado com a espécie do bem, todos
erramos: porque o não confessaremos todos?
Porque as facções não querem, porque
as facções nos aturdem os ouvidos, nos azoinam as cabeças, nos
espicaçam o coração, nos alvoroçam o amor-próprio: e excitando em
nós quanto tem de ignóbil, de pequeno e de vil a nossa pobre
natureza, de seus imundos vapores toldam o fraco lume da Razão divina
que em nós está.
É assim, é; porque as facções não
querem que se discutam as questões, não querem que nós saibamos o
que queremos. Querem-nos, a todos, neste vácuo escuro e de sempiterno
horror cm que tudo é desordem e confusão, em que vinguem a si mesmo
se percebe, em que uns bradamos contra os outros sem saber o quê nem
porque bradamos, e lutando nas trevas, digladiando-nos na escuridão,
por fim nos destruamos uns aos outros, raça fadada de Cadmo, - porque
só nessa desordem e açougaria pôde caber o momentâneo reinado das
facções - só nesse momento em que não há governo possível, de
nenhuma forma, de nenhuma cor, de nenhum principio.
Portanto, venha de que lado vier, seja
qual. for o principio, a ideia política a que a ordem queira dar
consistência, organizando a sociedade, toda a facção contra ela se
levanta. Nada há louvável, nada há desculpável em quem uma vez
falou em ordem. É a túnica do Centauro que o lambe de chamas, e o
devora de angústias. Tenha perdido a mocidade e a saúde sobre os
livros, – fica ignorante. Desempenhasse honrada e zelosamente os
cargos da republica, - é um peculador, um Verres. Fosse bom pai, bom
filho, bom esposo, cidadão útil, cristão temente a Deus. - A um vão-lhe
desenterrar os cadáveres dos pais, e com os ossos carcomidos dos seus
o apedrejam; a outro, vão-lhe devassar nos pecados da sua gente para
lhos lançar à cara como crime e afronta própria. - Perdesse, um a
um, na defesa da pátria os membros mutilados; - resuscitar-lhos-hão
de escárnio, e o motejarão por seus gloriosos defeitos. Sente-se à
direita ou à esquerda, tenha sido sempre leal aos seus amigos políticos,
e mais ainda aos seus princípios políticos; não lia fraternidade de
opiniões, não lia vínculos de amizade. Falou em ordem? Morra por
ela. Não lia epítetos injuriosos, não há alcunhas chocarreiras, não
há vitupérios que não mereça: é um monstro, é um traidor, um
insignificante, um fidalgote de aldeia que se quer aparentar
com as famílias da corte. - Que miséria!
Que miséria na verdade! Quando e como
nos quisemos nós aparentar com essas famílias ilustres E quais são
elas, e aonde estão elas, essas famílias ilustres?
Vai em quatro anos que os mais moços na
vida parlamentar aqui estamos sentados em nosso canto: quando procurámos
a vossa aliança política, homens dos extremos? Seria impugnando
sempre vossas erradas doutrinas, seria combatendo sempre os vossos
argumentos, denunciando sempre à opinião os vossos sofismas? Não
nos combatestes vós também sempre? Não ficámos, nós poucos e mal
ouvidos, não ficámos nós vencidos sempre pelos vossos votos?
Convencidos dos vossos argumentos, nunca. Em toda a discussão de
princípios políticos – dos questionáveis se entende – estivemos
alguma vez de acordo? Deixastes vós jamais, em todas essas ocasiões,
de nos acusar, de nos denunciar como sustentadores das mesmas
doutrinas que defendemos hoje, que advogámos, sempre, que sempre vos
foram obnóxias? Mas vós prezais-vos de coerentes porque ainda hoje
as impugnais; e a nós porque ainda hoje as defendemos também,
ousais-nos acusar de versáteis e inconsistentes!
E porquê? Porque hoje votámos com a
direita? A vós o pergunto, deputados da esquerda se os nossos princípios
achassem impugnadores no lado direito da Câmara, se alguma vez os tem
achado, não votaríeis vós, não tendes vós votado com eles?
Pois o mesmo fazemos, o mesmo faremos
sempre: a coerência politica é de princípios não de pessoas; esta
fé professamos, por este único voto estamos ligados, aos nossos
constituintes o prometemos, de nós o espera a Nação a quem o jurámos.
Onde está, no nosso actual
procedimento, onde esteve no que sempre fizemos, a prova desse fátuo
desejo de nos aparentarmos com vossas ilustres famílias, a
quem modestamente destes brasão e timbre, sem audiência de reis de
armas - Portugal, que não teria pouco que dizer na matéria? - Nós não;
que vos não disputamos a fidalguia, mas só o direito de
primogenitura que usurpais fraudulentos; e, com o poeta da Religião e
da Liberdade, com esse grande génio que Deus suscitou no meio da França
para glória do Cristianismo e para açoite dos tartufos políticos, nós
vos perguntamos: «Quando foi que, Esaús da liberdade, nós renunciámos
ao nosso quinhão da herança?» Donde vos vem o direito que vos
arrogais – não só de primeiros, mas de filhos únicos?
Ilustre família! E donde vos vem a
ilustração? Dos martírios da Liberdade? Também nós os padecemos.
Da gloria que adquiristes para a Nação? Afias por feitos de armas, não
há secção, não há fracçãozinha de partido em Portugal que não
tenha parte neles. Mas por letras... Oh! aí nos humilhamos nós
diante de todos, até de vós.
Tristíssima e de mau gosto foi essa irónica
saudade com que, fingindo que só agora nos separávamos, de nós se
despediu um orador da extrema, com quem, ao vê-lo tão saudoso,
pareceria que sempre estivemos unidos em sentimentos e doutrinas
politicas. Jamais o fomos bem o sabe ele, nem ousará negá-lo, que
lhe fora mister renegar todas essas teorias obsoletas que aqui tem
defendido sempre, contra nós que lhas condenámos sempre, porque
sempre as tivemos e demonstrámos absurdas. Jamais os nossos votos se
acordaram com os seus senão nas questões económicas gerais, em que,
reassumindo a sua natural razão, muitas vezes a tem o ilustre
deputado, e por tal o apoiou o centro. E bem sabe ele que em
semelhantes questões se pôde contar com os nossos votos.
Nós não queremos dominar as votações,
mas queremos obstar ás votações cerradas de compadrio. Queremos
votar com a esquerda ou com a direita segundo tiver razão uma ou
outra. Entendemos fazer assim a nossa obrigação de centro,
entendemos desempenhar assim uma impopular mas indispensável função
parlamentária; estamos certos de seguir assim a opinião nacional que
inquestionável, e provadamente – quanto no governo representativo
pode provar-se – com seus votos tem confirmado ora o procedimento de
uma, ora o de outra das duas secções do partido constitucional.
Nós entendemos assim o voto popular; e
se ele nos engana (o que não creio), culpai as vossas leis que lhe
regularam a expressão.
E sobre quem ousaria o enfático orador,
tão precipitado em liberalizar títulos, sobre quem ousaria ele
cuspir o de bastardos? Não sei. Bastardos há de certo na casa da
liberdade, bastardos que a desonram espúrios que a desacreditam.
Esses ramos degenerados de uma árvore ilustre, esses que a todo o
vento de opinião flutuam, hão-de ser de certo os que na factura da
Constituição querem um princípio, e cavilham depois a sua execução
nas leis orgânicas. Hão-de ser de certo os que hoje acusam de
liberticida uma lei, e que amanhã a defendem como paladino de
liberdade. Hão-de ser talvez os que serviram a tirania em quanto ela
era poderosa, que depois serviram a demagogia quando a julgaram
omnipotente, que hoje querem servir ainda – porque para servirem
nasceram – e já nem sabem a quem. Buscai-os esses homens não sei
aonde; procurai-os não sei onde estão... Mas não os haveis de achar
no centro.
Bastardos
hão-de ser da casa da liberdade esses Gracos ridículos, esses
Publicolas palhaços que ora se enfeitam da coroa cívica nos Comícios,
ora das pérolas de barão feudal nos palácios. Procurai-os, não sei
onde os achareis. Aqui não: não temos cá barões no centro.
E não hão-de as facções
vociferar quando se fala em ordem, ordem que é razão e justiça,
ordem que, sobre tudo e mais que tudo, é verdade? - Não, que ele era
doce invocar o nome de Jesus Cristo para só lhe tosquiar em vez de
lhe apascentar o rebanho, e vir, horas mortas, ao altar comer as oblações
da enganada piedade. - E a Ordem pulveriza de cinza o pavimento para
mostrar no outro dia ao povo as pegadas dos seus embaladores...
Não
que ele era doce invocando o nome do Rei, reinar mais que ele, e
governá-lo a ele, aclamar absoluto o seu poder por imediato a Deus, e
transferi-lo todo para uma Camarilha usurpadora.
Não, que ele era mais doce ainda, mais
suave que tudo, dominar as turbas com a lisonja; dispor da força
bruta, que tanto mais serva e escreva é quanto mais cuida mandar;
concentrar em si todos os direitos, monopolizar toda a liberdade para
si só; - ter as honras de Catão e o poder de César; almoçar no fórum
os rábanos do Fabrício, e banquetear-se a noite nos temulentos palácios
de Lúculo!
E a emprazadora da ordem e os importunos
dos Doutrinários a patentear ao Povo estes mistérios Eleusinos, a
abrir diante de seus olhos as austeras, as desenganadoras páginas da
história, a mostrar-lhes aí como dos Gracos se fazem Catilinas, e
dos Mários ditadores, como o tribuno se converte sempre em áulico, o
publícola em palaciano, mal as turbas se fatigam de seu reinado
nominal, e o Poder, por sua natural tendência, ou se concentra no
feixe consular, ou na vara ditatorial, ou no diadema imperial, ou no
simples bastão do protectorado - em qualquer símbolo da Realeza que
se destruiu mentindo, que mentindo se restabelece.
E há de se deixar falar a Ordem,
e há-de consentir-se que a oiça o Povo! Não: rufem-se-lhe as caixas
da anarquia, sumam-se esses brados de verdade como se sumiram os últimos
clamores de perdão com que a Real Vítima da França envergonhava do
cadafalso os seus algozes.
E para essa França aponta a Ordem a
cada instante, e a mostra de exemplo e escarmento ao Povo! E lhe
mostra esses declamadores da Constituinte e da Convenção rasgando
aos pés de Bonaparte a Declaração dos direitos do homem;
ajoelhados diante do Papa na cerimonia cristã da sagração do novo
ídolo, com a mesma devoção com que ouviram no altar da pátria a
sacrílega missa de um bispo apóstata, com que nas profanadas basílicas,
ébrios de vinho e de sangue, entoaram diante da prostituta deusa da
Razão seus asquerosos ditirambos ao som da guilhotina reformadora! E
o barrete frigio do Sans-cullote é coroa ducal hoje; e os lictores de
Robespierre andam agora na tábua, ou boleiam agaloados as seges da
casa do primeiro cônsul; e os mais furiosos niveladores da república
una e indivisível, disfarçadamente alardeiam, diante do logrado povo
de Paris, as fardas bordadas de criados do imperador Napoleão!
Mal do povo Português se não ouvir e
entender, ao menos a historia do seu tempo, para aprender nos erros
alheios! Mal dele se, em estrada taro conhecida e trilhada, não vir
as pegadas de sangue que os outros povos aí deixaram!
Em tudo lho mentem a esta pobre Nação,
tudo lhe desfiguram para que ela não entenda. Pois, de que se trata
agora? De mudar a constituição, de destruir as leis existentes? Quem
tal propôs, quem tal sustentou? 0 que se tem proposto e nós
advogamos, é dar comprimento e desenvolvimento à Constituição do
Estado, com a reforma das leis orgânicas, não introduzindo leis
novas (é falso; não destruindo as antigas (é mais falso ainda); mas
procurando emendar aqueles defeitos que a experiência tem mostrado, e
a cujo exame sincero só pode proceder-se com ordem e tranquilidade,
de nenhum modo entre clamores de praça, entre vaias de açougue.
E, a nós nos dizem que queremos rasgar
as leis! Rasgar as leis nós!... Quando o fizemos, quando aprovámos
quem o fizera? Para diante da Nação Portuguesa vos emprazamos, que
bem sabe se de nós o deve temer ou de quem.
Mas as facções não argumentam nem discutem,
porque nem sabem nem podem discutir; só querem, só podem, unicamente
sabem praguejar, insultar, caluniar, blasfemar, tomando em vão, os
santos nomes da Liberdade, do Povo, do Rei e de Deus! E jurar que os
Ordeiros são os inimigos de tudo, que a Ordem é o animal do
Apocalipse, que mata, que destrói, que devora. E então levantam um
grande clamor desatinado e confuso que ensurdece os ouvidos; e
suscitam do abismo uma grande cerração de trevas que obceca os olhos
há multidão e que, não lhe deixando ver nada do que é, prepara o
entendimento para crer tudo o que não é.
Pois não ouvimos nós aqui um ilustre orador do lado esquerdo da Câmara,
sem fazer justiça a seu próprio coração, abdicando o seu raciocínio
natural, soltar, em vez de argumentos que podia e sabia fazer, meros
sofismas em frases redondas e bem soantes? Nesse género de dizer lhe
reconheço inquestionável e superior talento. Verba et praeterea
nihil lhe chamou já outro orador que se senta ao meu lado.
Dizem-se aqui, Senhores, proferem-se categoricamente e como axiomas,
absurdos tais que até são injuriosos para aqueles cuja causa se
defende, cujas opiniões se querem sustentar, cujos actos pretendem
desculpar-se. Assim dogmaticamente foi dito que o Poder criado pela
Carta tinha sido destruído. -Como, quando, quem destruiu o Poder
criado pela Carta? A revolução de Setembro! É falso, é calunioso.
Não cometeu esse crime a revolução, teve mais juízo que isso. Se a
alguém veio tal desejo; se nesses obscuros sótãos, se nessas
escondidas aguas furtadas, onde, pelo testemunho do mesmo orador com
quem falo, sabemos que estavam covardemente agachados os anónimos
conspiradores, os envergonhados instigadores desse acto que nunca
ousaram confessar, nem depois que a tolerância e a adopção
nacional, remindo-o da culpa, converteu as suas consequências em
legalidades nesses, (o que eu não creio facilmente) houve tão atroz
pensamento, tão impopular, tão anti-português - não ousaram
manifestá-lo ao Povo. Que seria da revolução se tal fizessem!
A revolução não destruiu o Poder criado pela Carta, o poder
constitucional do Rei na pessoa e dinastia de sua actual e augusta
Representante, e o do Parlamento nacional com duas Câmaras:
confessou-o, confirmou-o, proclamou-o desde o seu primeiro brado; e
por isso achou aderentes e defensores, que, sem tais protestos, todos
saem em Portugal e fora dele, nunca havia de encontrar. . .
Aqui foi o Orador interrompido pelo Sr.
Deputado José Estêvão, que disse: - «O poder criado pela Carta era o Sr.
José da Silva Carvalho.» - O Orador continuou, apontando para o
deputado que o interrompera:
Ali está, Senhores, a confissão ingénua de todas as minhas acusações;
naquelas palavras está o testemunho irrecusável de que todas as
questões aqui seio pessoais, de que tudo se reduz a mesquinhas, a
miseráveis considerações de indivíduos, que os mais graves
objectos, que os maiores interesses desaparecem diante destas
pequenezas! Um homem é o princípio! A três homens que se juntem,
chama-se-lhes um partido! Ao simples ministro do príncipe chamam-lhe
um poder criado pela Constituição!
O Poder criado pela Carta não se destruiu; mas a sociedade, já
desorganizada ou não organizada ainda para o novo poder, chegou mais
perto da dissolução: as pedras do edifício, ainda não cimentadas,
e que mal se tinham por sua justaposição, caíram muitas e
desconjuntaram-se todas. Quis arquitectá-las de novo este Código
administrativo que agora vamos reconsiderar: a experiência provou que
não pôde; quantos a fizeram, o declararam. E agora negam o que já
confessaram, – agora falam contra o que escreveram e assinaram; e o
Código administrativo é a arca santa, é o testamento da aliança em
que não é permitido tocar.
Tal é a matéria dos pretendidos argumentos com que nos combatem. A forma
não é somenos. Um dos meus amigos que tem lugar no centro, cortesmente
foi arguido de não entender os livros de Guizot, cujas palavras com a
mesma civilidade lhe disseram que só textualmente sabia
traduzir. E logo o mesmo polido orador, dando-nos, do alto de sua
infalibilidade, a interpretação autêntica das doutrinas do grande
publicista e ordeiro francês, resolvei. a questão do censo,
declarando que ele era impossível em Portugal, porque Mr. Guizot,
tinha mostrado que as classes sociais eram diversamente constituídas
em Franca, do que na Inglaterra e nos Estados Unidos. Não argumentou
dessas diferenças para o que devia haver no modo e quota do censo, não,
para a proporcional diferença que a diferente constituição das
classes portuguesas demanda: não; concluiu que o censo era
impossível!
Só o chamar a esta questão a questão do censo, é a maior das
muitas decepções com que a opinião pública cm Portugal anda
ludibriada. Por Deus, falemos um dia a verdade. - A questão que se
trata é a da prova do censo. São coisas muito diferentes. A
questão do censo resolveu-a a Constituição, não se pode tratar
dela. Mas pode, deve e há-de se tratar a da prova, porque
no-lo manda a Constituição, porque o exige, porque a quebramos, e ao
juramento que lhe demos, se a não tratarmos e resolvermos.
Esta famosa e arteiramente complicada questão é todavia clara e simplicíssima:
reduz-se a saber se há-de estabelecer-se uma prova fixa, legal e
verdadeira do censo que a Constituição marcou, prova igual
para todos, e protegedora dos direitos políticos dos cidadãos, –
ou se há-de ficar como tem estado, inconstitucionalmente entregue ao
arbítrio das autoridades que, segundo a geral confissão de toda a Câmara
e de todo o reino, por querenças e malquerenças pessoais, por
simpatias e antipatias de partido, por ódiozinhos e amisadezinhas,
por espírito de bairro e por compadrio, encurtam e estendem, a seu
capricho, a medida que têem nas mãos e que não é aferida pelo
vero-peso da lei.
Esta é a sincera verdade: mas porque se não diz? Porque é necessário
caluniar os Ordeiros, e clamar que eles querem tirar os direitos ao
Povo, que para o excluir da urna propuseram a lei do censo.
Nós não propusemos lei nenhuma de censo; torno a dizê-lo; a lei está
feita na Constituição. Porque se mente pois ao Povo? Porque se lhe não
diz: «Nessa constituição que reformámos, que jurastes, e que tanto
dizem que amais, foi feita esta lei: o vago em que ali está
expressada tem dado causa a mil fraudes e abusos, que todos (e note-se
bem, todos) temos reconhecido. É nossa obrigação e vosso
interesse que lhe fixemos regras claras e positivas.» - Mas isto era
falar verdades lisas que não aproveitam; e vale mais dizer: «Os
Ordeiros inventaram esta quimera do censo que não serve senão para
vos excluir da urna e para a entregar nas mãos do Poder.» - É uma
falsidade, é uma calúnia: bem o sabe quem o diz; mas diz-se.
Até com a formação do actual
ministério, e com a questão estrangeira quiseram enredar esta nossa
questão da prova do censo. E já nós a tínhamos proposto nas Cortes
Constituintes, e já na passada sessão ordinária a instaurou de novo
a penúltima administração, e o Centro forcejou em vão por que se
tratasse. E permanentemente devia ela ter sido nesta Câmara desde que
se votou a Constituição. Não é nossa culpa se o não foi.
Dizem-se em verdade aqui pasmosas e incríveis coisas! «Esta lei, clamam,
esta lei do censo vai excluir da urna os próprios defensores
da Legitimidade e da Liberdade, que deram o seu sangue por que nós
gozássemos desse direito.» . . . Se tal é, Senhores, se tal fosse,
voto desde já contra este, contra todos os projectos de um Ministério
tão insolente que tal ousa vir propor a uma Câmara de deputados
portugueses. Mas é falso! e quando lá chegarmos a essa questão (se
nos deixarem chegar a essa ou outra qualquer de verdadeiro interesse público)
então veremos se uma lei necessária para realizar a Constituição,
sem a qual a Constituição é mentira, a representação nacional um
absurdo, pode excluir ninguém da urna. Então veremos se os direitos
políticos dos cidadãos de todas as classes podem ser melhor
qualificados pela ridícula infalibilidade de uma junta de paróquia,
de uma câmara muitas vezes nem eleita, de um conselho de distrito que
nem representa nem conhece o distrito, mas só a terra em que moram os
seus membros que, por moradores e não por sabedores, a tal conselho são
chamados.
De toda a parte têem vindo os sofismas. À própria desgraçada Irlanda, à
última Bretanha se foram buscar; e entrados por contrabando, com
ofensa das pautas, do senso comum, aqui os trouxeram para combater
verdades que nós apresentámos francamente, despachadas na alfândega
como tracto claro e leal que são. «Vejam a Irlanda, olhem para a
Bretanha» – exclamou, veemente e triunfante, um orador do lado
esquerdo: «quem as reduziu a esse mísero estado em que se acham? A
Ordem. Quem as oprime e avexa? Os Ordeiros.» Pode-se ter o riso com
este modo de argumentos, pode haver algum mais contraproducente, mais
para fazer compaixão? Exemplo das calamidades da ordem, a Irlanda! A
Irlanda que tem sido vítima da desordem, vítima de um sistema
exclusivo e faccioso! - (Tudo quanto é faccioso é exclusivo, tudo
quanto é exclusivo é faccioso.) Que contra seus hábitos e crenças,
contra sua fé e costumes, a quis sujeitar a uma religião repugnante,
a uma política especulativa e absurda ! Perguntem-no a O'Connell,
perguntem-no ao mestre agitador O'Connell, se os primeiros respiros
folgados que soltaram, se a primeira aurora de felicidade e liberdade
que naquela votada ilha apareceu, não foi quando a Ordem, impondo
silencio ás facções exclusivas; triunfou no parlamento Britânico,
chamando à comunhão política aqueles cidadãos que os facciosos
faziam facciosos, como todos os partidos exclusivos fazem.
O mesmo direi da Bretanha, desgraçada e facciosa em quanto os facciosos de
Paris lhe queriam impor lima religião de loucos, uma lei civil de bárbaros,
- pacificada e obediente logo que, liberto dos facciosos, o governo da
França lhe levou, com a ordem, o regime da tolerância e da razão.
E não seriam os absurdos facciosos os que dilaceraram e atrasaram aquelas
duas tão belas e ricas porções de dois grandes impérios? E não
seria a Ordem que as restituiu e chamou à civilização? A Ordem que
desfaz o exclusivo insultante e usurpador das facções, que dá a
cada um o que lhe é devido, que a todos os partidos chama
indistintamente aos cargos, aos empregos, ás honras, à protecção,
à liberdade; que os não quer património de nenhumas famílias
privilegiadas como dantes eram, nem de nenhuns partidos como hoje se
queriam fazer. E tão mau é para o Povo que as dignidades e funções
públicas, que o gozo exclusivo de todos os direitos andem de juro e
herdade numa casta ou numa classe, como que andem enfeudadas num
partido ou numa seita. Ao Povo convêm, a Ordem exige, que os talentos
e as virtudes sejam chamadas sem distinção ao serviço do Povo e do
Rei; e que, assim como já não pode o Cristão velho excluir o Cristão-novo,
nem o fidalgo o peão, também não possa um partidário excluir a
outro. - Ora os Ordeiros querem anular esse veto usurpador e insuportável,
que a própria família liberal ia dividindo em tantas fracçõesinhas
quantas eram já quase os seus indivíduos – e este crime é imperdoável!
É certamente, nos tribunais facciosos deve sê-lo.
No sôfrego
e imprecatado desejo de deprimir uns para lisonjear outros, excitando
a desconfiança e a guerra entre todos, se brada ao Povo que nada deve
aos seus capitães, aos que nas fileiras ordenadas da Liberdade o tem
sempre levado, a ele Povo, a triunfar da usurpação ultimamente, a
sustentar a sua independência nas guerras antigas. Ah Senhores! Na
monarquia livre não é necessário o ostracismo. 0 primeiro lugar está
sempre ocupado pela lei: nem os serviços de Temistócles nem as
virtudes de Aristides metem medo à nossa república. Bendita seja a
nova e preciosa forma da liberdade moderna!
Não
é isso o que a nação quer, não são dessas tredas louvainhas as
que lhe afagam os ouvidos: que se desenganem os seus cortesãos. A
Nação bem sabe que, se o Povo fez serviços à causa da Liberdade,
também a classe média os fez, também a aristocracia – e também o
trono. Digam a verdade, digam-na toda; que a metade só da verdade é
tinia mentira inteira. A Nação não distinguiu classes, não as
mediu, e sobretudo não desconfiou, não abriu devassa de
suspeitas, quando se levantou em massa – e essas sim que eram
virtuosas massas! -para cair sobre o despotismo.
Em
torno do estandarte que se hasteou na Terceira, que desembarcou no
Mindelo, vinha reunir-se o peão com sua nobre espada, o nobre com sua
espingarda de soldado raso. Vimos o desembargador sobraçar a beca
para carregar o obus; e curvar o joelho, na linha de frente, o fidalgo
mais preocupado de sua linhagem histórica. Tais questões de
precedência ou preferência, não as admitia então a Nação porque
só queria recuperar a sua liberdade; não as admite agora porque só
quer gozar da sua liberdade.
Não
por falta de diligências que agora se não façam, não por falta de
esforços que então se não fizessem. Bem se agitou, bem se declamou,
bem se trabalhou para introduzir em nossas pequenas fileiras o gérmen
de discórdia que já então andava por essas cabeças que sempre me
obstinei a chamar louca, quanto ainda hoje me obstino por lhes achar
inocentes os corações. Bem trabalharam, repito; mas a Ordem triunfou
e por isso a Nação venceu.
Oh!
virtuosas massas eram aquelas! Ide agora; ide, lançai-as outra vez
nas praias do Mindelo, levantadas desse azedo fermento com que as
levedais a cada instante, e vereis se têm a mesma virtude. - Hão-de
tê-la se o perigo voltar, porque nessa hora os amassadores
fogem, o fermento abate, e só fica a substância compacta e sã da
lealdade e do valor de um povo generoso. O povo não os crê aos
falsos publicolas, e respeita e venera os seus caudilhos verdadeiros.
«Ide, lhes responde ele, ide, dizer aos Suíços que derrubem a
estátua de Guilherme Tel, aos Americanos dite despedacem a do seu
Washington, aos Romanos que despenhem da rocha Tarpea as dos seus
Brutos e Camilos. Ide-lhes pregar que a si sós, e não a seus
ilustres capitães, devem a liberdade: endoudecei-os se podeis. Nós
queremos adorar a espada ferrugenta do Condestável, queremos
prostrar-nos diante dos túmulos de João I e de Pedro IV. Queremos
por gratidão, queremos por interesse, porque na hora da angústia bem
sabemos com quem nos havemos de achar.»
Ao
menos se estes solecismos políticos não fossem tão escandalosamente
mal soantes! Mas, com a ânsia de deprimir o mérito verdadeiro, de
converter o respeito público em ódio, proferem-se coisas que pasma.
Tais há que até são injuriosas aos próprios que as dizem, e que,
se as dissesse outrem, para si as tomariam por afronta imperdoável e
atroz.
Disseram
– e como se lhes não engasgou a blasfémia na boca! disseram que eram
maiores os serviços feitos à causa da Liberdade pelas autoridades do
usurpador que tinham alguma indulgência connosco, do que os outros
todos, do que os próprios serviços do campo de batalha!
Estas
palavras proferiram-se: é tarde para as negar: gravaram-se-me no
coração para sempre: registou-as o Povo no seu livro grande, a
memoria das gerações que nunca se perde. Ide dizê-lo a esses que
nos esmolam ás portas porque gastaram quanto tinham para nos socorrer
e defender! Ide dizê-lo ás viúvas dos que morreram no campo da
honra 1 Ide dizê-lo aos órfãos dos que expiraram no patíbulo não
menos honroso! Ide, que vo-lo agradeçam!
São
desses desvarios, são desatinos como esses os que, tanto ou mais do
que a absurda e impossível lei das indemnizações, têm endoudecido
as gentes, e fomentado a desordem das províncias, espécie de
anarquia de bairro que trouxe a tirania de aldeia, assim como a grande
anarquia dos povos traz a grande tirania dos reis. Bem chamou um amigo
meu a este estado das nossas comarcas, o feudalismo dos valentões.
Responderam-lhe com banalidades, invectivaram-no com afrontosas
suspeitas. Eu quero para mim parte do vitupério, porque a mesma
expressão adopto, porque faço a mesma asserção. Que lei tinham os
antigos senhores feudais? A de chamar seu a tudo à roda de si, até
onde chegava aponta de sua espada. - Qual é o único direito que
reconhecem esses novos barões feudais das nossas terras? O de chamar
seu a tudo à roda de si até onde alcançam as bocas de seus
arcabuzes, os bicos de suas baionetas: outra diferença não vejo
entre estes dois feudalismos, senão a da hipocrisia da parte dos
modernos: porque os antigos criam piedosamente no seu direito; os
nossos sabem, professam e pregam o contrário do que praticam.
Et consules vident!
E nós vemos e tolerámos, e por coroa de vergonhas,
havemos de ir dizer à Rainha, nessa resposta, que o país está
tranquilo e feliz!
E
porque houve um homem honesto e corajoso que ousou dizer alto a
verdade, apedrejam-no das mais ponderosas calúnias. Foi o meu amigo o
Sr. Deputado por Beja a quem, por expor, e propor remédio para, o
verdadeiro estado de Portugal, – de todos os crimes acusaram, até
de convidar os estrangeiros para nos virem conquistar! Sem remorsos,
sem consideração por um homem fraco e valetudinario, um lavrador de
nenhumas pretensões, modesto, e que não tira o lugar a ninguém pelo
pouco que na sociedade quer ocupar, nele personalizaram o Evangelho da
Ordem tão aborrecido, vestiram-no com a púrpura do escárnio,
coroaram-no dos espinhos da calunia, empunharam-lhe o ceptro de cana
da irrisão, expuseram-no em uma varanda de ignominia, e bradaram ás
turbas concitadas: «Ecce homo!» Eis aí está quem vos quer
vender aos estrangeiros!
A
afronta não recaiu sobre o afrontado, toda irá para as faces do que
nesta hedionda e sacrílega farsa se atreveu a ser Pilatos!. . . lave
embora as mãos em quanta agua tem o mar.
Não
tinham esse propósito, – não asseveravam tais coisas, – era um
modo de argumentar, uma suposição oratória... Assim se evadem
depois a uma responsabilidade moral que era mais corajoso ao menos ter
a desfaçatez de arrostar.
Sabem
que é falso o que dizem; para que o dizem? Suspeitam-no? Pois com
meras suspeitas se acusa em matéria tão grave? - E suspeitam-no
como, com que fundamento? Apontai um único indício, o mais leve.
Temos saudades do despotismo, dizeis. Nós! saudades do despotismo
nós! Reparastes bem nestas caras? Vistes as vossas ao espelho da
consciência, antes de proferir tal?
Para
tais acusações, por tais acusadores, o desprezo é a única
resposta. Julgue Portugal entre nós, julgue, sem mais alegação,
entre os autores e os réus, que bem nos conhece a todos.
Que
haja quem tenha saudades do despotismo nesta terra! Não se receia,
não se crê senão dos que já foram validos e fautores do
despotismo. Aonde esses estão, não sei. - Sei que não estão aqui
no centro.
Ah!
que se tais saudades nós tivéssemos, bem fácil nos era fartá-las,
e pronto. Ah! que se tal desejássemos, não estaríamos aqui há
quatro anos combatendo a anarquia todos os dias; bradaríamos também
com os desordeiros, ajudá-los-íamos em suas loucuras,
excitá-los-íamos em seus desvarios, porque no fim deles, nós
sabemos decerto, nós infalivelmente contámos que está a tirania
E
com tudo, liberais, grandes, generosos, portugueses verdadeiros, eles!
Eles sós; não se passa alvará a mais ninguém A justiça politica,
o espírito essencialmente anti-exclusivo, anti-faccioso da nossa
doutrina, nos fez proclamar a necessidade de restituir aos cargos
públicos os que, por mera diferença de opiniões constitucionais, os
tinham perdido - assim como nos fez desejar ver sair da urna os nomes
honestos e distintos de todos os partidos. Eram verdadeiros os nossos
desejos, eram sinceras as nossas proclamações? Aí está o acto Real
de 4 de Abril aconselhado por um ministério Ordeiro; aí estão as
listas Ordeiras da passada eleição em que aparecem confundidos os
nomes da direita e da esquerda. Aí está finalmente a lei proposta
pelo centro na última sessão, só por ela sustentada e por alguns
poucos generosos ânimos da esquerda da Câmara! Aí estão finalmente
os actos do ministério Ordeiro, as suas nomeações, as suas
escolhas.
Os
grandes crimes desse ministério eram não ser exclusivo; e todavia os
exclusivos clamavam para a direita: «Uni-vos a nós, homens da Carta,
ajudai-nos a esmagar este centro presunçoso: nós é que somos gente
liberal e generosa: tanto que até tínhamos tenção de enviar uma
mensagem ao Trono para serdes amnistiados.»
Não
serão os Ordeiros, não podem ser eles de certo, os que se opunham a
tão fraternal união. Especialmente eu aqui posso dar testemunhas de
quanto me esforcei o ano passado por que se organizasse um ministério
de fusão, por que a direita e a esquerda conviessem em princípios
comuns de governação, para que assim acabasse esta guerra sem nome,
sem fim, sem glória, que é a nossa desgraça e a nossa vergonha.
Oh!
porque não aceitaram o convite! Ainda é tempo; juntem-se para
esmagar o centro. Por esse modo, a troco dessa reconciliação, o
centro folgará de ser aniquilado. Perdoávamos-lhes a morte se fossem
capazes de no-la dar assim. Não era isso melhor – e mais fácil do
que estar a levantar essas calúnias que nos dão vida, porque todos
as conhecem por tais?
Para
que é pintar estes Ordeiros, tão poucos e tão fracos, urdindo
conspirações gigantescas para terríveis reacções? Já armando
forcas, já afiando cutelos! - Será para ter o gosto de nos darem
aquele caritativo conselho do outro dia: «Olhai que haveis de ser
vítima deles!»...
O orador foi de novo interrompido pelo Sr. José
Estêvão, que disse: «Declarei
que lhes havíamos de perdoar.»
- O orador continuou:
Guardem
o seu perdão, que lho rejeitamos; não queremos amnistia: nesse
juízo nem alegar queremos, não lhe reconhecemos competência.
Queremos
ser julgados pelo merecimento dos autos e no tribunal da
Opinião nacional. Subam os feitos da nossa vida, dos nossos escritos,
das nossas falas. Mostre-se um facto, um dito, um gesto que indique o
pensamento de querermos apelar para esses meios bárbaros de decidir
questões politicas.
Os
professores do direito público da guilhotina, os que querem ilustrar
a nação à luz das lanternas, os publicistas canibais, os
jornalistas hotentotes... vejam aonde os acham... no centro bem sabem
que não.
Quanto
a mim porém, a mim pessoalmente, nenhuma destas calúnias me ofendeu.
Calejei há muito a paciência no espicaçar dessas agulhas
ferrugentas: desprezo os que se aviltam a negociar nesse tráfico
negro, que mercadeja de reputações tão desalmadamente como os liberalíssimos
negociantes de escravos comerceiam dos corpos e almas de seus
semelhantes. Piratas ambos que a civilização vai castigando, e no
bando de cujo império os veremos postos em fim, desaforados e
proscritos. Por mim, me não importa o seu
Coaxar
de rãs em lodaçal imundo.
Os
indivíduos morrem; depois da morte vem a justiça, e começa a
imortalidade das famas honradas. Eu não sou materialista religioso
nem político, espero salvar a minha alma em Jesus Cristo, e o meu
crédito na lembrança dos Portugueses: nessa esperança certa de
ressurreição adormeço tranquilo ao som dos uivos infernais com que
presumiam fazer-me desesperar nesta hora que cuidaram de morte.
Mas
não é assim das crenças e opiniões políticas; essas não morrem,
essas precisam desagravadas em vida dos que a professam, e por isso as
vim hoje defender, e aos meus irmãos em doutrina, dos traiçoeiros
ataques de seus inimigos. Por mim, ladrem todas as três gargantas do
cão infernal, que nem me importa açaimá-lo de força, nem uma sopa
lhe hei-de deitar para lhe calar um latido.
Como
cidadão nunca renunciei um direito, nem que me custasse a fazenda, a
vida, a pátria: tenho-o provado nos cárceres, no exílio, na
miséria...
Como
súbdito nunca faltei a uma obrigação: e não menos duramente
asselei a minha lealdade...
Como
português, nem um pensamento leve, momentâneo, – chegou a
cruzar-me ainda no cérebro, de que não possa vangloriar-me à face
do mundo...
Como
funcionário público, quis minha boa estrela que ainda não estivesse
em lugar a que pudessem chegar nem as suspeitas da inveja...
Fraco
homem de letras sou, não presumo delas; mas nunca prostitui a minha
prosa numa mentira, os meus versos numa lisonja... Falem esses
opúsculos que a Nação portuguesa ainda tem a indulgência de ler.
Fraco
soldado fui, o último, o derradeiro dessa falange em que tantos
morreram para nos imortalizar a todos. Mas nem fiquei (*) nos bailes
de Paris ou nos pasmatórios de Londres, em quanto os meus
compatriotas vinham encerrar-se nos débeis muros do Porto; nem a
minha mão, apesar de imbele e doente, recusou pegar na espingarda de
soldado, para ficar nas reservas de França e de Inglaterra, manejando
a pena censória que tudo achava mau quanto se fazia pelos que
expunham a sua vida por eles. Cobri-me do vestido grosseiro, nutri-me
do pão grosseiro do soldado raso, nunca tive outra paga ou outra
etapa, fiz como os outros sem ser valentão; e a débil pegada que o
meu obscuro pé imprimiu nas praias do Mindelo, há-de ficar gravada
na historia, como a dos bravos cujos heróicos feitos rodeiam de uma
aureola de glória os fracos serviços de seus honrados companheiros
que, para o comum empenho, não deram pouco no que deram porque era
quanto tinham. - Mas aqueles podem pleitear serviços connosco, e não
o fazem! Quem são esses que vêem a juízo com as suas preferências?
Agradeçam-me que lho não diga, que lhes não pergunte aonde
estavam, que lhes não prove um vergonhoso álibi que de vis
acusadores os faça réus mais que infames!
E
todavia, Senhores, não é tanta minha professada abnegação que me
não doesse, e muito; quando até nas afeições privadas, nas
simpatias do coração me quiseram ofender, porque inocentemente citei
o nome de um meu ilustre amigo - bem como pudera citar muitos outros
nacionais e estrangeiros -, para provar que nem era inconstitucional,
nem incurial que entrasse em nova administração um membro de outra
que as votações parlamentares tivessem obrigado a deitar os
negócios.
Acertaram-me
com o lado vulnerável, confesso; porque em toda a minha vida pública
e privada – digo-o alto e altivo – nunca traí um amigo, nunca
desacatei um amigo, nunca me esqueci de um favor, de um cumprimento,
de uma atenção leve e de mera civilidade que uma vez me fizessem.
Posso discordar em opiniões dos meus amigos; quero essa liberdade,
não a dou por coisa alguma; alterar os meus sentimentos, falar, obrar
contra eles, nunca. Têm-no feito a mim, não o retribui, não o
retribuirei jamais.
Pois
doeu-me a insinuação maldosa e má. E mais bem sei que aquele meu
amigo velho de muitos anos, está bem certo de quem o deseja honrar, e
de quem tantas vezes procurou desonrá-lo - de quem neste mesmo lugar,
no seio da representação nacional lhe fez atrocíssimas acusações,
de quem o defendeu delas. De qual seja a gratidão das facções
nenhum homem ainda levou mais completo desengano neste mundo - quando
nas ruas de Lisboa a insígnia brilhante que em seu peito testemunha
dos serviços feitos à pátria, da gratidão do Trono e da
Nação - apenas pôde salvá-lo de receber no mesmo peito a nova
condecoração que lhe iam entalhar . . .
Mas
para que é falar tão solene e taro deveras? Perdoe-me a Câmara pelo
tempo que perdi em responder sério a meras ironias de gracejo,
picantes apenas pelo sal ático que lhes deu sabor tão fino. Áticos
motejos certamente, galantes em sua própria mordacidade, por mais que
diga essa gente de ruim gosto e paladar depravado, que nem a doida
elegância do estilo de Alcibíades lhe quer achar, nem sequer a
crapulosa mas poética felicidade do género aristofanico!
Valha-me
Deus! Pois não o declarou, desde o princípio do seu discurso, o
nosso principal acusador? E eu que só agora reparo nisso! Não
declarou ele logo que todos os pecados dos Ordeiros tinham sido
cometidos nos deliciosos sonhos do porto Pireu, onde como doidos nos
achou a imaginar venturas, poder e mando? E sobrou-lhe o juízo, a
ele, chegou-lhe a caridade para nos curar.
É
verdade, confessamo-lo estávamos sim no porto Pireu quando vendo
entrar certas caravelas suspeitas, apesar da bandeira Constitucional
– monárquica com que navegavam, não conhecemos, pela mastreação
e feitio do casco, as terras donde vinham; e só vimos, ao
descarregar, que era desordem, anarquia e ambição o que lhe pejava o
cavername. - Descemos curados do porto Pireu, e sem querer mal ao
médico.
Mas
não fomos nós os únicos que estivemos no porto Pireu. Lá estavam
sem dúvida os que vendo entrar esses bojudos galeões carregados de
urnas e de votos, de actas e de escrutínios, calculando mal a aura
popular que lhes enfunava as velas, imaginaram que toda aquela carga
era sua, correram à alfandega, fizeram os gastos do despacho, e só
conheceram a pequena parte que tinham na sociedade quando viram chegar
os donos a tomar posse da maior porção da carga.
No
porto Pireu estavam os que supunham que nenhum poder era possível
senão o seu nesta terra; e que a Nação se havia de levantar em
massa virtuosa, cada vez que o Chefe do Estado ousasse quebrar o
que, em sua modéstia, como privilegio exclusivo se arrogavam,
chamando fosse quem fosse aos conselhos da Coroa, sem ordem ou, pelo
menos, sem consentimento de suas altas potências.
No
porto Pireu estavam, mas com má e perigosa doidice, os que não
duvidaram transtornar a ordem pública, fazer correr o sangue pelas
ruas para que não entrasse no ministério um homem fortemente
suspeito de Ordeiro a quem declaravam inimigo do Povo e assassino da
liberdade - e que daí a pouco chamaram inimigos do Povo e assassinos
da liberdade aos que tiveram a menor dúvida sobre a conveniência
desse mesmo ministério.
No
porto Pireu estavam os que, sem virtudes... - ou com elas, de toda a
parte importavam calúnias e injúrias que vendiam a retalho;
mercadejando da reputação dos homens de bem; e que, na momentânea
crença que suas falsidades encontravam-se no vulgo, imaginavam ter
estabelecido perpétua fé que para sempre os fizesse odiosos ao Povo,
e só para si ficasse a boa opinião
e crédito de honrados exclusivos.
No
porto Pireu estavam os que sem serviços... ou com eles imaginaram
poder ofuscar os de todos os que não fossem de sua parcialidade, e
condenar a perpétuo ostracismo quantos fizessem sombra a suas
pretensões vaidosas.
O
Povo não caiu no erro; desenganou-os: dele se queixem, não dos
Ordeiros que os avisaram sempre, e cujos remédios higiénicos, se a
tempo os tomassem, lhes teriam prevenido a fatal moléstia de que
adoeceram, com que tanto mal fizeram, que tão dolorosa cura precisa,
No
porto Pireu estavam os que sem talentos... ou com eles, declararam
ignorantes a quantos se não matricularam em suas palestras,
imaginando que o Povo havia de estar pela sentença categórica de sua
infalibilidade cientifica
O
Povo não os acreditou por suas palavras, quis antes julgar pelas
obras do que pelas criticas, e conheceu onde estava o saber e onde a
ignorância. Queixem-se do Povo.
Estavam
no porto Pireu os que no século décimo nono, contando com a suposta
ignorância e verdadeira inexperiência da nação portuguesa,
mandaram a França vasculhar as tribunas da Constituinte, da Convenção
e dos Jacobinos, e carregaram grossos baixeis com os farrapos
desses discursos tribunícios que hoje somente não são ridículos
pela recordação das atrocidades que causaram, e que apenas trazem
já o eco morto de palavras ocas e vãs, que os povos instruídos e
escarmentados conhecem e escarnecera. Viram entrar esses baixéis,
imaginaram-se negociantes de grosso tracto que iam realizar
incalculáveis ganhos; e somente se desenganaram quando, exposta nas
lojas a mercancia tão gabada, o povo não quis comprar os farrapos.
Meia dúzia de logrados que fizeram a experiência, breve se
arrependeram da fazenda avariada que tinham cabido em comprar.
No
porto Pireu tinham estado já, sonhando engrandecimento e fortuna, os
que na estatua de ferro da usurpação não viram os pés de barro que
a sustinham, e, imaginando que eram seus exclusivamente estes reinos,
contra os constitucionais vociferaram e bradaram, até que, derrubada
a estatua, tiveram de descer daquele porto Pireu: mas sem vergonha o
fizeram, porque, logo noutro ídolo igualmente falso, o da anarquia,
puseram as suas esperanças, e subindo de novo ao porto Pireu,
cuidaram que, por gritar mais que nós, por bradar mais alto que
todos, a Nação esqueceria os serviços de uns, e o procedimento de
outros, e os acreditaria mais liberais que ninguém.
No
porto Pireu estavam os que, cobrindo as casacas bordadas de barões
feudais com a sotana de tribuno, escondendo debaixo dela as
decorações aristocráticas, iam fraternizar para os clubes
republicanos a certas horas do dia; e noutras, despida a sotana, iam
ás escondidas introduzir-se nos salões Reais, forrar as paredes do
Paço, e desforrar-se, em orgulho e vaidade, das horas da compressão
em que tinham sido obrigados a afectar lhanesa e humildade. Como nos
tempos de glória da velha Rua dos Condes e do Salitre,
quando o rei encoberto desabotoava o casacão, e proferindo a solene
palavra Reconheces-me? cabia tudo aos pés do rei de teatro, e
o teatro com palmas e bravos; assim sucederá a estes quando o povo,
em mais vasta plateia, abrindo-lhes a sotana de tribunos, vir por
baixo as fardas bordadas em todas as costuras, o orgulho de fidalgos
novos, a presunção da gralha com as penhas do pavão. Também o
teatro há-de vir então abaixo, não com palmas, mas com assobios e
apupos!
No
porto Pireu estavam os que imaginaram que este honrado Povo português
se tinha esquecido de que pela Legitimidade lhe viera a Liberdade,
que, na fidelidade dos seus Reis tinha a melhor garantia dela, e a
única de sua independência; que na religião de Jesus Cristo – a
só crença que professa a igualdade do homem – tinha o mais seguro
amparo e fortaleza de seus direitos. Que assentaram que bastava dizer
insultos ao Trono para que o Trono ficasse impopular; que bastava
mofar da religião, para que o Povo abjurasse a religião de seus
pais!... O Povo zombou deles! O Povo curou-os de sua loucura,
desenganando-os, amando a religião, respeitando o Trono e querendo a
liberdade com ambos. O Povo foi o seu médico, queixem-se dele se
podem, mas as receitas aí estão - e as visitas do médico, ao menos
não as pagaram.
(*)
Estas palavras de amarga censura foram repetidas pelo orador
unicamente porque o Sr. José Estêvão, de cujo discurso as tomou, as
lançara de acusação aos deputados do centro.
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