Almeida Garrett

Almeida Garrett

 

DISCURSO DE ALMEIDA GARRETT

 

Discurso proferido por Almeida Garrett em 8 de Fevereiro de 1840, na Câmara dos Deputados, na discussão da "Resposta ao Discurso da Coroa", em resposta a José Estêvão, conhecido como o Discurso do Porto Pireu, alusão a uma passagem da intervenção do orador anterior.

O governo que estava em funções no princípio de 1840, tinha sido nomeado em  26 de Novembro de 1839, era dirigido pelo general José Lúcio Travassos Valdez, 1.º barão e 1.º conde de Bonfim, setembrista moderado, que tinha derrotado em Julho de 1837 a Revolta dos Marechais, e incluía no seu elenco Rodrigo da Fonseca Magalhães e António Bernardo da Costa Cabral.

Este período, que vai de 1839 até 1842, ano em que a Carta foi restaurada, por Costa Cabral, ficou conhecido pela Ordem, que foi uma tentativa bastante precária dos políticos centristas tentarem conter os radicais, no interior das instituições criadas pela Constituição de 1838. 

Os radicais eram o grupo político que reclamava uma Constituição mais democrática, e que por isso defendiam (1) o alargamento do corpo eleitoral e a introdução de eleições directas; (2) a redução dos poderes do estado não electivos; (3) a limitação das prerrogativas reais, e (4) a clara subordinação do executivo ao Parlamento. A Constituição de 1838, não tinha dado resposta às suas preocupações, pois mantinha substancialmente da mesma maneira os poderes definidos pela Carta Constitucional.

Almeida Garret, deputado pela Ilha Terceira, e membro do partido setembrista, pretende mostrar aos  radicais a necessidade do censo eleitoral, assim como da cooperação com a nova ordem vigente.

 

 

A discussão vai larga e degenerada, já principia a cansar a Câmara, e há muito que enfastiou a Nação. E contudo, eu espero dela um grande fruto, uma utilidade imensa, inapreciável, com que não só a Câmara mas toda a Nação há-de ganhar muito: - a prova indirecta, o testemunho irrefragável, a convicção unânime de que não era este o modo, de que não era certamente este o estilo de discutir a resposta a um discurso da Coroa.

A discussão vai degenerada, digo; porque solene e gravemente começada sobre o primeiro parágrafo do projecto, e parecendo querer estender-se à amplíssima generalidade dele, afectando entrar nesse vasto, importante e imenso assunto, toda desandou, em viciosíssimo circulo, à roda de uma palavra; para se contrair, por fim, no mais pequeno dos objectos, no mais insignificante, no mais baixo; o das acusações e recriminações pessoais, o das injúrias, dos convícios, dos apodos; - palavras que deveriam riscar-se do dicionário de todas as línguas que têm a honra de ser faladas num parlamento.

Nada tamanho e tão augusto como este primeiro acto de comunhão em sentimentos e vontade, que anualmente se celebra entre o Povo e o Soberano! Esta primeira e solene consultação em que o Chefe da Nação por sua boca, a Nação pela dos seus representantes, mutuamente se vêm saudar ao Foro da Liberdade, e, postos em comum as suas observações, os seus pensamentos, os seus projectos, os seus meios, pausados acordam no mais seguro e eficaz para se promover a felicidade da república !

Nada tamanho, Senhores, nada tão sublime! - E nada tão pequeno, nada tão mesquinho, nada tão miserável, tão indigno desta Câmara como a maneira por que o estamos celebrando!

Ainda mal! é verdade: é triste verdade que, junto com poucos argumentos, os ditérios, sós, os vitupérios sós parecem querer usurpar o lugar de todas as reflexões, substituir-se a todas as razões, darem-se por motivos suficientes de tudo, e negar-se tudo, provar-se tudo com eles! - A que triste campo nos trazem a pelejar

E todavia, Senhores, eu venho a ele ... venho, forçado, violentado, a despeito meu: por que já não basta o silêncio do desprezo quando se vê a vaidade presunçosa interpretá-lo por confissão ou fraqueza. Venho a esse campo para que me emprazaram obrigado, – não a lutar com as mesmas armas (tenho vergonha, tenho nojo delas!) mas a repelir honesta, leal e cortesmente, mas fortemente, os golpes atraiçoados com que quiseram ferir aos meus amigos do centro no que eles e eu temos mais caro e precioso, a nossa lealdade, a nossa constância política, a invariabilidade dos nossos princípios, a nossa inalterável e inabalável adesão à liberdade constitucional, à monarquia representativa, pela qual uns a fazenda, outros a saúde temos sacrificado, não poucos exposto a vida muitas vezes.

É verdade: todas essas galés de injúrias, navegadas de toda a parte do mundo, vieram descarregar-se a um imaginário porto Pireu, onde, sonhando os agradáveis sonhos da loucura ambiciosa e da cobiça frenética, nos supuseram a estes poucos homens do centro, que, por poucos, por moderados, por guardadores de todas as formas, deviam ter merecido mais alguma daquela civilidade e consideração com que a todos acatam, renunciando tantas vezes até a despicar-se das ofensas, até a desafrontar-se dos agravos com que a todo o instante são provocados.

Seja-me testemunha a câmara, receba-me a Nação o protesto de coacção e violência com que hoje venho falar, forçado pelos gratuitos caluniadores deste nosso centro a que tenho a honra de pertencer, a que pertenci sempre, a que sempre hei-de pertencer, e do qual me não arredarão, nem para um extremo nem para outro, ou injúrias impotentes ou afagos hipócritas : - que ambas as coisas tem comigo e com os meus amigos o mesmo poder, a mesma força.

Foi princípio desta questão uma palavra que tantas repugnâncias excita, e com razão: a palavra é eminentemente ordeira. Nós a declaramos, tal, nós a professamos e confessamos. A palavra cooperar. Palavra ordeira, digo, palavra do centro, palavra altamente parlamentar e liberal, tão equidistante do servilismo faccioso que em tudo consente e em todos confia, como do acinte faccioso e desordeiro que a todos suspeita e tudo impugna sem exame. Facciosos, sim; que tão faccioso é o vil que se sujeita a tudo como a anarquista que nada quer. No meio destes dois extremos estão os que cooperam; nesse meio estamos nós e queremos estar; porque nós queremos cooperar na causa da pátria, e não queremos, nem para nós nem para ninguém, o privilégio absurdo de seus operários exclusivos. É eminentemente ordeira esta palavra cooperar; nela todo está simbolizado o sistema da ordem, a doutrina, os princípios dos que muito se honram e comprazem nesse nome de Ordeiros com que foram saudados por escárnio! Por mofa no-lo deram; nós recebemo-lo como título insigne e nos gloriamos nele.

Cooperar é a nossa palavra sagrada; nós a defendemos e sustentamos; é o Verbo da Doutrina e da Ordem que encarnou entre nós e que habitou connosco.

Grande é com efeito o poder dessas palavras que em si resumem todo um sistema, um universo de ideias e pensamentos, o dogma de toda uma crença! Tal é a Ordem. Mágico chamaram a esse poder; santo lhe chamo eu, divino; omnipotente.

Do nada saiu este mundo em que vivemos, da imensidão da Sabedoria eterna a ordem que o formou e o rege. O Fiat da Omnipotência foi a ordem que entrou no caos, que dividiu os elementos, que separou a luz das trevas, o dia da noite, e compôs enfim este belo universo, tão belo na ordem regular para que nos criou a Providencia, como era horroroso e feio antes dessa ordem, como será espantoso e medonho quando a ordem se quebrar, quando retirada a mão de Sabedoria moderadora, voltar a anarquia dos elementos para destruir o mundo.

Assim a omnipotência da Liberdade criou o grandioso universo do sistema representativo, e o seu Fiat foi Ordem. Ordem para todos os elementos que relutavam no cabos da decrépita sociedade que acabou, no caos da nova sociedade que ainda se não organizou. É tremenda, é sagrada esta palavra Ordem. Razão tem para se agitar o caos, para se intumescerem as trevas, para se exacerbar a discórdia terrível dos elementos; porque, à palavra Ordem, cada um vai ocupar o seu lugar, só o seu lugar natural, separado mas com nexo, unido mas sem confusão, com vida normal e regrada, mas sem essa existência febricitante em que tanto se comprazem as organizações imperfeitas, porque só nelas podem ter um arremedo de vida.

Ordem, Senhores, ordem, repito, é o Fiat da Liberdade: a luz vai separar-se das trevas, o mal do bem, a monarquia do despotismo, a igualdade civil da demagogia, a religião do fanatismo; e a Liberdade criadora há-de olhar para a sua obra, e ver que ela está boa.

E não há-de ser grande o poder da ordem? Não há-de ele ser imenso em Portugal, entre este povo que só nela espera e confia, quanto as facções esbravejam e blasfemam só de ouvi-la? Se o povo não tem outras esperanças de vida, se as facções bem sabem que não morrem doutra morte! Assim, a cada triunfo da ordem, assim a cada aplauso da Nação, fervem as maldições dos moribundos impenitentes que estrugem os ares para ver se ainda, no ultimo arranco, podem confundir a opinião pública e desoppressar o peito do peso imenso com que ela lho carrega.

Não que, em o Povo conhecendo bem a liberdade, em o Povo ouvindo e conhecendo a ordem, há-de ver, há-de conhecer que uma é impossível sem a outra... e as facções hão-de abdicar, e a Nação Nade reinar pelos seus Reis, e fazer leis pela sua Razão. - Que calamidade! Que dia de Juízo!

Depois da destruição de uma grande época, sobre as ruínas de uma monarquia velha, decrépita, incompatível, impossível, criou-se a monarquia nova, a forma governamental deste século em que vivemos, graças a Deus! - o ultimatum da civilização moderna.

Mas a antiga civilização, que se retira, ainda tinha um poderoso exército; a sua retaguarda de veteranos cansados e velhos, mas não covardes, ainda se encontra com a Vanguarda da nossa. Naqueles só há já a reminiscência da antiga disciplina, estes são guerrilhas sem ela; a estrada está coberta dos abatizes do despotismo, das incompletas e improvisadas fabricações da Liberdade. Como não nade ser perpétua, ignóbil, desleal e desnaturada a guerra? Quem fará possível e decisiva a vitória? Quem (e isso mais importa ainda), quem fará possível a paz depois da vitoria? - Quem? A ordem. A ordem, que a essas guerrilhas dispersas e indisciplinadas, fáceis de ser derrotadas por quaisquer seis granadeiros velhos que sabem obedecer à voz do comando, as enfileira em linhas regulares, as forma em quadrados impenetráveis em cujos ouriços de baionetas vêem espetar-se e despedaçar-se cavalos e cavaleiros; que dessas turbas, fracas de seu próprio valor individual, faz aqueles exércitos fortes que na guerra da independência defenderam a nossa e a da Europa, que em nossas ultimas lides de liberdade nos reconquistaram quanta temos: - aqueles exércitos que, se o Imperador D. Pedro, se os verdadeiros liberais não tivessem ouvido, não tivessem obedecido à palavra ordem, nunca se teriam formado, nunca teriam vencido; e Portugal seria ainda hoje um caos em que a civilização velha lutaria com a nova; e os amigos da liberdade dispersos, desunidos, numa mão a espada para lutar com o inimigo comum noutra o punhal das discórdias civis para se dilacerarem uns aos outros, fracos na sua força, inermes no meio das armas, seriam tristemente vencidos, aniquilados pelo despotismo, esse cadáver da ordem, esse esqueleto que tem as suas proporções, não as suas formas ... O esqueleto, disse? Não: a sombra, o fantasma da ordem: porque morta, consumida deve ela de estar onde pode surgir o despotismo.

Sabe pois já o Povo Português todo o valor da ordem; sabe que a ela deve os seus triunfos, a ela o prémio de suas fadigas, a coroa de todas as suas vitórias. Ouvi-la é salvar-se, segui-la é vencer. E por isso fazem tanto alarido as facções para que ele a não oiça, tanto o desatinam para que ele a não siga. Mas o Povo não há-de ser enganado; confio certo que o não há-de ser, e por uma razão muito simples; por que já o tem sido muita vez, por que já sabe, com amarga experiência, em que misérias, em que desgraças vai sepultar-se, em que abismos se tem precipitado sempre quando, transviado do caminho da ordem, se deixa fascinar de falsos condutores, e segue as despenhadas veredas das facções.

E não confundamos facções com partidos; destes não há senão dois em Portugal que mereçam com verdade esse nome. Um é o da monarquia velha, outro o da monarquia nova. Tudo o mais são divisões imaginárias e de capricho, sem limites naturais nem princípios conhecidos. Aqueles dois partidos respeito eu igualmente, a ambos tenho por sinceros e convencidos do que professam, em ambos há lealdade e virtudes, em ambos conheço homens de bem, em ambos pode haver iludidos, mas há de certo muita gente honrada e honesta. A um destes dois partidos pertenci sempre desde que abri os olhos da razão; ao outro combati sempre quase antes que a tivesse, quase por instinto do coração mais precoce que o raciocinar do entendimento.

Mas, por de traz destes doas partidos sinceros é consistentes, há duas facções mentirosas, ininteligíveis, confusas, embusteiras e caluniadoras, descomposto agregado de verdadeiros duendes políticos, dos sofismadores de todos os princípios, de todos esses fidalgotes de aldeia que, por qualquer titulo, até pelo de bastardia, se querem aparentar com uma das duas nobres famílias de partidos que já descrevi -muitos até com ambas. 0 empenho destas duas facções, ás vezes opostas, ás vezes unidas, é iludir, enganar, confundir, enredar todas as questões que ou entre os dois partidos se levantam, ou se suscitam no seio mesmo de cada um deles, fazendo tal alarido de desordem que as questões se não entendam, que os pontos de dúvida se não esclareçam, e que, em vez de se decidirem com o raciocínio os objectos de discórdia, a discórdia desça ás ruas, arme os braços, e atropele, em sanguinosas lutas civis, o que nem se conhece a miado se foi ou devia ser objecto de questão. São como esses fantasmas que projecta na sombra o clarão enganador da lanterna magica; nenhuma realidade têem, mas imitam espantosamente a verdade que desfiguram.

Uma destas facções manobra por traz do partido da monarquia antiga; esta é a facção dos hipócritas, dos tartufos que aos leais Portugueses da antiga crença pregam que a Liberdade é incompatível com a Monarquia: que a Religião e a Igreja forçosamente hão de vir a ser destruídas em um país que se reja por instituições livres que todos os Constitucionais são inimigos do Trono e do Altar, que a Liberdade é uma blasfémia, e a igualdade civil a anarquia. Este falso credo finge professar o leigo cobiçoso e o sacerdote imoral, prostrados de dia diante do Altar do Deus de verdade, estirados de noite nas palestras de obscenas crápulas e devassas orgias.

E estes, invocando o Nome de Jesus Cristo, do Filho do Homem que primeiro proclamou a verdadeira liberdade entre os homens; estes, em nome da primeira, da única Religião que fez um dogma da igualdade da espécie humana; estes que não entendem nem querem (não a querem, digo eu!) a monarquia senão para escrava e ministra de suas oligarquias, estes cegam e desvairam o velho partido Realista; estes o fizeram instrumento de crimes e o desonraram; e mancharam tanto nome ilustre envileceram tanta nobreza, e deturparam tanta página gloriosa de nossa história; e, especulando sobre os mais nobres sentimentos do antigo coração português, com a Legitimidade conseguiram a usurpação, pela lealdade chegaram à traição, em nome da Realeza instituíram um verdadeiro tribunato, e com seu falso e mentiroso Cristianismo iam quase reduzindo a Igreja Portuguesa a uma bestial congregação de ateus, de indiferentistas e de hipócritas.

Esses bem clamam contra a Ordem que os desmascara, bem querem ligar-se com os nossos anarquistas que os ajudam a mentir!

Nem de caracteres menos falsos ou menos ignóbeis é formada a outra facção encoberta de traz do partido da Monarquia nova, do nosso partido literal, constitucional, que do mesmo modo pretende iludir e confundir. Também esta, à semelhança daquela outra, apenas em suas trevas refracta a luz alterada de nossos princípios em que não crê, cujos raios directos não pode suportar, e precisa quebrá-los assim para que a não patenteiem vã, falsa e nula de todo bem, como é.

Estes (não os constitucionais de nenhuma cor, do nenhum matiz de cor) estes são os que tumultuam o povo com suas pregações anárquicas de que a Realeza é uma instituição absurda e incompatível com a liberdade, de que a Religião de Cristo favorece o despotismo, de que as classes do Estado devem estar em guerra umas com as outras, de que o freio das leis é insuportável e tirânico, de que as distinções civis se opõem à igualdade civil, de que a autoridade pública é necessariamente opressora e inimiga do Povo, de que para gozar da liberdade é preciso estar em contínuo movimento, não obedecer senão à própria vontade, usurpar todos os direitos, negar as obrigações todas.

E como não hão-de estes tais, como não hão-de suas fascinadas vítimas proclamar inimigos da liberdade quantos falam em ordem ou querem ordem?

Destas facções desprezíveis e malévolas bem sei que não há aqui representantes; sinceramente o digo que não conheço dentro deste recinto quem aceitasse a missão infame e odiosa de representar tão abomináveis facções, de ser procurador de pretensões tão absurdas quanto perniciosas à mesma causa do Povo que todos jurámos defender. Mas receio dos iludidos, dos enganados, dos que, nas melhores e mais rectas intenções, podem ser instrumento de paixões e cobiças alheias que, se as chegarem a conhecer, tanto hão-de repugnar à sua cabeça e amargar a seu coração.

Não, Senhores, não: aqui só um dos dois partidos verdadeiros está representado; o da monarquia nova constitucional, a que todos pertencemos sem distinção, e apesar das leves diferenças de forma que cada um possa querer na aplicação de princípios que a todos nos são comuns.

Não tem órgãos aqui o outro partido; não reconheceu ainda esta arena que a todos os lutadores sinceros está patente, este campo de honra que a todo o justador leal está aberto, cujos mantenedores são a Justiça e a Tolerância, único juiz a Opinião pública. Que se desenganem, que venham, que apareçam com os seus montantes de Ourique, com suas espadas de Aljubarrota, com seus arcabuzes de Montes-Claros! Venham. São Quinas Portuguesas verdadeiras as que tremulam nesse pendão branco, como as que reluzem em nosso estandarte branco-azul. Venham, e lavemos juntos, nas lágrimas do arrependimento, as nódoas de sangue com que as facções nos fizeram manchar uma e outra bandeira. As criminosas são elas, os remorsos sejam para elas; os partidos são inocentes: consciência livre para ambos, paz entre todos, que são Portugueses e irmãos.

As facções não têm aqui órgão; todos somos de um partido. Mas, quando não é para se lamentar profundamente que a tal ponto tenham as facções confundido as coisas mais simples, sofismado os princípios mais claros, que até aqui cheguem ecos de suas desvairadas e irracionais pretensões transmitidos por lábios, aliás honestos, que eu suponho verdadeiros mas iludidos mas que repetem as fátuas aberrações de um cérebro confundido, enredado no labirinto que à volta de toda a gente de bem formam essas facções perversas para a desorientar e perder!

Iludidos!.. . Sim, sois iludidos vós todos os que, desejando o bem, fazeis tanto Dia]; vós que, abdicando a razão que Deus vos deu para guia de vossas acções, – o entendimento, a vontade, as palavras, as opiniões, tudo sujeitais ao capricho de uma vã, de uma falsa e morredoura popularidade; que cerrais os ouvidos à voz da consciência, quando ela vos brada: É falso! e, conhecendo o erro das turbas, sem coração nem piedade, bradais ás turbas: Têm razão!

Sim, sois iludidos: e quem nestes vinte anos de oscilação não tem sido? Todos o fomos, a todos nos têm enganado as facções; todos, cuidando pregar as nossas doutrinas, temos sido pregadores de falsa lei; todos, cuidando trabalhar em nossa lavoura, todos temos granjeado a fazenda alheia; uns pelo Povo, outros pelo Rei, todos lidando em vão na nossa causa, todos obedecendo, sem o sabermos, aos motores encobertos que nos dirigem, que zombam de nossas fadigas, e se divertem com estes movimentos de manequim em que nós sós nos afadigamos, e eles sós aproveitam. Sic vos non vobis.

Temos, temos todos, mais ou menos, abraçado a nuvem por Juno; todos nos temos enganado com a espécie do bem, todos erramos: porque o não confessaremos todos?

Porque as facções não querem, porque as facções nos aturdem os ouvidos, nos azoinam as cabeças, nos espicaçam o coração, nos alvoroçam o amor-próprio: e excitando em nós quanto tem de ignóbil, de pequeno e de vil a nossa pobre natureza, de seus imundos vapores toldam o fraco lume da Razão divina que em nós está.

É assim, é; porque as facções não querem que se discutam as questões, não querem que nós saibamos o que queremos. Querem-nos, a todos, neste vácuo escuro e de sempiterno horror cm que tudo é desordem e confusão, em que vinguem a si mesmo se percebe, em que uns bradamos contra os outros sem saber o quê nem porque bradamos, e lutando nas trevas, digladiando-nos na escuridão, por fim nos destruamos uns aos outros, raça fadada de Cadmo, - porque só nessa desordem e açougaria pôde caber o momentâneo reinado das facções - só nesse momento em que não há governo possível, de nenhuma forma, de nenhuma cor, de nenhum principio.

Portanto, venha de que lado vier, seja qual. for o principio, a ideia política a que a ordem queira dar consistência, organizando a sociedade, toda a facção contra ela se levanta. Nada há louvável, nada há desculpável em quem uma vez falou em ordem. É a túnica do Centauro que o lambe de chamas, e o devora de angústias. Tenha perdido a mocidade e a saúde sobre os livros, – fica ignorante. Desempenhasse honrada e zelosamente os cargos da republica, - é um peculador, um Verres. Fosse bom pai, bom filho, bom esposo, cidadão útil, cristão temente a Deus. - A um vão-lhe desenterrar os cadáveres dos pais, e com os ossos carcomidos dos seus o apedrejam; a outro, vão-lhe devassar nos pecados da sua gente para lhos lançar à cara como crime e afronta própria. - Perdesse, um a um, na defesa da pátria os membros mutilados; - resuscitar-lhos-hão de escárnio, e o motejarão por seus gloriosos defeitos. Sente-se à direita ou à esquerda, tenha sido sempre leal aos seus amigos políticos, e mais ainda aos seus princípios políticos; não lia fraternidade de opiniões, não lia vínculos de amizade. Falou em ordem? Morra por ela. Não lia epítetos injuriosos, não há alcunhas chocarreiras, não há vitupérios que não mereça: é um monstro, é um traidor, um insignificante, um fidalgote de aldeia que se quer aparentar com as famílias da corte. - Que miséria!

Que miséria na verdade! Quando e como nos quisemos nós aparentar com essas famílias ilustres E quais são elas, e aonde estão elas, essas famílias ilustres?

Vai em quatro anos que os mais moços na vida parlamentar aqui estamos sentados em nosso canto: quando procurámos a vossa aliança política, homens dos extremos? Seria impugnando sempre vossas erradas doutrinas, seria combatendo sempre os vossos argumentos, denunciando sempre à opinião os vossos sofismas? Não nos combatestes vós também sempre? Não ficámos, nós poucos e mal ouvidos, não ficámos nós vencidos sempre pelos vossos votos? Convencidos dos vossos argumentos, nunca. Em toda a discussão de princípios políticos – dos questionáveis se entende – estivemos alguma vez de acordo? Deixastes vós jamais, em todas essas ocasiões, de nos acusar, de nos denunciar como sustentadores das mesmas doutrinas que defendemos hoje, que advogámos, sempre, que sempre vos foram obnóxias? Mas vós prezais-vos de coerentes porque ainda hoje as impugnais; e a nós porque ainda hoje as defendemos também, ousais-nos acusar de versáteis e inconsistentes!

E porquê? Porque hoje votámos com a direita? A vós o pergunto, deputados da esquerda se os nossos princípios achassem impugnadores no lado direito da Câmara, se alguma vez os tem achado, não votaríeis vós, não tendes vós votado com eles?

Pois o mesmo fazemos, o mesmo faremos sempre: a coerência politica é de princípios não de pessoas; esta fé professamos, por este único voto estamos ligados, aos nossos constituintes o prometemos, de nós o espera a Nação a quem o jurámos.

Onde está, no nosso actual procedimento, onde esteve no que sempre fizemos, a prova desse fátuo desejo de nos aparentarmos com vossas ilustres famílias, a quem modestamente destes brasão e timbre, sem audiência de reis de armas - Portugal, que não teria pouco que dizer na matéria? - Nós não; que vos não disputamos a fidalguia, mas só o direito de primogenitura que usurpais fraudulentos; e, com o poeta da Religião e da Liberdade, com esse grande génio que Deus suscitou no meio da França para glória do Cristianismo e para açoite dos tartufos políticos, nós vos perguntamos: «Quando foi que, Esaús da liberdade, nós renunciámos ao nosso quinhão da herança?» Donde vos vem o direito que vos arrogais – não só de primeiros, mas de filhos únicos?

Ilustre família! E donde vos vem a ilustração? Dos martírios da Liberdade? Também nós os padecemos. Da gloria que adquiristes para a Nação? Afias por feitos de armas, não há secção, não há fracçãozinha de partido em Portugal que não tenha parte neles. Mas por letras... Oh! aí nos humilhamos nós diante de todos, até de vós.

Tristíssima e de mau gosto foi essa irónica saudade com que, fingindo que só agora nos separávamos, de nós se despediu um orador da extrema, com quem, ao vê-lo tão saudoso, pareceria que sempre estivemos unidos em sentimentos e doutrinas politicas. Jamais o fomos bem o sabe ele, nem ousará negá-lo, que lhe fora mister renegar todas essas teorias obsoletas que aqui tem defendido sempre, contra nós que lhas condenámos sempre, porque sempre as tivemos e demonstrámos absurdas. Jamais os nossos votos se acordaram com os seus senão nas questões económicas gerais, em que, reassumindo a sua natural razão, muitas vezes a tem o ilustre deputado, e por tal o apoiou o centro. E bem sabe ele que em semelhantes questões se pôde contar com os nossos votos.

Nós não queremos dominar as votações, mas queremos obstar ás votações cerradas de compadrio. Queremos votar com a esquerda ou com a direita segundo tiver razão uma ou outra. Entendemos fazer assim a nossa obrigação de centro, entendemos desempenhar assim uma impopular mas indispensável função parlamentária; estamos certos de seguir assim a opinião nacional que inquestionável, e provadamente – quanto no governo representativo pode provar-se – com seus votos tem confirmado ora o procedimento de uma, ora o de outra das duas secções do partido constitucional.

Nós entendemos assim o voto popular; e se ele nos engana (o que não creio), culpai as vossas leis que lhe regularam a expressão.

E sobre quem ousaria o enfático orador, tão precipitado em liberalizar títulos, sobre quem ousaria ele cuspir o de bastardos? Não sei. Bastardos há de certo na casa da liberdade, bastardos que a desonram espúrios que a desacreditam. Esses ramos degenerados de uma árvore ilustre, esses que a todo o vento de opinião flutuam, hão-de ser de certo os que na factura da Constituição querem um princípio, e cavilham depois a sua execução nas leis orgânicas. Hão-de ser de certo os que hoje acusam de liberticida uma lei, e que amanhã a defendem como paladino de liberdade. Hão-de ser talvez os que serviram a tirania em quanto ela era poderosa, que depois serviram a demagogia quando a julgaram omnipotente, que hoje querem servir ainda – porque para servirem nasceram – e já nem sabem a quem. Buscai-os esses homens não sei aonde; procurai-os não sei onde estão... Mas não os haveis de achar no centro.

Bastardos hão-de ser da casa da liberdade esses Gracos ridículos, esses Publicolas palhaços que ora se enfeitam da coroa cívica nos Comícios, ora das pérolas de barão feudal nos palácios. Procurai-os, não sei onde os achareis. Aqui não: não temos cá barões no centro.

E não hão-de as facções vociferar quando se fala em ordem, ordem que é razão e justiça, ordem que, sobre tudo e mais que tudo, é verdade? - Não, que ele era doce invocar o nome de Jesus Cristo para só lhe tosquiar em vez de lhe apascentar o rebanho, e vir, horas mortas, ao altar comer as oblações da enganada piedade. - E a Ordem pulveriza de cinza o pavimento para mostrar no outro dia ao povo as pegadas dos seus embaladores...

Não que ele era doce invocando o nome do Rei, reinar mais que ele, e governá-lo a ele, aclamar absoluto o seu poder por imediato a Deus, e transferi-lo todo para uma Camarilha usurpadora.

Não, que ele era mais doce ainda, mais suave que tudo, dominar as turbas com a lisonja; dispor da força bruta, que tanto mais serva e escreva é quanto mais cuida mandar; concentrar em si todos os direitos, monopolizar toda a liberdade para si só; - ter as honras de Catão e o poder de César; almoçar no fórum os rábanos do Fabrício, e banquetear-se a noite nos temulentos palácios de Lúculo!

E a emprazadora da ordem e os importunos dos Doutrinários a patentear ao Povo estes mistérios Eleusinos, a abrir diante de seus olhos as austeras, as desenganadoras páginas da história, a mostrar-lhes aí como dos Gracos se fazem Catilinas, e dos Mários ditadores, como o tribuno se converte sempre em áulico, o publícola em palaciano, mal as turbas se fatigam de seu reinado nominal, e o Poder, por sua natural tendência, ou se concentra no feixe consular, ou na vara ditatorial, ou no diadema imperial, ou no simples bastão do protectorado - em qualquer símbolo da Realeza que se destruiu mentindo, que mentindo se restabelece.

E há de se deixar falar a Ordem, e há-de consentir-se que a oiça o Povo! Não: rufem-se-lhe as caixas da anarquia, sumam-se esses brados de verdade como se sumiram os últimos clamores de perdão com que a Real Vítima da França envergonhava do cadafalso os seus algozes.

E para essa França aponta a Ordem a cada instante, e a mostra de exemplo e escarmento ao Povo! E lhe mostra esses declamadores da Constituinte e da Convenção rasgando aos pés de Bonaparte a Declaração dos direitos do homem; ajoelhados diante do Papa na cerimonia cristã da sagração do novo ídolo, com a mesma devoção com que ouviram no altar da pátria a sacrílega missa de um bispo apóstata, com que nas profanadas basílicas, ébrios de vinho e de sangue, entoaram diante da prostituta deusa da Razão seus asquerosos ditirambos ao som da guilhotina reformadora! E o barrete frigio do Sans-cullote é coroa ducal hoje; e os lictores de Robespierre andam agora na tábua, ou boleiam agaloados as seges da casa do primeiro cônsul; e os mais furiosos niveladores da república una e indivisível, disfarçadamente alardeiam, diante do logrado povo de Paris, as fardas bordadas de criados do imperador Napoleão!

Mal do povo Português se não ouvir e entender, ao menos a historia do seu tempo, para aprender nos erros alheios! Mal dele se, em estrada taro conhecida e trilhada, não vir as pegadas de sangue que os outros povos aí deixaram!

Em tudo lho mentem a esta pobre Nação, tudo lhe desfiguram para que ela não entenda. Pois, de que se trata agora? De mudar a constituição, de destruir as leis existentes? Quem tal propôs, quem tal sustentou? 0 que se tem proposto e nós advogamos, é dar comprimento e desenvolvimento à Constituição do Estado, com a reforma das leis orgânicas, não introduzindo leis novas (é falso; não destruindo as antigas (é mais falso ainda); mas procurando emendar aqueles defeitos que a experiência tem mostrado, e a cujo exame sincero só pode proceder-se com ordem e tranquilidade, de nenhum modo entre clamores de praça, entre vaias de açougue.

E, a nós nos dizem que queremos rasgar as leis! Rasgar as leis nós!... Quando o fizemos, quando aprovámos quem o fizera? Para diante da Nação Portuguesa vos emprazamos, que bem sabe se de nós o deve temer ou de quem.

Mas as facções não argumentam nem discutem, porque nem sabem nem podem discutir; só querem, só podem, unicamente sabem praguejar, insultar, caluniar, blasfemar, tomando em vão, os santos nomes da Liberdade, do Povo, do Rei e de Deus! E jurar que os Ordeiros são os inimigos de tudo, que a Ordem é o animal do Apocalipse, que mata, que destrói, que devora. E então levantam um grande clamor desatinado e confuso que ensurdece os ouvidos; e suscitam do abismo uma grande cerração de trevas que obceca os olhos há multidão e que, não lhe deixando ver nada do que é, prepara o entendimento para crer tudo o que não é.

Pois não ouvimos nós aqui um ilustre orador do lado esquerdo da Câmara, sem fazer justiça a seu próprio coração, abdicando o seu raciocínio natural, soltar, em vez de argumentos que podia e sabia fazer, meros sofismas em frases redondas e bem soantes? Nesse género de dizer lhe reconheço inquestionável e superior talento. Verba et praeterea nihil lhe chamou já outro orador que se senta ao meu lado.

Dizem-se aqui, Senhores, proferem-se categoricamente e como axiomas, absurdos tais que até são injuriosos para aqueles cuja causa se defende, cujas opiniões se querem sustentar, cujos actos pretendem desculpar-se. Assim dogmaticamente foi dito que o Poder criado pela Carta tinha sido destruído. -Como, quando, quem destruiu o Poder criado pela Carta? A revolução de Setembro! É falso, é calunioso. Não cometeu esse crime a revolução, teve mais juízo que isso. Se a alguém veio tal desejo; se nesses obscuros sótãos, se nessas escondidas aguas furtadas, onde, pelo testemunho do mesmo orador com quem falo, sabemos que estavam covardemente agachados os anónimos conspiradores, os envergonhados instigadores desse acto que nunca ousaram confessar, nem depois que a tolerância e a adopção nacional, remindo-o da culpa, converteu as suas consequências em legalidades nesses, (o que eu não creio facilmente) houve tão atroz pensamento, tão impopular, tão anti-português - não ousaram manifestá-lo ao Povo. Que seria da revolução se tal fizessem!

A revolução não destruiu o Poder criado pela Carta, o poder constitucional do Rei na pessoa e dinastia de sua actual e augusta Representante, e o do Parlamento nacional com duas Câmaras: confessou-o, confirmou-o, proclamou-o desde o seu primeiro brado; e por isso achou aderentes e defensores, que, sem tais protestos, todos saem em Portugal e fora dele, nunca havia de encontrar. . .

Aqui foi o Orador interrompido pelo Sr. Deputado José Estêvão, que disse: - «O poder criado pela Carta era o Sr. José da Silva Carvalho.» - O Orador continuou, apontando para o deputado que o interrompera:

Ali está, Senhores, a confissão ingénua de todas as minhas acusações; naquelas palavras está o testemunho irrecusável de que todas as questões aqui seio pessoais, de que tudo se reduz a mesquinhas, a miseráveis considerações de indivíduos, que os mais graves objectos, que os maiores interesses desaparecem diante destas pequenezas! Um homem é o princípio! A três homens que se juntem, chama-se-lhes um partido! Ao simples ministro do príncipe chamam-lhe um poder criado pela Constituição!

O Poder criado pela Carta não se destruiu; mas a sociedade, já desorganizada ou não organizada ainda para o novo poder, chegou mais perto da dissolução: as pedras do edifício, ainda não cimentadas, e que mal se tinham por sua justaposição, caíram muitas e desconjuntaram-se todas. Quis arquitectá-las de novo este Código administrativo que agora vamos reconsiderar: a experiência provou que não pôde; quantos a fizeram, o declararam. E agora negam o que já confessaram, – agora falam contra o que escreveram e assinaram; e o Código administrativo é a arca santa, é o testamento da aliança em que não é permitido tocar.

Tal é a matéria dos pretendidos argumentos com que nos combatem. A forma não é somenos. Um dos meus amigos que tem lugar no centro, cortesmente foi arguido de não entender os livros de Guizot, cujas palavras com a mesma civilidade lhe disseram que só textualmente sabia traduzir. E logo o mesmo polido orador, dando-nos, do alto de sua infalibilidade, a interpretação autêntica das doutrinas do grande publicista e ordeiro francês, resolvei. a questão do censo, declarando que ele era impossível em Portugal, porque Mr. Guizot, tinha mostrado que as classes sociais eram diversamente constituídas em Franca, do que na Inglaterra e nos Estados Unidos. Não argumentou dessas diferenças para o que devia haver no modo e quota do censo, não, para a proporcional diferença que a diferente constituição das classes portuguesas demanda: não; concluiu que o censo era impossível!

Só o chamar a esta questão a questão do censo, é a maior das muitas decepções com que a opinião pública cm Portugal anda ludibriada. Por Deus, falemos um dia a verdade. - A questão que se trata é a da prova do censo. São coisas muito diferentes. A questão do censo resolveu-a a Constituição, não se pode tratar dela. Mas pode, deve e há-de se tratar a da prova, porque no-lo manda a Constituição, porque o exige, porque a quebramos, e ao juramento que lhe demos, se a não tratarmos e resolvermos.

Esta famosa e arteiramente complicada questão é todavia clara e simplicíssima: reduz-se a saber se há-de estabelecer-se uma prova fixa, legal e verdadeira do censo que a Constituição marcou, prova igual para todos, e protegedora dos direitos políticos dos cidadãos, – ou se há-de ficar como tem estado, inconstitucionalmente entregue ao arbítrio das autoridades que, segundo a geral confissão de toda a Câmara e de todo o reino, por querenças e malquerenças pessoais, por simpatias e antipatias de partido, por ódiozinhos e amisadezinhas, por espírito de bairro e por compadrio, encurtam e estendem, a seu capricho, a medida que têem nas mãos e que não é aferida pelo vero-peso da lei.

Esta é a sincera verdade: mas porque se não diz? Porque é necessário caluniar os Ordeiros, e clamar que eles querem tirar os direitos ao Povo, que para o excluir da urna propuseram a lei do censo.

Nós não propusemos lei nenhuma de censo; torno a dizê-lo; a lei está feita na Constituição. Porque se mente pois ao Povo? Porque se lhe não diz: «Nessa constituição que reformámos, que jurastes, e que tanto dizem que amais, foi feita esta lei: o vago em que ali está expressada tem dado causa a mil fraudes e abusos, que todos (e note-se bem, todos) temos reconhecido. É nossa obrigação e vosso interesse que lhe fixemos regras claras e positivas.» - Mas isto era falar verdades lisas que não aproveitam; e vale mais dizer: «Os Ordeiros inventaram esta quimera do censo que não serve senão para vos excluir da urna e para a entregar nas mãos do Poder.» - É uma falsidade, é uma calúnia: bem o sabe quem o diz; mas diz-se.

Até com a formação do actual ministério, e com a questão estrangeira quiseram enredar esta nossa questão da prova do censo. E já nós a tínhamos proposto nas Cortes Constituintes, e já na passada sessão ordinária a instaurou de novo a penúltima administração, e o Centro forcejou em vão por que se tratasse. E permanentemente devia ela ter sido nesta Câmara desde que se votou a Constituição. Não é nossa culpa se o não foi.

Dizem-se em verdade aqui pasmosas e incríveis coisas! «Esta lei, clamam, esta lei do censo vai excluir da urna os próprios defensores da Legitimidade e da Liberdade, que deram o seu sangue por que nós gozássemos desse direito.» . . . Se tal é, Senhores, se tal fosse, voto desde já contra este, contra todos os projectos de um Ministério tão insolente que tal ousa vir propor a uma Câmara de deputados portugueses. Mas é falso! e quando lá chegarmos a essa questão (se nos deixarem chegar a essa ou outra qualquer de verdadeiro interesse público) então veremos se uma lei necessária para realizar a Constituição, sem a qual a Constituição é mentira, a representação nacional um absurdo, pode excluir ninguém da urna. Então veremos se os direitos políticos dos cidadãos de todas as classes podem ser melhor qualificados pela ridícula infalibilidade de uma junta de paróquia, de uma câmara muitas vezes nem eleita, de um conselho de distrito que nem representa nem conhece o distrito, mas só a terra em que moram os seus membros que, por moradores e não por sabedores, a tal conselho são chamados.

De toda a parte têem vindo os sofismas. À própria desgraçada Irlanda, à última Bretanha se foram buscar; e entrados por contrabando, com ofensa das pautas, do senso comum, aqui os trouxeram para combater verdades que nós apresentámos francamente, despachadas na alfândega como tracto claro e leal que são. «Vejam a Irlanda, olhem para a Bretanha» – exclamou, veemente e triunfante, um orador do lado esquerdo: «quem as reduziu a esse mísero estado em que se acham? A Ordem. Quem as oprime e avexa? Os Ordeiros.» Pode-se ter o riso com este modo de argumentos, pode haver algum mais contraproducente, mais para fazer compaixão? Exemplo das calamidades da ordem, a Irlanda! A Irlanda que tem sido vítima da desordem, vítima de um sistema exclusivo e faccioso! - (Tudo quanto é faccioso é exclusivo, tudo quanto é exclusivo é faccioso.) Que contra seus hábitos e crenças, contra sua fé e costumes, a quis sujeitar a uma religião repugnante, a uma política especulativa e absurda ! Perguntem-no a O'Connell, perguntem-no ao mestre agitador O'Connell, se os primeiros respiros folgados que soltaram, se a primeira aurora de felicidade e liberdade que naquela votada ilha apareceu, não foi quando a Ordem, impondo silencio ás facções exclusivas; triunfou no parlamento Britânico, chamando à comunhão política aqueles cidadãos que os facciosos faziam facciosos, como todos os partidos exclusivos fazem.

O mesmo direi da Bretanha, desgraçada e facciosa em quanto os facciosos de Paris lhe queriam impor lima religião de loucos, uma lei civil de bárbaros, - pacificada e obediente logo que, liberto dos facciosos, o governo da França lhe levou, com a ordem, o regime da tolerância e da razão.

E não seriam os absurdos facciosos os que dilaceraram e atrasaram aquelas duas tão belas e ricas porções de dois grandes impérios? E não seria a Ordem que as restituiu e chamou à civilização? A Ordem que desfaz o exclusivo insultante e usurpador das facções, que dá a cada um o que lhe é devido, que a todos os partidos chama indistintamente aos cargos, aos empregos, ás honras, à protecção, à liberdade; que os não quer património de nenhumas famílias privilegiadas como dantes eram, nem de nenhuns partidos como hoje se queriam fazer. E tão mau é para o Povo que as dignidades e funções públicas, que o gozo exclusivo de todos os direitos andem de juro e herdade numa casta ou numa classe, como que andem enfeudadas num partido ou numa seita. Ao Povo convêm, a Ordem exige, que os talentos e as virtudes sejam chamadas sem distinção ao serviço do Povo e do Rei; e que, assim como já não pode o Cristão velho excluir o Cristão-novo, nem o fidalgo o peão, também não possa um partidário excluir a outro. - Ora os Ordeiros querem anular esse veto usurpador e insuportável, que a própria família liberal ia dividindo em tantas fracçõesinhas quantas eram já quase os seus indivíduos – e este crime é imperdoável! É certamente, nos tribunais facciosos deve sê-lo.

No sôfrego e imprecatado desejo de deprimir uns para lisonjear outros, excitando a desconfiança e a guerra entre todos, se brada ao Povo que nada deve aos seus capitães, aos que nas fileiras ordenadas da Liberdade o tem sempre levado, a ele Povo, a triunfar da usurpação ultimamente, a sustentar a sua independência nas guerras antigas. Ah Senhores! Na monarquia livre não é necessário o ostracismo. 0 primeiro lugar está sempre ocupado pela lei: nem os serviços de Temistócles nem as virtudes de Aristides metem medo à nossa república. Bendita seja a nova e preciosa forma da liberdade moderna!

Não é isso o que a nação quer, não são dessas tredas louvainhas as que lhe afagam os ouvidos: que se desenganem os seus cortesãos. A Nação bem sabe que, se o Povo fez serviços à causa da Liberdade, também a classe média os fez, também a aristocracia – e também o trono. Digam a verdade, digam-na toda; que a metade só da verdade é tinia mentira inteira. A Nação não distinguiu classes, não as mediu, e sobretudo não desconfiou, não abriu devassa de suspeitas, quando se levantou em massa – e essas sim que eram virtuosas massas! -para cair sobre o despotismo.

Em torno do estandarte que se hasteou na Terceira, que desembarcou no Mindelo, vinha reunir-se o peão com sua nobre espada, o nobre com sua espingarda de soldado raso. Vimos o desembargador sobraçar a beca para carregar o obus; e curvar o joelho, na linha de frente, o fidalgo mais preocupado de sua linhagem histórica. Tais questões de precedência ou preferência, não as admitia então a Nação porque só queria recuperar a sua liberdade; não as admite agora porque só quer gozar da sua liberdade.

Não por falta de diligências que agora se não façam, não por falta de esforços que então se não fizessem. Bem se agitou, bem se declamou, bem se trabalhou para introduzir em nossas pequenas fileiras o gérmen de discórdia que já então andava por essas cabeças que sempre me obstinei a chamar louca, quanto ainda hoje me obstino por lhes achar inocentes os corações. Bem trabalharam, repito; mas a Ordem triunfou e por isso a Nação venceu.

Oh! virtuosas massas eram aquelas! Ide agora; ide, lançai-as outra vez nas praias do Mindelo, levantadas desse azedo fermento com que as levedais a cada instante, e vereis se têm a mesma virtude. - Hão-de tê-la se o perigo voltar, porque nessa hora os amassadores fogem, o fermento abate, e só fica a substância compacta e sã da lealdade e do valor de um povo generoso. O povo não os crê aos falsos publicolas, e respeita e venera os seus caudilhos verdadeiros. «Ide, lhes responde ele, ide, dizer aos Suíços que derrubem a estátua de Guilherme Tel, aos Americanos dite despedacem a do seu Washington, aos Romanos que despenhem da rocha Tarpea as dos seus Brutos e Camilos. Ide-lhes pregar que a si sós, e não a seus ilustres capitães, devem a liberdade: endoudecei-os se podeis. Nós queremos adorar a espada ferrugenta do Condestável, queremos prostrar-nos diante dos túmulos de João I e de Pedro IV. Queremos por gratidão, queremos por interesse, porque na hora da angústia bem sabemos com quem nos havemos de achar.»

Ao menos se estes solecismos políticos não fossem tão escandalosamente mal soantes! Mas, com a ânsia de deprimir o mérito verdadeiro, de converter o respeito público em ódio, proferem-se coisas que pasma. Tais há que até são injuriosas aos próprios que as dizem, e que, se as dissesse outrem, para si as tomariam por afronta imperdoável e atroz.

Disseram – e como se lhes não engasgou a blasfémia na boca! disseram que eram maiores os serviços feitos à causa da Liberdade pelas autoridades do usurpador que tinham alguma indulgência connosco, do que os outros todos, do que os próprios serviços do campo de batalha!

Estas palavras proferiram-se: é tarde para as negar: gravaram-se-me no coração para sempre: registou-as o Povo no seu livro grande, a memoria das gerações que nunca se perde. Ide dizê-lo a esses que nos esmolam ás portas porque gastaram quanto tinham para nos socorrer e defender! Ide dizê-lo ás viúvas dos que morreram no campo da honra 1 Ide dizê-lo aos órfãos dos que expiraram no patíbulo não menos honroso! Ide, que vo-lo agradeçam!

São desses desvarios, são desatinos como esses os que, tanto ou mais do que a absurda e impossível lei das indemnizações, têm endoudecido as gentes, e fomentado a desordem das províncias, espécie de anarquia de bairro que trouxe a tirania de aldeia, assim como a grande anarquia dos povos traz a grande tirania dos reis. Bem chamou um amigo meu a este estado das nossas comarcas, o feudalismo dos valentões. Responderam-lhe com banalidades, invectivaram-no com afrontosas suspeitas. Eu quero para mim parte do vitupério, porque a mesma expressão adopto, porque faço a mesma asserção. Que lei tinham os antigos senhores feudais? A de chamar seu a tudo à roda de si, até onde chegava aponta de sua espada. - Qual é o único direito que reconhecem esses novos barões feudais das nossas terras? O de chamar seu a tudo à roda de si até onde alcançam as bocas de seus arcabuzes, os bicos de suas baionetas: outra diferença não vejo entre estes dois feudalismos, senão a da hipocrisia da parte dos modernos: porque os antigos criam piedosamente no seu direito; os nossos sabem, professam e pregam o contrário do que praticam.

Et consules vident!  E nós vemos e tolerámos, e por coroa de vergonhas, havemos de ir dizer à Rainha, nessa resposta, que o país está tranquilo e feliz!

E porque houve um homem honesto e corajoso que ousou dizer alto a verdade, apedrejam-no das mais ponderosas calúnias. Foi o meu amigo o Sr. Deputado por Beja a quem, por expor, e propor remédio para, o verdadeiro estado de Portugal, – de todos os crimes acusaram, até de convidar os estrangeiros para nos virem conquistar! Sem remorsos, sem consideração por um homem fraco e valetudinario, um lavrador de nenhumas pretensões, modesto, e que não tira o lugar a ninguém pelo pouco que na sociedade quer ocupar, nele personalizaram o Evangelho da Ordem tão aborrecido, vestiram-no com a púrpura do escárnio, coroaram-no dos espinhos da calunia, empunharam-lhe o ceptro de cana da irrisão, expuseram-no em uma varanda de ignominia, e bradaram ás turbas concitadas: «Ecce homo!» Eis aí está quem vos quer vender aos estrangeiros!

A afronta não recaiu sobre o afrontado, toda irá para as faces do que nesta hedionda e sacrílega farsa se atreveu a ser Pilatos!. . . lave embora as mãos em quanta agua tem o mar.

Não tinham esse propósito, – não asseveravam tais coisas, – era um modo de argumentar, uma suposição oratória... Assim se evadem depois a uma responsabilidade moral que era mais corajoso ao menos ter a desfaçatez de arrostar.

Sabem que é falso o que dizem; para que o dizem? Suspeitam-no? Pois com meras suspeitas se acusa em matéria tão grave? - E suspeitam-no como, com que fundamento? Apontai um único indício, o mais leve. Temos saudades do despotismo, dizeis. Nós! saudades do despotismo nós! Reparastes bem nestas caras? Vistes as vossas ao espelho da consciência, antes de proferir tal?

Para tais acusações, por tais acusadores, o desprezo é a única resposta. Julgue Portugal entre nós, julgue, sem mais alegação, entre os autores e os réus, que bem nos conhece a todos.

Que haja quem tenha saudades do despotismo nesta terra! Não se receia, não se crê senão dos que já foram validos e fautores do despotismo. Aonde esses estão, não sei. - Sei que não estão aqui no centro.

Ah! que se tais saudades nós tivéssemos, bem fácil nos era fartá-las, e pronto. Ah! que se tal desejássemos, não estaríamos aqui há quatro anos combatendo a anarquia todos os dias; bradaríamos também com os desordeiros, ajudá-los-íamos em suas loucuras, excitá-los-íamos em seus desvarios, porque no fim deles, nós sabemos decerto, nós infalivelmente contámos que está a tirania

E com tudo, liberais, grandes, generosos, portugueses verdadeiros, eles! Eles sós; não se passa alvará a mais ninguém A justiça politica, o espírito essencialmente anti-exclusivo, anti-faccioso da nossa doutrina, nos fez proclamar a necessidade de restituir aos cargos públicos os que, por mera diferença de opiniões constitucionais, os tinham perdido - assim como nos fez desejar ver sair da urna os nomes honestos e distintos de todos os partidos. Eram verdadeiros os nossos desejos, eram sinceras as nossas proclamações? Aí está o acto Real de 4 de Abril aconselhado por um ministério Ordeiro; aí estão as listas Ordeiras da passada eleição em que aparecem confundidos os nomes da direita e da esquerda. Aí está finalmente a lei proposta pelo centro na última sessão, só por ela sustentada e por alguns poucos generosos ânimos da esquerda da Câmara! Aí estão finalmente os actos do ministério Ordeiro, as suas nomeações, as suas escolhas.

Os grandes crimes desse ministério eram não ser exclusivo; e todavia os exclusivos clamavam para a direita: «Uni-vos a nós, homens da Carta, ajudai-nos a esmagar este centro presunçoso: nós é que somos gente liberal e generosa: tanto que até tínhamos tenção de enviar uma mensagem ao Trono para serdes amnistiados.»

Não serão os Ordeiros, não podem ser eles de certo, os que se opunham a tão fraternal união. Especialmente eu aqui posso dar testemunhas de quanto me esforcei o ano passado por que se organizasse um ministério de fusão, por que a direita e a esquerda conviessem em princípios comuns de governação, para que assim acabasse esta guerra sem nome, sem fim, sem glória, que é a nossa desgraça e a nossa vergonha.

Oh! porque não aceitaram o convite! Ainda é tempo; juntem-se para esmagar o centro. Por esse modo, a troco dessa reconciliação, o centro folgará de ser aniquilado. Perdoávamos-lhes a morte se fossem capazes de no-la dar assim. Não era isso melhor – e mais fácil do que estar a levantar essas calúnias que nos dão vida, porque todos as conhecem por tais?

Para que é pintar estes Ordeiros, tão poucos e tão fracos, urdindo conspirações gigantescas para terríveis reacções? Já armando forcas, já afiando cutelos! - Será para ter o gosto de nos darem aquele caritativo conselho do outro dia: «Olhai que haveis de ser vítima deles!»...

O orador foi de novo interrompido pelo Sr. José Estêvão, que disse: «Declarei que lhes havíamos de perdoar.» - O orador continuou:

Guardem o seu perdão, que lho rejeitamos; não queremos amnistia: nesse juízo nem alegar queremos, não lhe reconhecemos competência.

Queremos ser julgados pelo merecimento dos autos e no tribunal da Opinião nacional. Subam os feitos da nossa vida, dos nossos escritos, das nossas falas. Mostre-se um facto, um dito, um gesto que indique o pensamento de querermos apelar para esses meios bárbaros de decidir questões politicas.

Os professores do direito público da guilhotina, os que querem ilustrar a nação à luz das lanternas, os publicistas canibais, os jornalistas hotentotes... vejam aonde os acham... no centro bem sabem que não.

Quanto a mim porém, a mim pessoalmente, nenhuma destas calúnias me ofendeu. Calejei há muito a paciência no espicaçar dessas agulhas ferrugentas: desprezo os que se aviltam a negociar nesse tráfico negro, que mercadeja de reputações tão desalmadamente como os liberalíssimos negociantes de escravos comerceiam dos corpos e almas de seus semelhantes. Piratas ambos que a civilização vai castigando, e no bando de cujo império os veremos postos em fim, desaforados e proscritos. Por mim, me não importa o seu

Coaxar de rãs em lodaçal imundo.

Os indivíduos morrem; depois da morte vem a justiça, e começa a imortalidade das famas honradas. Eu não sou materialista religioso nem político, espero salvar a minha alma em Jesus Cristo, e o meu crédito na lembrança dos Portugueses: nessa esperança certa de ressurreição adormeço tranquilo ao som dos uivos infernais com que presumiam fazer-me desesperar nesta hora que cuidaram de morte.

Mas não é assim das crenças e opiniões políticas; essas não morrem, essas precisam desagravadas em vida dos que a professam, e por isso as vim hoje defender, e aos meus irmãos em doutrina, dos traiçoeiros ataques de seus inimigos. Por mim, ladrem todas as três gargantas do cão infernal, que nem me importa açaimá-lo de força, nem uma sopa lhe hei-de deitar para lhe calar um latido.

Como cidadão nunca renunciei um direito, nem que me custasse a fazenda, a vida, a pátria: tenho-o provado nos cárceres, no exílio, na miséria...

Como súbdito nunca faltei a uma obrigação: e não menos duramente asselei a minha lealdade...

Como português, nem um pensamento leve, momentâneo, – chegou a cruzar-me ainda no cérebro, de que não possa vangloriar-me à face do mundo...

Como funcionário público, quis minha boa estrela que ainda não estivesse em lugar a que pudessem chegar nem as suspeitas da inveja...

Fraco homem de letras sou, não presumo delas; mas nunca prostitui a minha prosa numa mentira, os meus versos numa lisonja... Falem esses opúsculos que a Nação portuguesa ainda tem a indulgência de ler.

Fraco soldado fui, o último, o derradeiro dessa falange em que tantos morreram para nos imortalizar a todos. Mas nem fiquei (*) nos bailes de Paris ou nos pasmatórios de Londres, em quanto os meus compatriotas vinham encerrar-se nos débeis muros do Porto; nem a minha mão, apesar de imbele e doente, recusou pegar na espingarda de soldado, para ficar nas reservas de França e de Inglaterra, manejando a pena censória que tudo achava mau quanto se fazia pelos que expunham a sua vida por eles. Cobri-me do vestido grosseiro, nutri-me do pão grosseiro do soldado raso, nunca tive outra paga ou outra etapa, fiz como os outros sem ser valentão; e a débil pegada que o meu obscuro pé imprimiu nas praias do Mindelo, há-de ficar gravada na historia, como a dos bravos cujos heróicos feitos rodeiam de uma aureola de glória os fracos serviços de seus honrados companheiros que, para o comum empenho, não deram pouco no que deram porque era quanto tinham. - Mas aqueles podem pleitear serviços connosco, e não o fazem! Quem são esses que vêem a juízo com as suas preferências? Agradeçam-me que lho não diga, que lhes não pergunte aonde estavam, que lhes não prove um vergonhoso álibi que de vis acusadores os faça réus mais que infames!

E todavia, Senhores, não é tanta minha professada abnegação que me não doesse, e muito; quando até nas afeições privadas, nas simpatias do coração me quiseram ofender, porque inocentemente citei o nome de um meu ilustre amigo - bem como pudera citar muitos outros nacionais e estrangeiros -, para provar que nem era inconstitucional, nem incurial que entrasse em nova administração um membro de outra que as votações parlamentares tivessem obrigado a deitar os negócios.

Acertaram-me com o lado vulnerável, confesso; porque em toda a minha vida pública e privada – digo-o alto e altivo – nunca traí um amigo, nunca desacatei um amigo, nunca me esqueci de um favor, de um cumprimento, de uma atenção leve e de mera civilidade que uma vez me fizessem. Posso discordar em opiniões dos meus amigos; quero essa liberdade, não a dou por coisa alguma; alterar os meus sentimentos, falar, obrar contra eles, nunca. Têm-no feito a mim, não o retribui, não o retribuirei jamais.

Pois doeu-me a insinuação maldosa e má. E mais bem sei que aquele meu amigo velho de muitos anos, está bem certo de quem o deseja honrar, e de quem tantas vezes procurou desonrá-lo - de quem neste mesmo lugar, no seio da representação nacional lhe fez atrocíssimas acusações, de quem o defendeu delas. De qual seja a gratidão das facções nenhum homem ainda levou mais completo desengano neste mundo - quando nas ruas de Lisboa a insígnia brilhante que em seu peito testemunha dos serviços feitos à pátria, da gratidão do Trono e da Nação - apenas pôde salvá-lo de receber no mesmo peito a nova condecoração que lhe iam entalhar . . .

Mas para que é falar tão solene e taro deveras? Perdoe-me a Câmara pelo tempo que perdi em responder sério a meras ironias de gracejo, picantes apenas pelo sal ático que lhes deu sabor tão fino. Áticos motejos certamente, galantes em sua própria mordacidade, por mais que diga essa gente de ruim gosto e paladar depravado, que nem a doida elegância do estilo de Alcibíades lhe quer achar, nem sequer a crapulosa mas poética felicidade do género aristofanico!

Valha-me Deus! Pois não o declarou, desde o princípio do seu discurso, o nosso principal acusador? E eu que só agora reparo nisso! Não declarou ele logo que todos os pecados dos Ordeiros tinham sido cometidos nos deliciosos sonhos do porto Pireu, onde como doidos nos achou a imaginar venturas, poder e mando? E sobrou-lhe o juízo, a ele, chegou-lhe a caridade para nos curar.

É verdade, confessamo-lo estávamos sim no porto Pireu quando vendo entrar certas caravelas suspeitas, apesar da bandeira Constitucional – monárquica com que navegavam, não conhecemos, pela mastreação e feitio do casco, as terras donde vinham; e só vimos, ao descarregar, que era desordem, anarquia e ambição o que lhe pejava o cavername. - Descemos curados do porto Pireu, e sem querer mal ao médico.

Mas não fomos nós os únicos que estivemos no porto Pireu. Lá estavam sem dúvida os que vendo entrar esses bojudos galeões carregados de urnas e de votos, de actas e de escrutínios, calculando mal a aura popular que lhes enfunava as velas, imaginaram que toda aquela carga era sua, correram à alfandega, fizeram os gastos do despacho, e só conheceram a pequena parte que tinham na sociedade quando viram chegar os donos a tomar posse da maior porção da carga.

No porto Pireu estavam os que supunham que nenhum poder era possível senão o seu nesta terra; e que a Nação se havia de levantar em massa virtuosa, cada vez que o Chefe do Estado ousasse quebrar o que, em sua modéstia, como privilegio exclusivo se arrogavam, chamando fosse quem fosse aos conselhos da Coroa, sem ordem ou, pelo menos, sem consentimento de suas altas potências.

No porto Pireu estavam, mas com má e perigosa doidice, os que não duvidaram transtornar a ordem pública, fazer correr o sangue pelas ruas para que não entrasse no ministério um homem fortemente suspeito de Ordeiro a quem declaravam inimigo do Povo e assassino da liberdade - e que daí a pouco chamaram inimigos do Povo e assassinos da liberdade aos que tiveram a menor dúvida sobre a conveniência desse mesmo ministério.

No porto Pireu estavam os que, sem virtudes... - ou com elas, de toda a parte importavam calúnias e injúrias que vendiam a retalho; mercadejando da reputação dos homens de bem; e que, na momentânea crença que suas falsidades encontravam-se no vulgo, imaginavam ter estabelecido perpétua fé que para sempre os fizesse odiosos ao Povo, e só para si ficasse a boa opinião e crédito de honrados exclusivos.

No porto Pireu estavam os que sem serviços... ou com eles imaginaram poder ofuscar os de todos os que não fossem de sua parcialidade, e condenar a perpétuo ostracismo quantos fizessem sombra a suas pretensões vaidosas.

O Povo não caiu no erro; desenganou-os: dele se queixem, não dos Ordeiros que os avisaram sempre, e cujos remédios higiénicos, se a tempo os tomassem, lhes teriam prevenido a fatal moléstia de que adoeceram, com que tanto mal fizeram, que tão dolorosa cura precisa,

No porto Pireu estavam os que sem talentos... ou com eles, declararam ignorantes a quantos se não matricularam em suas palestras, imaginando que o Povo havia de estar pela sentença categórica de sua infalibilidade cientifica

O Povo não os acreditou por suas palavras, quis antes julgar pelas obras do que pelas criticas, e conheceu onde estava o saber e onde a ignorância. Queixem-se do Povo.

Estavam no porto Pireu os que no século décimo nono, contando com a suposta ignorância e verdadeira inexperiência da nação portuguesa, mandaram a França vasculhar as tribunas da Constituinte, da Convenção e dos Jacobinos, e carregaram grossos baixeis com os farrapos desses discursos tribunícios que hoje somente não são ridículos pela recordação das atrocidades que causaram, e que apenas trazem já o eco morto de palavras ocas e vãs, que os povos instruídos e escarmentados conhecem e escarnecera. Viram entrar esses baixéis, imaginaram-se negociantes de grosso tracto que iam realizar incalculáveis ganhos; e somente se desenganaram quando, exposta nas lojas a mercancia tão gabada, o povo não quis comprar os farrapos. Meia dúzia de logrados que fizeram a experiência, breve se arrependeram da fazenda avariada que tinham cabido em comprar.

No porto Pireu tinham estado já, sonhando engrandecimento e fortuna, os que na estatua de ferro da usurpação não viram os pés de barro que a sustinham, e, imaginando que eram seus exclusivamente estes reinos, contra os constitucionais vociferaram e bradaram, até que, derrubada a estatua, tiveram de descer daquele porto Pireu: mas sem vergonha o fizeram, porque, logo noutro ídolo igualmente falso, o da anarquia, puseram as suas esperanças, e subindo de novo ao porto Pireu, cuidaram que, por gritar mais que nós, por bradar mais alto que todos, a Nação esqueceria os serviços de uns, e o procedimento de outros, e os acreditaria mais liberais que ninguém.

No porto Pireu estavam os que, cobrindo as casacas bordadas de barões feudais com a sotana de tribuno, escondendo debaixo dela as decorações aristocráticas, iam fraternizar para os clubes republicanos a certas horas do dia; e noutras, despida a sotana, iam ás escondidas introduzir-se nos salões Reais, forrar as paredes do Paço, e desforrar-se, em orgulho e vaidade, das horas da compressão em que tinham sido obrigados a afectar lhanesa e humildade. Como nos tempos de glória da velha Rua dos Condes e do Salitre, quando o rei encoberto desabotoava o casacão, e proferindo a solene palavra Reconheces-me? cabia tudo aos pés do rei de teatro, e o teatro com palmas e bravos; assim sucederá a estes quando o povo, em mais vasta plateia, abrindo-lhes a sotana de tribunos, vir por baixo as fardas bordadas em todas as costuras, o orgulho de fidalgos novos, a presunção da gralha com as penhas do pavão. Também o teatro há-de vir então abaixo, não com palmas, mas com assobios e apupos!

No porto Pireu estavam os que imaginaram que este honrado Povo português se tinha esquecido de que pela Legitimidade lhe viera a Liberdade, que, na fidelidade dos seus Reis tinha a melhor garantia dela, e a única de sua independência; que na religião de Jesus Cristo – a só crença que professa a igualdade do homem – tinha o mais seguro amparo e fortaleza de seus direitos. Que assentaram que bastava dizer insultos ao Trono para que o Trono ficasse impopular; que bastava mofar da religião, para que o Povo abjurasse a religião de seus pais!... O Povo zombou deles! O Povo curou-os de sua loucura, desenganando-os, amando a religião, respeitando o Trono e querendo a liberdade com ambos. O Povo foi o seu médico, queixem-se dele se podem, mas as receitas aí estão - e as visitas do médico, ao menos não as pagaram.


(*) Estas palavras de amarga censura foram repetidas pelo orador unicamente porque o Sr. José Estêvão, de cujo discurso as tomou, as lançara de acusação aos deputados do centro.

 


Fontes:

Discurso do Sr. Deputado pela Terceira J. - B. de Almeida Garrett, na discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, pronunciado na Sessão de 8 de Fevereiro de 1840,
Lisboa, Na Imprensa Nacional, 1840;

Almeida Garrett, visconde de,
Discursos Parlamentares e Memórias Biográficas, coleccionados por C. Guimarães,
2.ª ed., Lisboa, Empreza Histórica de Portugal («Obras completas do Visconde de Almeida Garrett, XXIII»), 1900/1901

Maria de Fátima Bonifácio
Apologia da História Política: Estudos sobre o século XIX Português,
Lisboa, Quetzal, 1999

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