A Revolução de 1383 - 1385 segundo António Borges Coelho.

 

António Borges Coelho defende Fernão Lopes dos seus «detratores». E porque é que são «detratores» ? Porque «o que a muitos dói é o conteúdo revolucionário da crónica que é a história da primeira revolução burguesa nacional.»

O tom inquisitorial do prólogo é muito típico dos textos dos intelectuais comunistas desta época, logo a seguir ao 25 de abril. Em 1985, dez anos depois, durante as Jornadas de História Medieval, a postura de Borges Coelho será muito mais dialogante.

Porquê esta defesa tão apaixonada de Fernão Lopes ? Possivelmente porque, como Álvaro Cunhal tinha afirmado, «o testemunho de Fernão Lopes é uma contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução».

 

PRÓLOGO DA 2.ª EDIÇÃO

Podado o estilo da III Parte – O Mundo Contemporâneo, inchada com as longas palavras deste Prólogo e um apêndice, «A Revolução de 1383» inicia uma segunda viagem convocando novos leitores ao diálogo, rompendo o capuz de silêncio em que quiseram envolvê-la.

Mas o livro não quer falar de si próprio. Aproveita a oportunidade que os leitores lhe ofereceram para fazer um balanço da situação e levantar alguns problemas novos.

A – A VALIDADE DA CRÓNICA DE D. JOÃO I

1. Em que base se apoia «A Revolução de 1383»? No poço sem fundo em que mergulharam e beberam todos os comentadores: a Crónica de D. João I de Fernão Lopes. E não se envergonha do facto. Não tem complexos por isso. Quem desdenha da Crónica ou é tolo ou tem medo das cargas explosivas que transporta no seu ventre.

Mas o livro não enjeitou outras informações nem fugiu, muito menos, à contraprova documental. Embora não tivesse hibernado nos arquivos, utilizou os cinco livros da Chancelaria de D. João I conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo; analisou numerosos documentos laboriosamente recolhidos por Silva Marques nos Descobrimentos Portugueses; por Gama Barros na História da Administração Pública em Portugal, por José Soares da Silva nas Memórias para a História...; por Caetano de Sousa na História Genealógica da Casa Real Portuguesa – Provas... E não só.

Bebeu ainda, contestando, nos diferentes autores que abordaram o que alguns ainda hoje designam, pudicamente e por hábito, como «crise». Cito, em especial, as Crónicas de Pedro Lopes de Ayala e Jean Froissart, A História da Sociedade em Portugal no século XV de Costa Lobo, As Lutas Sociais em Portugal na Idade Média de Álvaro Cunhal, a História da Cultura em Portugal de António José Saraiva, o prefácio à Crónica de D. João I de António Sérgio, O Carácter Social da Revolução de 1383 de Joel Serrão, etc.

2. Que confiança nos merece o texto de Fernão Lopes? Não haverá ingenuidade, cegueira até, em aceitar a sua validade quando não dispomos de uma edição crítica e alguns autores, como Oliveira Marques no Dicionário da História de Portugal, levantam reservas, sugerem partidarismo e subserviência e declaram mesmo - é o caso de Oliveira - que a Crónica é mais um romance histórico?

3. A Crónica de D. João I está aí. Resistiu ao perigo dos séculos, ao roubo dos cronistas desonestos, ao ataque dos seus detractores.

Que caminho seguir na abordagem crítica? Rejeitar, de antemão e em bloco, o testemunho medieval ou seguir o caminho inverso: aceitar que a Crónica ou outro texto vale enquanto não se provarem falsidades, esta e aquela falsidade, enquanto não se firmarem falsidades em número significativo, persistindo, apesar disso, como índice, como referência?

Tendo em mente a raridade das fontes testemunhais na época medieval, com todas as cautelas e reservas, trilho sem hipocrisia o segundo caminho. Antes -de uma crítica mais profunda e tendo em conta o apreço que lhe dedicaram gerações de investigadores, a Crónica vale até prova em contrário e, sempre, como documento ideológico e como documento histórico.

4. Existiu Fernão Lopes? Escreveu ele a Crónica de D. João I ?

Testemunhos de contemporâneos seus e documentos autênticos provam sem margem para dúvidas que Lopes foi tabelião geral do reino, cronista, escrivão da puridade do infante D. Fernando, escrivão da puridade do infante D. João (1), escudeiro de D. Duarte em cujo serviço se deslocou a Aragão (2) , servidor do rei Afonso V. Residiu em Lisboa numa casa sua perto da igreja de S. Miguel em Alfama.

Quanto à autoria da crónica, ninguém a põe em dúvida. Em 1434 D. Duarte encarrega-o de «pôr em crónica as história dos reis que antigamente foram em Portugal e os feitos do rei D. João». As cópias mais antigas do livro que nos restam são dois manuscritos do século XVII. Seguem provavelmente o original ou cópias do século XV.

5. António José Saraiva, admirador entusiasta de Fernão Lopes a quem dedica um estudo pioneiro, escreveu, no entanto, que o historiador, funcionário da Casa de Avis, relatou os acontecimentos revolucionários de maneira favorável à nova dinastia, favorável à dinastia que o sustentava. O ataque à partidarite do cronista generalizou-se. Oliveira Marques fala, por exemplo, em subserviência de valido do Paço.

Contestamos

a) Quantos funcionários públicos tomaram atitudes, por actos e escritos, contra os governos de quem recebiam o salário?

b) O retrato do fundador da dinastia de Avis – porventura o mais espantoso do romance e da pintura portuguesas nada tem de laudatório, de escrito de conveniência e, muito menos, de prosa mercenária. Não esconde as hesitações, o medo, as cóleras, a inteligência vulgar do chefe nominal da revolução. Não hesita em colocá-lo na posição mais insólita para púrpura de rei: de joelhos, pedindo perdão a Leonor Teles pela morte do Andeiro ou emborcando uma tigela de mijo para incitar um seu amigo, ferido, a fazer o mesmo e se salvar.

c) Há de facto uma figura com a qual Fernão Lopes não se sente à vontade. Essa figura é a de Nuno Álvares Pereira. Aqui a prosa esborrata-se em iluminura, doura em panegírico mas a verdade ilumina-lhe as rugas do rosto, estala-lhe o óleo. Era dos Braganças – e não da família real, isto é, do Regente Pedro – que vinha, na época em que Fernão Lopes escrevia, o perigo fundamental. Além disso, como escrivão da puridade do infante D. João e servidor, portanto, da neta estremecida de Nuno Álvares, mulher daquele, Fernão Lopes sentia, pois, natural constrangimento (constrangimento de servidor, de servidor amigo, constrangimento de homem-escritor-vassalo-amigo?)

d) O discurso de João das Regras não engana ninguém acerca da legitimidade de João, mestre de Avis, o tal «rei eleito e quase parlamentar, nem Fernão Lopes quer enganar com ele. Conta com verdade e naturalmente o que se passou: A nobreza da Beira prefere João, filho de Inês de Castro e é ameaçada à espada por Nuno Álvares. Por sua vez, os procuradores dos concelhos dirigem-se às Cortes de Coimbra já com instrumentos e poderes para elegerem rei o mestre de Avis. João das Regras encarrega-se tão só de enquadrar a eleição revolucionária numa legitimidade jurídica: feita a «demonstração» de que o trono se encontrava vago, o mestre surgia, pois, como o rei legítimo e natural dos portugueses.

e) Como todos os historiadores, como todos nós, Fernão Lopes não é inocente, toma partido, mas sem comprometer a verdade a esse partido. O seu partido é o da cidade de Lisboa, é o da arraia-miúda, o dos ventres ao sol, o do bom Portugal e, também, o de João, mestre de Avis, chefe eleito, rei de boa memória dos revolucionários de Aljubarrota. Foi por tomar este partido sem comprometer a verdade; foi por se ter situado neste horizonte social que o génio de Fernão Lopes ultrapassou o seu tempo e não mais se apagará.

6. Na década de 60 formularam a Fernão Lopes uma acusação considerada grave: teria faltado à verdade na descrição da batalha de Aljubarrota. Os arqueólogos identificaram no chão da batalha covas de lobo, abertas pelo exército português, covas de lobo que o cronista sorrateiramente teria deixado na sombra.

– Aqui del-rei que Fernão Lopes mente! Abaixo o romance histórico!

Confesso. Se esta acusação não abalou em nada a minha confiança, inclinou-me, porém, a aceitar que, aqui, Fernão Lopes se deixara arrastar pelo nacionalismo e, pelo menos, calara. Agora, ao escrever as linhas deste prólogo, procurei pôr à prova essa acusação que serviu de rastilho a todo um desacreditar, não das outras crónicas lopeanas, mas precisamente da Crónica de D. João I. Foram estes os resultados da devassa:

a) Comecei por ler Ayala. Que diabo, não é Ayala um combatente de Aljubarrota, castelhano e, para mais, chanceler-mor e cronista dos acontecimentos? Pois Ayala, como Fernão Lopes, ignora pura e simplesmente as covas de lobo que a arqueologia descobriu e a que aludia a carta do rei João de Castela a Múrcia. Porque não se acusa Pedro Lopes de Ayala e somente Fernão Lopes?

b) A descrição da batalha, feita pelo cronista castelhano, confirma, nos traços gerais, o relato do historiador português, ajustando-se até aos pequenos pormenores como o dos peões de Portugal encurralados e impedidos de fugir e outros.

c) Fernão Lopes desmente Ayala. Com razão. Em Aljubarrota não havia vales que impedissem os castelhanos de atacar as alas do exército português. Como se pode verificar «ali não havia melhoria de campo que os portugueses tivessem escolhido, nem montes nem vales que estorvassem seus contrários». «Tudo era campina igual sem nenhum estorvo a ambas as partes, a qual o trilhamento das bestas e passear dos homens tornou assim rasa e tão chã como plano rossio sem nenhuma erva.» Os ribeiros que ladeiam a charneca plana eram em Agosto, parece-nos, obstáculos irrisórios. Ayala esquece-os. A carta de João de Castela a Múrcia fala em arroios (desculpa evidente que não destrói o campo raso da batalha); fala num monte talhado até à altura da cintura; e numa cava que atingia a «garganta» de um homem... (3)

d) Afirmações de Ayala e de Lopes encerram, em minha opinião, a chave do enigma. Referindo-se aos cavaleiros espanhóis que vieram falar a Nuno Álvares antes da batalha, Ayala escreve: «catarom e avisaromse bien de la ordenanza que teniam los de Portugal.» (4) E noutro passo: «ou sairão daquela ordenança e vantagem que tomaram»... Por sua vez, Fernão Lopes: «a vantagem que os portugueses tinham era esta: quando a alva do dia começou a crescer, já el-rei tinha suas batalhas de todo ordenadas.» E noutro passo: «E se a eles mui mal ordenaram, como alguns por suou escusa escrevem, culpa de quantos bons aí vinham e de todos as estrangeiros que Pero Lopes gabou ao Conde (Nuno Álvares) que tão sabedores eram da guerra.» Concluo: Ayala e Fernão Lopes não referiram expressamente as covas de lobo porque elas estavam implicitamente contidas na ordenança das batalhas.

e) A existência das covas de lobo é também postulada por este facto, relatado por Lopes e só por ele: «E se em este passo achardes escrito que os castelhanos cortaram lanças e as fizeram mais curtas do que traziam, havei que é certo e não duvideis, porque muitos, cuidando de pelejar a cavalo, quando viram a batalha pé terra...»

Mesmo que tivesse calado, invalidava tal facto, numa vírgula, a Crónica de D. João I ?

As acusações, apontadas a Fernão Lopes, voltam-se contra os seus acusadores. O que a muitos dói é o conteúdo revolucionário da crónica que é a história da primeira revolução burguesa nacional.

7. A Crónica é testemunho. Como tal exige a comparação com testemunhos contraditórios; exige ouvir os porta-vozes dos partidos adversos. Ouçamos Pedro Lopes de Ayala, o capitão espanhol de Aljubarrota, o chanceler de João I de Castela. A descrição de Ayala, mais pobre, notarial, confirma, nas grandes linhas e nos pormenores, todo o relato do processo revolucionário: as broncas na aclamação de Beatriz; o levantamento popular de Lisboa com seus episódios; a fuga de Leonor; a entrada do rei de Castela pela Guarda; a aclamação do Mestre de Avis como Regedor e Defensor do Reino; os Atoleiros; o cerco de Coimbra; o cerco do Porto e a frota; os personagens e terras por Castela; o cerco de Lisboa e a peste; o cerco de Torres Vedras e a tentativa de assassinato do Mestre; o cerco de Elvas; a batalha de Trancoso; Aljubarrota, etc., etc.

Ayala teria, no entanto, sugerido dois factos incómodos que não constariam no relato de Fernão Lopes. Após a morte do rei Fernando, o mestre de Avis teria sido o primeiro, entre os grandes de Portugal, a escrever a João de Castela para entrar no reino. Verdade ou simples calúnia, como parece mais provável pelo contexto dos acontecimentos, em nada altera a verdade dos feitos relatados e o seu encadeamento.

Um outro facto, este grave: Fernão Lopes omitira que João, mestre de Avis, fora proclamado Regedor e Defensor do Reino por seu irmão, o infante João, filho de Inês de Castro. Muitas cidades e vilas e filhos de algo usariam mesmo um pendão em que, às quinas de Portugal, se juntava a imagem do infante em cadeias.

Como se pode ver, designadamente no Livro I da chancelaria de D. João I, conservado na Torre do Tombo, as cartas do Regente começavam desta maneira: «Dom João, pela graça de Deus filho do mui nobre rei dom Pedro, mestre de cavalaria da ordem de Avis, Regedor e Defensor dos reinos de Portugal e do Algarve, a quantos esta carta virem», etc. Se alguém mente ou é menos exacto não é Fernão Lopes. Aliás, com outro pormenor e verosimilhança, o cronista português informa-nos: à morte do rei Fernando, os povos recusaram-se a aclamar Beatriz e, numas terras, exclamavam: de quem for o reino, levá-lo-á; e noutras aclamavam o infante João; filho de Inês. E que os dois partidos continuaram no movimento revolucionário, embora o mestre não fosse regente por seu irmão, mostra-o ainda o historiador nas discussões que se travaram nas cortes de Coimbra de 1385.

8. Fernão Lopes trabalha como qualquer de nós. Procura as fontes escritas, critica-as, compara-as; recolhe as fontes orais, põe-as em confronto. Só depois constrói o fio condutor e dita. No apêndice final deste volume, o relato breve dos acontecimentos revolucionários, por nós respigado na obra lopeana, vai muitas vezes acompanhado do documento comprovativo. Entre os documentos usados por Fernão Lopes, lembramos aqui, ao acaso: o instrumento de eleição do mestre de Avis em Coimbra; o perdão ao mestre, já rei, por ter casado com Filipa de Lencastre sem dispensa do papa (como mestre era frade e sujeito ao celibato, embora tivesse já dois filhos de uma madre abadessa); documentos vários dos privilégios concedidos à cidade Lisboa e transcrição até ipsis verbis do elogio que o mestre rende aos serviços prestados pela cidade; documento instituindo a Casa dos 24, de que o próprio cronista, como tabelião-geral, passa treslado a pedido dos artesãos; documentos e tratados com a Inglaterra, etc., etc. Poucos personagens, mesmo os do último plano do tal «romance histórico», poderão escapar ao registo dos documentos ainda hoje existentes. Basta consultar os já publicados...

Ora se Fernão Lopes se baseia nos documentos, se nos fala dos seus processos de trabalho, se discute connosco as fontes, se pede a nossa opinião, o mesmo não fazem os seus detractores. Alguns houve já que entraram pelo caminho da falsificação para refutar Fernão Lopes. Um tal Infortunato falsificou infortunadamente um documento para provar que o almirante Lançarote Pessanha, justiçado pelo povo de Beja, inequivocamente justiçado, teria continuado a viver para refutar Fernão Lopes...

9. O historiador serve-se de relatos anteriores e transcreve-os. Cita, designadamente, Martim Afonso de Melo, Ayala, o dr. Christophorus... Onde começa Fernão Lopes e acabam os autores em que se fundamenta?

Ayala está ai à nossa disposição. E que nos mostra? Que Fernão Lopes se situa num outro plano como historiador, e também como estilista, e também como contador de histórias. Entre Ayala e Fernão Lopes, um abismo.

Quanto ao dr. Christophorus, fonte portuguesa principal, pelo que podemos avaliar dos discursos que Fernão Lopes conserva nalguns pontos, discursos mimosos em latim, parece-nos que o doutor se aproxima já da eloquência afectada que será o enlevo de Zurara.

10. A Crónica de D. João I, como qualquer outra obra escrita, constitui um todo e este possui uma coerente estrutura interna. Os factos, os planos, as interpretações integram-se, sem contradição, no seu todo; cabem sem contradição no contexto histórico.

Companheiros do rei João, de Gil Fernandes, de Nuno Álvares ou seus filhos viviam ainda, e garantiam, no mínimo, que a interpretação dos acontecimentos correspondia à de um grupo social decisivo.

Mas só um tolo pode imaginar que episódios como os da morte de Andeiro, o pedido de perdão à rainha e tantos outros se podem inventar a seco, sem um mínimo de base testemunhal ou documental.

11. Fernão Lopes inaugura, ao menos na história de Portugal, a histórias crítica. É vulgar considerá-lo o primeiro cronista do seu tempo, colocá-lo acima de Ayala, Froissart e outros. Como historiador, coloco-o também acima de Ibne Caldune, o grande pensador islâmico de raiz hispânica.

O mérito de chamar a atenção para o Prólogo da Crónica de D. João I e para a metodologia que ele encerra, cabe a António José Saraiva. Desmontemos esse pequeno texto e vejamos as regras que Fernão Lopes se propõe.

Baseado numa citação de. Cícero: «Uma parte de nós tem a terra, outra os parentes -não somos nados a nós mesmos» (não nos nascemos), o historiador aponta que esta relação ou, ainda nas suas palavras, «esta conformidade e natural inclinação» leva o historiador ou cronista a:

– favorecer os senhores em cuja mercê e terra vive;

– a não «racontarem direitamente» os feitos de uma terra aqueles que nela foram criados.

Esta natural inclinação provém, pois, de «não nos nascermos a nós mesmos», isto é, provém de sermos um produto, um resultado em que intervêm a terra, os parentes, a «semente do tempo da geração» (as qualidades inatas, portanto), a ânsia de «fama», etc.

A tarefa do historiador é, pois, extremamente complexa, de tal modo que «todo o nosso cuidado não basta para ordenar a nua verdade» (a verdade está sujeita. a uma ordenação, a uma estrutura, diríamos nós hoje).

O seu propósito é ordenar a nua e «simples» verdade; alcançar «clara certidão de verdade», deixando «o fingido louvor, não ignorando as coisas contrárias». A verdade ordena-se, exclui a mentira e o erro, envolve as coisas contrárias, persegue-se com trabalho até «não poder haver mais certidão».

O trabalho para a certidão da verdade tem regras

a) Consciência de que a terra, o senhor em cuja mercê se vive, os, parentes, a fama, «a semente no tempo da geração» arrastam o historiador para a «aformosentada mentira».

Por isso é necessário:

b) Consultar «velhas escrituras», «públicas escrituras de muitos cartórios», «em muitos lugares», mas «escrituras vestidas de fé» (crítica documental).

c) Consultar «desvairados autores». «Viu grandes volumes de livros» de diversas linguagens e terras (esteve pelo menos em Aragão).

d) «Não certificar cousa salvo de muitos aprovada.»

e) «Antes nos calaríamos a faltar à verdade.»

f) Há que fugir da formosura e novidade das palavras, entenda-se, dos discursos verborreicos e inchados.

Por tudo o que expusemos até aqui, torna-se claro que o historiador seguiu as regras metodológicas que se propôs com tão alta consciência crítica.

Sessenta anos volvidos sobre os acontecimentos revolucionários, temperado pela revolução de 1438, Fernão Lopes manuseia as fontes escritas – Crónica Geral de Espanha, Martim Afonso de Melo, Christophorus, Ayala, etc. Consulta documentos, inscrições, escrituras. Aponta os relatos contrários. Selecciona, compara, corrige, interpreta, anima, recria, delimita os grupos, estabelece as relações. Só depois dita em voz alta, por vezes com palavras que poderiam ficar gravadas no mármore.

Não é isto história crítica?

12. Jean Froissart confessa no prólogo das suas Crónicas, que o seu objectivo é registar «em memória perpétua» «as empresas de honra, as nobres aventuras e feitos de armas» «para encorajar outros a bem fazer». Talvez o livro «não seja tão correcto e ordenado como o assunto exige» «porque os feitos de armas, que tão caro custam àqueles que os fazem, devem ser lealmente atribuídos aqueles que aí assinalaram a sua proeza».

Froissart delimita assim o campo de classe da sua história, escrita por incumbência do seu «senhor, monsenhor Robert de Namur, senhor de Beaufort»: história de enaltecimento dos feitos de armas da nobreza senhorial, história onde a arraia-miúda só tem o lugar da humilhação.

Quanto às exigências e caminhos da investigação histórica: «todas as ciências são extraídas e compiladas de vários sábios; o que um não sabe, o outro sabe; e assim não há nada que não acabe por ser sabido ou longe ou perto...» Não se alcançou ainda o limiar da história crítica; continuamos presos às glosas das glosas dos autores medievais.

Também Ayala se propõe fornecer-nos «bons exemplos». Decide-se a escrever porque «a memória dos homens é mui fraca e não se pode recordar de todas as coisas que no tempo passado aconteceram». Entende, contudo, escrever «o mais verdadeiramente que puder do que vi, no qual não entendo dizer senão verdade». Para que tal aconteça toma as suas cautelas: onde não esteve, só aceita os factos que «souber por verdadeira relação de senhores e cavaleiros e outros dignos de fé e de crer, de quem o ouvi, e me deram testemunho»...

Nem Froissart nem Ayala nem mesmo Herculano se precaveram contra a tendência de «favorecer os senhores em cuja mercê vivem». A verdade que Ayala se propõe alcançar é a verdade dos nobres e cavaleiros ou dos testemunhos que têm a sua fé.

Froissart, Ayala procuravam agradar aos senhores; Fernão Lopes tomava partido pela arraia-miúda, pela cidade burguesa, marítima e mercantil de Lisboa e ridicularizava o espírito cavaleiresco e as espadeiradas dos fidalgos: «E posto que nós louvamos» fulano e fulano... «não entendais vós que eles sós defendiam as galés sem outrem pelejar por as defender...»

O que incomoda os teus detractores, Lopes, o que incomoda?

13. Vale a pena comparar a metodologia de Fernão Lopes com a de Alexandre Herculano, o monstro sagrado dos historiadores burgueses.

No volume I da sua História de Portugal afirma o grande historiador oitocentista: o «mister da história» é averiguar qual foi a existência das gerações que passaram»; o seu fim é a verdade.

O perigo principal que ameaça o historiador vem do patriotismo, «péssimo conselheiro», e que encarnava, exteriormente, ao tempo de Herculano, naqueles «para quem os séculos legitimam e santificam todo o género de fábulas».

«Quem se ocupar da história – escreve referindo-se ao método – há-de sepultar-se nos arquivos públicos e descobrir entre milhares de pergaminhos»... «Há-de avivar as inscrições, conhecer os cartórios particulares das catedrais, dos municípios e dos mosteiros; há-de ser paleógrafo, antiquário, viajante, bibliógrafo, tudo.»

Que diferença separa Herculano de Fernão Lopes? Não se situam ambos no plano da história crítica, assente no documento recolhido, criticado?

Na época de Herculano, a história anunciava, no entanto, uma viragem de plano. Ligada às outras ciências sociais, à sociologia e, sobretudo, à economia política, começava a instrumentalizar conceitos-base, comuns a outras ciências sociais.

Essa viragem para a história social é já legível em Herculano, quer na prática dos volumes VI, VII e VIII da sua História de Portugal e nalguns Opúsculos, quer na própria teoria: «O homem, assim colocado fora de todas as relações sociais, que lhe modificaram deste ou daquele modo o aspecto moral, podendo representar todas as épocas, pertencer a todos os tempos, tomar todas as fisionomias, nada representa, a nada pertence, nenhuma fisionomia tem» (Carta IV). Herculano tem também consciência de que a história social se opõe à história-batalha; «a história começou a ser coisa mais séria e grave do que a narração exclusiva de dois casamentos, quatro enterros e seis batalhas» (Opúsculos, tomo VI, p. 250).

Fernão Lopes inaugurou a história crítica como águia solitária no céu quatrocentista, sem a dependência de Herculano quando inaugura entre nós a história social. A superioridade de Fernão Lopes liga-se, quanto a nós, ao quadrante social com que se identifica: o povo de Lisboa, a arraia-miúda. Nunca ninguém, antes ou depois dele – os mais próximos são Gil Vicente e Fernão Mendes Pinto – se acercaram tanto das raízes, das classes que tudo sofrem, que tudo afeiçoam com as suas mãos e abarcam, por isso mesmo, um mais largo horizonte. E se ambos os historiadores puderam ver com os seus próprios olhos, porque participantes de duas revoluções – a de 1438 e a de 1832-1834 – os mecanismos sociais que a revolução desmanchava e punha a nu, Fernão Lopes não perde em lucidez: não é só o patriotismo (ou a terra) que cegam o historiador; é a semente, a fama; são os parentes, os senhores em cuja mercê vivem. Além disso, os grupos sociais é que fazem a história, a qual pouco se compadece com a moralidade herculana das pessoas.

Herculano escrevia quando, no horizonte da burguesia do século XIX, se definia agora, no outro extremo social, uma classe mais perigosa do que a velha nobreza. feudal. Essa classe era a classe operária, «coveiro histórico do capitalismo». Por isso, deixou nos gavetões da história matérias incómodas, como confessou de si próprio.

14. Os sublevados de 1383 ganharam a sua causa. Se a tivessem perdido, talvez conhecêssemos tão só chaparros com enforcados, talvez ouvíssemos somente as maldições do poder.

Mas ganharam. Por isso, a Crónica de D. João I é dedicada à narrativa e exaltação da gesta revolucionária. A prosa do cronista arde por Lisboa, pelos ventres ao sol, pelo bom Portugal e, à escala humana, essa chama jamais se apagará.

Chamam-lhe «cronista» numa voz que minimiza. Fernão Lopes é cronista, no sentido de que relata os fastos, os anais, mas principalmente no sentido de repórter das massas populares em seu movimento. Milhares de gritos reúnem-se num só e tremendo brado, numa nuvem de cólera erguida para o céu.

Cronista-repórter do povo de Lisboa, dos vilões de Caspirre, dos ovelheiros, dos comunais armados de estevas aguçadas e dos seus aviamentos, dificilmente encontrará paralelo a sua arte de compor os grandes planos e encadeá-los, o seu poder quase visual de evocar os movimentos colectivos, de encarnar numa figura ou brado toda uma torrente tumultuosa.

Fernão Lopes desafia os contadores de histórias. Os breves contarelos da Crónica de D. Pedro bastavam para o imortalizar. E que dizer do romance de amor e morte entre o infante João, filho de Inês, e Dona Maria, irmã de Leonor Teles? Numa frase Fernão Lopes sugere um ambiente, modela uma figura, enovela ateia das malhas amorosas, põe ao rubro a nossa emoção na chama de belíssimas imagens e vocábulos.

Que dizer do pensador, do filósofo? Mas não escreveu trabalhos teológico-filosóficos... Leitor de Aristóteles e de Cícero, exprime na sua obra uma nova concepção do mundo. No campo específico da criação filosófica, bastariam os Prólogos das Crónicas de D. Pedro e D. João I para o erguerem e individualizarem.

Em estatura, o historiador é, entre nós, o primeiro. Inaugura, de facto e em consciência, a história crítica, a história assente na metodologia científica moderna. A sua Crónica de D. João I continua como a obra, mais apaixonante de toda a cultura portuguesa.

Na sua filosofia da história, assinale-se:

A evolução dos grupos humanos não é um movimento anárquico e cego ou, como pretende Herculano, a materialização de um plano divino em que os motores são a liberdade e a desigualdade. Percorre a história todo um fio explicativo. São os homens, embora condicionados, que fazem a história.

O dinheiro é o nervo de todo o negócio. Quando um país é rico, o rei é rico. A atenção dispensada ao económico, designadamente a defesa da acumulação de tesouros e capital identificam a sua classe. E que dizer das páginas de táctica militar revolucionária?

Mas o mais espantoso é o prumo social com que, a par e passo, vai aferindo os acontecimentos colectivos. O historiador sente e sabe que há diferentes e antagónicos grupos sociais que surgem como os autores da sua história revolucionária. Continuamente nos informa: aqui intervêm os honrados, os melhores, ali nem são dos maiores nem dos mais pequenos; acolá é a arraia-miúda, os comunais; Álvaro Pais age com os seus aliados. Evidentemente, esta anotação situa-se ainda a um nível empírico. Nem poderia ser de outro modo.

Esta agudeza na visão da realidade social leva-o a escrever repetidamente que a revolução de 1383 inaugurou uma nova era, uma sétima idade. Alguns historiadores contemporâneos continuam a interpretar esta afirmação como sugestiva imagem literária. O horizonte de classe destes tais não lhes permite ver para além da, ponta do seu nariz conservado e conservador.

Vilão, isto é, homem de vila, isto é, povo, vilão até ao tutano. Pretender encontrar na sua obra um sentimento de oposição à burguesia é não compreender os seus escritos, é errar o seu papel na história da cultura, é não acertar com as estruturas sociais em que se integra. Como escritor dos vilões e, portanto, também do seu estrato dirigente, a burguesia (a do comércio, a dos mesteres, a da pesca, a agrícola), Fernão Lopes personifica a ascensão desta classe na sociedade portuguesa e europeia.

(...)


(1) Documentos do Arquivo Histórica da Câmara Municipal de Lisboa, vol. I, p. 76.
(2) Monumenta Henricina, vol. III.
(3) Coleccion de Ias Cronicas de Castilla, t. II, apêndice.
(4) Coleccion de tas Cronicas de Castilla, t. II, p. 230.

Fonte:
António Borges Coelho,
A Revolução de 1383,
Lisboa, Seara Nova, «Seara Nova, 20», 1975,
(1.ª Ed., 1965)
páginas 11 a 26.

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