A Revolução de 1383 - 1385 segundo Álvaro Cunhal.
II O AMADURECIMENTO DA CRISE As modificações da base económica da sociedade portuguesa nos séculos XIII e XIV tiveram como resultado novos conflitos de classes, que se agudizaram extraordinariamente nos fins do século XIV. A luta entre nobres e burgueses entra então numa fase aguda; os burgueses alcançam decisivas vitórias parciais, equilibram-se as forças e criam-se condições objectivas e subjectivas para que a burguesia passe à luta aberta e armada pela conquista do poder. Tal será a revolução de 1383. Agudização
da luta de classes na 1.ª Dinastia A história da nação
portuguesa nos primeiros séculos da sua existência como estado independente
constitui uma evidente confirmação da ideia de Marx e EngeIs segundo a qual «toda
a história passada foi a história das lutas de classes e estas classes em
luta são sempre o produto dos modos de produção e de troca, numa palavra,
das condições económicas do seu tempo». Quais as
transformações fundamentais que se verificaram durante a 1.ª Dinastia no
modo de produção e de troca? Conforme foi dito, a servidão da gleba deu
lugar à pequena produção, à economia mercantil simples, e a desintegração
desta, com a compulsão ao trabalho e a expropriação dos pequenos
cultivadores, à produção com base no trabalho assalariado. A produção
mercantil impulsionou o comércio interno e externo e o desenvolvimento do
comércio impulsionou por sua vez a produção mercantil e a desintegração
da pequena produção. Estas alterações, representando o declínio do
sistema senhorial e a transformação da propriedade feudal, ou seja, das
relações de produção feudais, determinaram o aparecimento de novas
classes e de novos conflitos. Nos campos, aos servos da gleba substituem-se
os pequenos produtores, originando a formação de uma classe de camponeses
ricos (a que chamamos burguesia rural) e uma classe de camponeses sem terra,
antepassados dos proletários modernos. Nas cidades, multiplicam-se os artesãos
e fortalece-se uma burguesia comerciante, dedicada especialmente ao comércio
marítimo, dispondo de importantes recursos financeiros e com um papel de
primeira grandeza em toda a vida económica do país. Quais os
conflitos de classes que aqui se originaram e se tornaram os conflitos
fundamentais nos séculos XIII e XIV? O primeiro grande
conflito de classes nos séculos XIII e XIV opôs os camponeses em geral à
nobreza latifundiária. Este conflito,
embora existente também em. terras sem organização municipal, tomou o
aspecto essencial da luta entre os concelhos e as classes privilegiadas. Na
verdade, como nota Gama Barros, as cartas constitutivas dos concelhos
(forais) tinham «por fim principal fixar as relações dos municípios para
com o senhor da terra», isto é, o que os homens dos concelhos deviam pagar
e o que os senhores deviam receber. O rei, os nobres, os bispos, as Ordens
militares, todos concediam forais. Os camponeses dos concelhos,
independentemente das relações de produção existentes entre si, eram
tributários dos grandes senhores da terra. Daqui o conflito principal de
toda a Idade Média portuguesa. (...) O segundo grande
conflito de classes nos séculos XIII e XIV opôs os vilãos mais abastados e
os grandes senhores aos pequenos cultivadores e camponeses sem terra. Como já se
disse, este conflito manifestou-se em medidas de compulsão ao trabalho
assoldadado e de fixação de salários e de novas condições de trabalho. Já
no século XIII ele surge em vários documentos. É porém no século XIV que
se agudiza extraordinariamente. A célebre circular de 3 de Janeiro de 1349
(Afonso IV) que constitui uma violenta ofensiva contra os trabalhadores,
revela toda a gravidade da situação. Segundo esta circular, deviam tomar-se
as seguintes medidas. Primeira: arrolamento, elaborado por dois homens-bons
em cada freguesia, dos indivíduos obrigados a trabalhar por conta alheia.
Segunda: fixação (também pelos homens-bons) do preço da força de
trabalho (taxas). Terceira: sanções penais (multas, açoites, prisão,
degredo) para quem desrespeitasse as taxas. Quarta: obrigatoriedade de o
criado trabalhar todo o ano para o senhor, se este necessitasse dos seus
serviços além do contrato. Quinta: perseguição aos mendigos e vadios, com
compulsão ao trabalho e castigos corporais aos prevaricadores.
Toda a evolução
económica da época e o conjunto dos factos conhecidos mostram que o
conflito vinha muito de trás e que esta agudização da luta se deve ao
desenvolvimento da produção mercantil e à desintegração da pequena produção.
Todavia, tendo em conta a data da circular (um ano após a «Peste grande»)
e dado o facto de ela referir que alguns dos que se recusam a trabalhar por
conta alheia o fazem porque «cobraram alguns bens por morte de algumas
pessoas» (e dado talvez também o facto de haver quem tenha atribuído a
revolta camponesa na Inglaterra em 1381 à «Black Death»), já o escritor
reformista António Sérgio procurou concluir que o conflito se originara nas
mortandades da peste... «Como
sempre acontece (escreve) competia uma forte proporção de vítimas à
camada paupérrima da sociedade: e à diminuição do número de
servidores, promanada da falta dos que morreram, juntou-se a oriunda dos
enriquecidos pela confluência de heranças que lhes couberam e que por isso
abandonavam a condição servil. O leitor de agora, conhecedor, da lei
que relaciona os preços com a intensidade da oferta e da procura, prevê
facilmente o que veio a dar-se: uma revolução dos salários.
Faltavam obreiros para o trafegar das glebas e fugia-se a servir pela paga
antiga. De aí se origina o conflito económico entre a classe dos
empregadores e a dos jornaleiros» ... «A circular que aos concelhos D.
Afonso IV enviou é um nítido testemunho desse rebentar da luta,
desse início», etc... (sublinhados nossos, A.C.) (1). António Sérgio, incapaz de compreender o processo de evolução social, procura assim num facto acidental (a peste) as causas do fenómeno intimamente ligado à transformação da propriedade feudal nos séculos XIII e XIV. A. Sérgio falha ao considerar que a entrada em vigor das taxas de salários, destinada a resolver o conflito entre «empregadores» e assalariados, está ligada às calamidades da peste de 1348, quando tal situação se vinha arrastando há cerca de um século (lei de 26 de Dezembro de 1253). A. Sérgio falha de novo ao ver como razão do «início» do conflito uma diminuição do número de assalariadas provocada pela mortandade da peste; nos séculos XIII e XIV o número de assalariados não pára de crescer, em virtude da libertação da servidão da gleba e da desintegração da pequena produção e, no entanto, não cessam também, até ao século XV, as referências à falta de assalariados (Cortes de 1361, 1391, 1395, 1408, 1416, etc.). A. Sérgio falha ainda ao tomar à letra a afirmação da circular acerca do enriquecimento dos assalariados pelas heranças recebidas; nem é de admitir o enriquecimento daqueles que o próprio A. Sérgio, duas linhas antes, chama «a camada paupérrima da sociedade» e, duas linhas depois, «de condição servil», nem o argumento é válido quando é corrente as Cortes do século XIV e muitos outros documentos (que as mais das vezes não são contemporâneos das pestes mortíferas), reflectindo a mentira e hipocrisia das classes exploradoras (em termos de que podemos encontrar eco em documentos dos nossos dias), citarem exigências de salários de valor superior ao serviço, e uma vida lauta dos camponeses sem terra (1371), e o «prejuízo» dos senhores ao pagarem altas jornas (1394), e o « enriquecimento » dos criados e a « pobreza» dos amos (1416), etc... A peste de 1348, como outras, pode ter momentaneamente agravado a situação. Porém, só a «ciência» histórica burguesa seria capaz de encontrar nela a causa essencial do estabelecimento de novas relações de produção e do antagonismo e luta de classes. (...) O terceiro grande conflito de classes nos séculos XIII e XIV opôs os comerciantes e artesãos às classes privilegiadas (nobreza e clero). A divergência de interesses em que assentava este conflito manifestava-se de várias formas. Observem-se, em primeiro lugar, os múltiplos gravames de natureza económica postos pela nobreza fundiária (incluindo o alto clero) à deslocação dos comerciantes e ao exercício da sua actividade. Os grandes senhores das terras obrigavam os comerciantes que circulavam pelo seu território a seguir determinado percurso e impunham-lhes pesados tributos, como portagens, peagens e direitos de entrada. A segunda razão do conflito são as violências e rapinas exercidas pelos senhores feudais sobre os comerciantes, seja obrigando-os a vender-lhes as mercadorias por preços que eles próprios impunham, seja assaltando-os à mão armada e roubando-lhes quanto levassem. A insegurança do trânsito era tal que os forais asseguravam expressamente protecção aos comerciantes no território concelhio; mais ainda, uma lei de Março de 1261 autoriza os mercadores a andarem armados «per caminho per defenderem seu aver». A terceira causa do conflito reside no monopólio dos senhores feudais da compra ou venda da produção agrícola nas terras do seu senhorio, o que directamente dificultava e agravava a actividade mercantil. Em quarto lugar, sobretudo a partir da segunda metade do século XIV, os comerciantes entram em concorrência directa com os nobres e o clero. Com efeito, embora a lei proibisse expressamente as classes privilegiadas de comerciar, embora todo o nobre ou cavaleiro que exercesse o tráfico de mercador fosse considerado desonrado, os senhores especulavam com os géneros comprados aos comerciantes pelos preços taxados na almotaçaria e o rei, a rainha, os mestres das Ordens, os bispos, os clérigos, o conde, os cavaleiros, os almoxarifes, os contadores, os escrivãos, os corregedores, todos compravam para vender e todos se faziam mercadores e regatões (Cortes de 1371 e 1372) . Nas lutas contra os obstáculos postos directa ou indirectamente à actividade comercial pelos senhores feudais e o seu Estado, lutas essas que iam desde reclamações respeitosas a violentas revoltas, os comerciantes tinham o apoio dos artesãos, igualmente interessados no desenvolvimento do comércio e dos centros urbanos. Toda a história da primeira dinastia, com a centralização progressiva do poder nas mãos da realeza, é um testemunho gritante destes conflitos de classes. Todas as acções dos reis contra o clero e a nobreza, ou seja, todas as medidas que os governos tiveram de tomar contra os senhores feudais, por muito que historiadores burgueses tão bem documentados como Herculano procurem atribuí-los a incidentes secundários ou pessoais, documentam a pressão progressiva da burguesia sobre o poder central. Contra os privilégios feudais, as arbitrariedades, violências, extorsões e crimes dos grandes senhores, os burgueses, aproveitando-se das divergências de interesses entre os senhores feudais (e particularmente entre o maior deles, o rei, e os restantes), souberam forçar o poder central a limitar as prerrogativas das classes privilegiadas, souberam fortalecer a autoridade do rei e torná-lo (segundo as próprias palavras dos burgueses do século XIV) «o maior da justiça». Foram assim os obreiros de um poder centralizado. Quanto mais independente se mostra o rei em relação à nobreza e ao clero, mais ele acusa a pressão das classes dominadas, e nomeadamente da burguesia urbana e rural, na sua luta contra a aristocracia. Esta é a verdade da tão falada «monarquia popular» e da não menos falada «aliança entre a Coroa e o povo». Quando Antero de Quental, num texto muito
conhecido, afirmava que na Idade Média peninsular; «nobres e populares
uniam-se por interesses e sentimentos e diante deles a coroa dos reis era
mais um símbolo brilhante do que uma realidade poderosa», ou quando um ano
mais tarde insistia em que « a aristocracia, durante séculos, não esmagou
nem sufocou o espírito das populações inferiores, nem entre nós nem em
parte alguma», antes «as civilizou», negava toda a história e toda a
evolução, em palavras que não têm outro mérito que não o de acentuar a
impotência ideológica do reformismo. Ao contrário do que afirmava Antero
de Quental, toda a história portuguesa da primeira dinastia é claramente
dominada e determinada pelos conflitos de classes e particularmente por
aqueles que opunham a burguesia à nobreza. É a agudização dos múltiplos conflitos de classes e a ascensão da burguesia que conduzem a sociedade portuguesa a uma crise revolucionária em fins do século XIV. Organizada fortemente nos concelhos, possuidora de grande poder económico e de maior poder financeiro que a própria nobreza, a burguesia comerciante, assim como a burguesia rural aliada aos artesãos e camponeses, pôde conseguir pela luta a satisfação de algumas das suas reclamações fundamentais e pôde finalmente opor-se decididamente à ordem feudal e reclamar uma participação directa no governo. (...) III A
REVOLUÇÃO DE 1383 A
insurreição burguesa de 1383, acompanhada por amplas e profundas revoltas
camponesas e «proletárias» que abalaram de alto a baixo a sociedade
portuguesa, não triunfou apenas sobre a nobreza do país. Teve também de
vencer a intervenção reaccionária castelhana, preparada e provocada por
aquela. A revolução burguesa identificou-se com uma luta nacional pela
independência. A vitória da nação portuguesa foi assim uma grande vitória
das forças progressivas sobre as forças reaccionárias de Portugal e
Espanha. A
revolução burguesa, luta nacional Os
historiadores burgueses têm apresentado sempre o casamento da filha única
de D. Fernando com o rei de Castela, em 1383, como «erro» de um rei
inconstante e imprevidente. A verdade é ter sido tal casamento uma manobra
política da nobreza, manobra maduramente reflectida e de efeitos
cuidadosamente previstos e desejados. Que não foi insensatez de um rei no
leito de morte prova-o o facto de, já em 1376 e 1380, ter estado à beira de
realizar-se o casamento da mesma infanta com príncipes castelhanos e de já
então se prever explicitamente a sucessão de rei castelhano no trono de
Portugal. Sentindo
o terreno a fugir-lhe debaixo dos pés, incapaz de suster com os seus
recursos próprios o movimento revolucionário ascendente, a nobreza procura
deliberadamente a entrada em acção contra .a revolução ascendente, do
aparelho militar da aristocracia territorial de além fronteiras. Nessa sua
política, a. nobreza de então seguiu o caminho que sempre têm seguido as
classes dominantes, quando sentem em perigo a sua existência. Ante
a ameaça de serem desapossadas dos seus privilégios as classes parasitárias
preferiram sempre; a uma vitória das forças nacionais progressivas, a
dominação do seu país por um estado estrangeiro que abafe a revolução e
lhes mantenha esses privilégios. Política de traição nacional - tal foi
no século XIV a política da nobreza territorial contra o movimento
revolucionário ascendente da burguesia, como hoje o é a política da
burguesia monopolista contra o movimento ascendente do proletariado. O
recurso da nobreza a um estado estrangeiro foi porém demasiado tardio. A
crise revolucionária amadurecera., Quando, pela morte de D. Fernando, os
nobres e seus lacaios aclamaram o rei castelhano casado com a infanta, a
insurreição contra a aristocracia precipita-se, identificando-se com a luta
pela independência da nação. Enquanto os nobres aclamam Castela, a
burguesia, os artesãos e os camponeses aclamam Portugal. Então como sempre,
os patriotas dedicados foram os combatentes revolucionários e a traição ao
país encontrou-se nas forças da reacção. A insurreição burguesa, aliada
a extensos e violentos levantamentos camponeses, tomou assim; desde a
primeira hora, uma orientação política geral, polarizando as aspirações
da população laboriosa no objectivo da -defesa da independência contra um
estado estrangeiro e contra a classe que de Portugal (a nobreza) provocara
deliberadamente a sua intervenção. A luta pela independência não foi mais
que um aspecto revestido pela revolução burguesa, dado o recurso da
aristocracia ao auxílio estrangeiro. Por isso mesmo, a defesa vitoriosa da
independência é o melhor certificado da vitória interna da burguesia
contra a aristocracia reaccionária. Ocultando
o carácter de classe do movimento revolucionário e insurreccional dos fins
do século XIV, os historiadores burgueses têm-se esforçado
sistematicamente por apresentá-lo como uma luta comum de todas as camadas da
população. É tão grosseiro apresentar uma época de crise e de luta
armada entre classes como um momento de particular colaboração e harmonia
entre elas, que a mistificação dos historiadores burgueses !se torna clara
por si só. É no entanto útil examinarmos mais de perto as suas «explicações»,
porque assim se evidenciam as limitações da «ciência» histórica
burguesa em geral e as falsificações dos «historiadores» fascistas em
particular. O
liberal Jaime Cortesão, embora aceitando que a revolução de 1383 foi «uma
revolução social»,. afirma que ela «se apresenta como... o resultado da
colaboração, ainda que em proporções diferentes, de todas as classes»
(2) pois «todas as classes, ainda que em diferentes graus, estavam
interessadas no género de vida nacional» (3). Jaime Cortesão confunde
assim) a participação individual dos membros de uma classe na revolução
de outra classe com a natureza de classe de uma revolução. Em todas as épocas
de crise revolucionária há um sector das classes dominantes
(particularmente entre os mais esclarecidos e os mais jovens) que toma o
partido das classes revolucionárias, isto é, que toma partido contra a sua
própria classe de origem. Tais atitudes individuais em nada modificam o carácter
de classe da revolução, ou seja, em nada se altera o facto de haver classes
que a fazem e outras que defendem contra. ela os, seus privilégios. É tão
absurdo concluir da participação de nobres na revolução burguesa de 1383
que esta foi o resultado: da colaboração, ainda que em proporções
diferentes, de todas as classes, como seria absurdo concluir da participação
de filhos das classes burguesas nas revoluções proletárias modernas que
estas são o -produto da colaboração
de todas as classes, incluindo a dos capitalistas e dos grandes senhores da
terra... A revolução de 1383, identificada com a luta nacional pela
independência, dirigiu-se directa, clara e inequivocamente contra a nobreza
territorial. Nessa luta nacional, a nobreza como classe colaborou, não com
as forças populares e nacionais - com a burguesia, com os artesãos, com os
camponeses, que contra ela se levantaram - mas sim, com o estado estrangeiro,
cuja intervenção deliberadamente provocara. A
burguesia do nosso tempo, como classe dominante e decadente, como classe
privilegiada ameaçada por um movimento revolucionário das massas
trabalhadoras, rejeita as tradições revolucionárias dos burgueses do século
XIV e torna-se a herdeira das tradições dos nobres traidores de então.
Hoje o herdeiro das tradições revolucionárias da burguesia não é a
burguesia mas o proletariado. A burguesia representa nos nossos dias o que a
nobreza representava nessa época: a classe dominante, exploradora e parasitária,
capaz de vender a independência do país em troca de um auxílio estrangeiro
para se manter no poder. Daqui resultam os esforços desesperados dos
historiadores burgueses reaccionários para ocultar o verdadeiro papel da
nobreza face à revolução e à luta nacional dos fins do século XIV. Os
«historiadores» fascistas, com o propósito claro, não de esclarecer os
factos históricos, mas de fabricar para esses factos «explicações» que
melhor sirvam os interesses da camarilha governante e o seu domínio, perdem
qualquer espécie de pudor e entram no caminho da pura mistificação. O
professor universitário coimbrão Torquato de Sousa Soares apresenta nos
seguintes termos a posição da nobreza na revolução de 1383: «Naturalmente a nobreza territorial, mais exposta às delapidações da guerra e às represálias de um inimigo poderoso, reagiu com mais dificuldade, mas nem por isso se pode afirmar que se alheou do movimento.» (4)
E,
noutro escrito, repete as palavras de Jaime Cortesão, sem citar a sua procedência,
como convém à desonestidade de um fascista: «A vitória resultou da colaboração de todas as classes.»
Como
se vê, segundo o sr. Soares, a nobreza teria sido a vítima «mais exposta»
e mais directa dos intervencionistas castelhanos. É fantástico que se diga
isto mas, como vemos, há um professor universitário que se atreve a dizê-lo,
acrescentando que, como era para a nobreza mais perigoso lutar contra o
inimigo, teria reagido com mais dificuldade (naturalmente!). Apesar de estar
assim particularmente exposta ao inimigo, não se teria alheado da
luta, antes teria acabado por combater contra os castelhanos. Desta forma, o
sr. Soares, de uma penada, faz do criminoso a vítima e adúltera, sem
qualquer escrúpulo, todos os factos históricos conhecidos. A
verdade é que, tendo sido a nobreza que provocou a intervenção e invasão
castelhana, casando Beatriz com o rei castelhano, apoiando a regência de
Leonor Teles, solicitando directamente a invasão armada, ela não se alheara
(naturalmente!) do movimento. Desde a primeira hora tomou (naturalmente)
a defesa da causa de Castela, que era a sua própria causa, resistindo com fúria
à revolução popular e nacional e passando-se, com armas, bagagens e... os
castelos que pôde defender, para o campo do exército castelhano invasor. É
esta a verdade. Mas
o sr. Soares, vai ainda mais longe. Desejoso de filiar ó ideário fascista
nos acontecimentos capitais da nossa história, vê em 1383, não uma luta
contra o poder da aristocracia latifundiária, mas precisamente o invés: uma
luta pelo fortalecimento desse poder, dada a sua visível fraqueza. Ouçamo-lo: «Apesar de parecer, em dado momento, uma revolta de pobres contra ricos, de plebeus contra nobres, não é afinal senão a reacção contra a crise do poder central, que a regência de Leonor Teles, com a perspectiva da subordinação a Castela, tornaria insanável sem uma intervenção violenta. Portanto, luta pelo robustecimento da autoridade na base tradicional da organização do poder, isto é, na base de um poder monárquico autónomo em face. da nação, para melhor a poder conduzir e servir.» (5)
1383
foi uma revolução; o sr. Soares diz: foi uma reacção. 1383 foi a luta da
burguesia pela conquista do poder; o sr. Soares diz: foi o fortalecimento do
poder existente, na sua base tradicional. Em 1383 verificou-se a designação
revolucionária de -um monarca pela burguesia e contra o desejo da nobreza; o
sr. Soares diz: verificou-se a continuação e fortalecimento do poder monárquico.
autónomo. É assim que os fascistas fabricam a história. Apresentando
a grande luta nacional do século XIV como uma luta de todas as classes
contra o estrangeiro, os historiadores burgueses dos nossos dias deturpam e
escondem o seu carácter essencial: que essa luta 'nacional foi ao mesmo
tempo e fundamentalmente uma revolução de classes da sociedade' contra
outras classes, uma revolução da burguesia e seus aliados contra a nobreza
territorial. A
relação das forças de classe Mostrado
o erro dos historiadores burgueses ao pretenderem que a luta nacional dos
fins do século XIV foi obra da colaboração de todas as classes e mostrado
que essa luta nacional foi um dos aspectos de uma revolução social, deve
considerar-se a posição e participação das várias classes na revolução. O
testemunho do genial escritor que foi Fernão Lopes não deixa qualquer
margem a dúvidas de que a revolução de 1383 foi uma revolução
profundamente popular que abarcou o país inteiro em levantamentos
insurreccionais contra a .ordem feudal. Fernão Lopes conta, numa linguagem
viva que traz os acontecimentos até aos nossos dias, como o «povo miúdo»
se ergueu para a luta, vencendo os treinados e orgulhosos militares
aristocratas e tomando e fazendo ruir muitos dos seus castelos. Descreve-nos
como, à revolução dos burgueses de Lisboa e Porto, conduzidos por
aguerridos homens dos mesteres, responderam por todo o país os homens bons e
os camponeses sem terra. O honrado testemunho de Fernão Lopes é uma
contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução
e da posição das diversas classes sociais em 1383. A
revolução de 1383 confirma o ensinamento de Marx e Engels, segundo o qual
«no pano de fundo da luta entre burgueses citadinos e nobreza feudal aparece
o camponês rebelde e atrás dos camponeses os rudimentos revolucionários do
proletariado moderno». E confirma ainda outro ensinamento dos grandes
mestres do comunismo segundo o qual «em todos os grandes movimentos
burgueses houve explosões independentes da classe que era a precursora, mais
ou menos desenvolvida, do moderno proletariado». Em 1383 encontramos, como
pano de fundo da luta dos comerciantes e artesãos contra a nobreza, os
camponeses rebeldes, os homens-bons e, por detrás destes, os trabalhadores
assalariados livres, trabalhadores sem terra e sem senhor, que Fernão Lopes
imortalizou com o nome de «ventres ao sol». Lá encontramos as «explosões
independentes» dos precursores do proletariado moderno, das quais nos ficou
como documento mais circunstanciado a insurreição de Évora, dirigida por
Gonçalves Eanes, cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate. (...) O
papel das várias classes na insurreição dos campos não é tão evidente e
por isso António Sérgio pôde defender que a burguesia rural (os
homens-bons), longe de participar na revolução, combateu contra ela e foi
por ela combatida. «A revolução dirigida pelos comerciantes dos portos
contra a hegemonia política da fidalguia» teria sido apoiada por «um
conflito social-económico (o da classe dos operários com a dos homens-bons
dos concelhos que alinhavam ao lado dos aristocratas)» (6). O que há
aqui de fundamental é a posição atribuída à burguesia rural, aos
homens-bons. Em que se baseia a opinião de A. Sérgio? Ela assenta
exclusivamente numa passagem de Fernão Lopes em que este diz que a revolução
era dirigida pelos «meúdos» «contra os melhores e mais honrados que havia
nos lugares» (7). A. Sérgio afirma que esta expressão «os melhores e mais
honrados» é sinónima de «classe média» ou «homens-bons», que a
expressão «meúdos» é sinónima de «operários» e conclui triunfalmente
sobre a posição das várias classes na revolução. Ora esta conclusão é
demasiado precipitada. Deve
sublinhar-se, em primeiro lugar, que a expressão « os melhores e mais
honrados» é utilizada por Fernão Lopes, em numerosas passagens das suas crónicas,
para significar não a «classe média», não os vilãos ricos (como supõe
sem hesitação ou dúvida A. Sérgio) mas... os nobres; e a expressão «os
meúdos» ou «povo meúdo» é utilizada também em numerosas passagens não
para designar «as gentes operárias» (como supõe sem hesitação ou dúvida
A. Sérgio) mas para designar precisamente os ...homens-bons. E isto invalida
por si só a interpretação de A. Sérgio. Deve
sublinhar-se, em segundo lugar, que, noutra passagem muito mais clara, Fernão
Lopes aponta, como relação das forças de classe na revolução, de um
lado, o lado de Castela, « os ricos e poderosos, assim alcaides de castelos
como outros fidalgos» e do outro, do lado da revolução e de Portugal, «os
povos todos» (8) . E isto acaba por atirar por terra a interpretação de A.
Sérgio, dando novas e boas razões para dar à passagem por ele citada
precisamente o sentido contrário do que ele lhe atribui. (...) A
luta e a vitória A
vitória não se decidiu definitivamente na insurreição de 1383. A intervenção
militar de Castela, preparada, solicitada e provocada pela nobreza, deu à
guerra civil o carácter de uma luta patriótica contra os invasores
estrangeiros e pela independência nacional. Essa intervenção, invocando a
legítima sucessão ao trono, complicou extraordinariamente os problemas políticos
e militares que se colocavam perante a burguesia, designadamente: primeiro, o
de encontrar uma justificação jurídica para a insurreição e para a
consequente quebra dos tradicionais direitos da monarquia; e, segundo, o de
organizar os seus exércitos e conduzir a sua táctica nas novas condições
criadas pela insurreição popular e pela intervenção estrangeira. Coube
a João das Regras encontrar e expor nas Cortes de Coimbra de 1385 uma base
jurídica em que assentasse a sucessão do Mestre de Avis a D. Fernando. São
célebres os seus argumentos, excluindo um a um os possíveis pretendentes ao
trono e concluindo pela legitimidade de D. João. É, no entanto, evidente
que não foram os argumentos de João das Regras que decidiram a questão dinástica.
Todas as grandes revoluções sabem encontrar uma legitimação jurídica,
pois o direito nasce da sociedade e a sociedade da acção dos homens. Assim
sucedeu também em 1383. Nas
Cortes de 1385, pela sua composição - representação de cerca de cinquenta
concelhos com ampla participação das classes populares e posição favorável
ao Mestre, com compromisso anterior na actuação prática, da maioria dos
representantes da nobreza - estava de antemão resolvido que D. João seria
rei e não o castelhano, nem qualquer dos possíveis pretendentes que ao lado
do castelhano combatiam. Seria um absurdo histórico que o novo regime,
surgido da insurreição, com dois anos de vida, em guerra vitoriosa com
Castela, preparasse e convocasse umas Cortes para aí ver aprovado o triunfo
do inimigo. Se os argumentos de João das Regras não tivessem sido aceites
pelos nobres legitimistas, os senhores do novo regime teriam acabado por
seguir o oferecimento de Nun'Alvares: despachar o Mestre de seu estorvo... A
justificação jurídica teve o mérito de alargar o campo dos que apoiavam a
revolução burguesa e de arrancar ao inimigo a bandeira da legalidade, do
direito e da tradição. As
Cortes de 1385 foram, na sua época, um parlamento revolucionário, surgindo
por um momento na história portuguesa como expressão de uma vontade
nacional soberana. Não bastou a justificação jurídica de João das Regras
para investir o Mestre nos poderes da realeza. As Cortes afirmam
expressamente que nomeiam e escolhem D. João para rei e senhor e outorgam
que se chame rei. As
decisões das Cortes de 1385 marcam, na sua multiplicidade e autoridade, a
decisiva influência burguesa na direcção da política central. São as
Cortes que nomeiam o Conselho do rei, impondo uma maioria burguesa: quatro
letrados e quatro representantes dos concelhos, num total de catorze membros.
Elas decidem a sua própria convocação anual. Estabelecem que nem sisas nem
questões de paz ou de guerra possam assentar-se sem sua expressa deliberação.
Comprometem-se a obter e dar ao rei 400 000 libras para despesas de guerra.
E, numa grande série de questões económicas, políticas, administrativas,
dão satisfação às reclamações burguesas atingem gravemente os privilégios
da reza e do clero. As Cortes de 1385, embora realizadas já depois do
esmagamento dos focos de rebelião camponesa e proletária, são, pelas suas
resoluções, uma prova do carácter de classe da revolução e do retumbante
triunfo da burguesia. Uma
das preocupações das Cortes foi assegurar, pelas suas medidas, a continuação
vitoriosa da guerra. Tal guerra era justamente compreendida como uma causa
que interessava às classes populares e particularmente à burguesia. E, na
verdade, pela sua natureza de guerra nacional contra a nobreza e seus
associados castelhanos e pelas novas soluções tácticas encontradas no
terreno militar, tal guerra era bem uma guerra revolucionária da burguesia. O
próprio facto da insurreição alterou o panorama militar do país. A
insurreição foi o embate entre as massas populares e as forças militares
organizadas, na sua esmagadora maioria contra-revolucionárias. Desse embate
saíram vitoriosas as massas populares. Frente aos castelos, «os povos meúdos
(conforma conta o cronista) mal armados e sem capitães, com os ventres ao
sol, antes do meio-dia os pilhavam por força». E os aristocratas, militares
profissionais, foram vencidos pelos vilãos insurrectos. Vencida a nobreza na
insurreição, mas não ainda batida na guerra de intervenção de Castela
que provocara, o novo Estado português deixou de contar com a cavalaria como
força fundamental do seu exército. Doravante, na guerra contra Castela,
defrontar-se-ão sempre e sistematicamente, a cavalaria castelhana contra a
infantaria dos portugueses, mostrando-se assim, no próprio terreno militar,
que a guerra não era senão uma nova fase da luta dos burgueses contra os
aristocratas. Em
Portugal, como em outros países, o aperfeiçoamento da arma de infantaria
foi um produto das necessidades de a burguesia ascendente fazer frente, no
campo da luta armada, às forças do Estado feudal, à cavalaria aristocrática.
Já em 1302, na célebre batalha de Courtrai, a cavalaria de Filipe-o-Belo
conheceu duramente os méritos da infantaria municipal. E em Azincourt
(1415), os senhores feudais franceses virão a sentir na carne a nova táctica
burguesa posta em prática pelos guerreiros de Inglaterra. Em Portugal, o
desenvolvimento das forças militares da burguesia acompanhou o
desenvolvimento da sua importância económica e da sua luta contra a ordem
feudal. Nos princípios do século XIII, na batalha de Navas, já se mostrou
o valor da pionagem dos nossos concelhos. A importância dos besteiros nas
forças armadas portuguesas, quando se verificava que, em vários países, os
senhores feudais restringiam ou dissolviam os corpos de besteiros, dava um
papel crescente ao elemento popular, designadamente aos mesteirais, criando
condições favoráveis para o embate contra a cavalaria aristocrática que
se veio a dar na revolução do fim do século XIV. A
táctica militar «pé terra» não foi pois uma descoberta de generais
nobres, mas uma criação espontânea das massas populares e seus dirigentes,
resultante da própria evolução dos acontecimentos históricos e da
natureza de classe da revolução e da guerra. A
composição de classe das forças militares portuguesas ficou
imperecivelmente registada na crónica de Fernão Lopes. O inimigo derrotado
não viu na sua frente, como vencedores, essa tão cantada Ala dos Namorados.
Sentiu bem ter sido derrotado pelos vilãos. Lamenta-se pela derrota e, mais
do que pela derrota, pelo facto de os triunfadores terem sido, não nobres e
cavaleiros, mas «chamorros», vivendo em tão pobres casas e em tão pobres
aldeias que os guerreiros fidalgos de Espanha se fazem perfumar para perderem
os maus cheiros... Em
Aljubarrota, enquanto nas hostes castelhanas predominava a cavalaria
(falou-se em 20 000 cavaleiros em 30 000 combatentes), nas hostes portuguesas
predominava a infantaria (2000 lanças, 800 besteiros, 4000 peões). Tanto
pela composição das forças em presença como pelo desenrolar da luta,
segundo os relatos que nos ficaram, se pode dizer com justiça que
Aljubarrota foi uma vitória da infantaria burguesa contra a cavalaria
aristocrática, foi não a batalha de uma nação contra outra nação, mas a
batalha dos burgueses revolucionários de Portugal contra a nobreza reaccionária
de Portugal e Castela. O carácter de luta pela independência racional,
originado pela intervenção castelhana na revolução portuguesa dá a esta
batalha um significado muito particular para a nação portuguesa. Há porém
razões para que seja celebrada actualmente por todas as forças progressivas
e em particular pelo proletariado. Aljubarrota é um dos pontos culminantes
da luta de classes na Península e um triunfo das forças progressivas contra
as forças reaccionárias. (1) António Sérgio, Prefácio à Crónica de D. João I de Fernão Lopes, p. XIV.. (2)
Jaime Cortesão, História do Regime Republicano em Portugal, fasc. 3,
Lisboa, 1930, p. 85. (3)
Ibidem, p. 93. (4)
T. Sousa Soares, in Gama Barros História da Administração Pública em
Portugal, t. V, p. 401. Obs. LX. (5)
T. Sousa Soares, idem, t. III, pp. 369-370, obs. LVIII.. (6)
António Sérgio, Prefácio à Crónica de D. João I, ed. cit., p.
XII. (7)
Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. XLVI. (8)
Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. LXXXVIII.
Fonte:
Os Grandes Debates da Historiografia
| Página
Principal | © Manuel Amaral 2000-2015
|