A Revolução de 1383 - 1385 segundo António José Saraiva.
Capítulo IV. Reflexo na Literatura da Crise Social (... ) Veracidade e imparcialidade em Fernão Lopes O
evidente carácter polémico das crónicas de D. Fernando e de D. João I e
as ligações do seu autor com a corte levantam um problema que já tem sido
posto: o da imparcialidade de Fernão Lopes. O
falecido general Morais Sarmento pretendeu que Fernão Lopes tinha
cientemente prejudicado alguns dos seus biografados, como o rei D. Pedro, o
rei D. Fernando e a rainha D. Leonor Teles (1). Mas a sua
argumentação e os seus exemplos revelaram‑se infelizes porque foi
possível demonstrar que certos factos, segundo Morais Sarmento falsos e até
inverosímeis, tinham como fonte documentos autênticos de chancelaria. Onde
o crítico viu «grosseiras e odiosas patranhas» descobriu‑se que o
cronista se limitara a extractar ou parafrasear textos oficiais (2).
A probidade profissional de Fernão Lopes saiu altamente prestigiada desta
discussão; e quase todos concluíram que ele é um historiador fiel e
imparcial, em quem se pode ter toda a confiança. Esta
conclusão, a nosso ver, vai muito além das premissas, e confunde duas questões
que devem ser consideradas em separado: a questão da probidade profissional
e a questão da imparcialidade na interpretação dos acontecimentos. Que
Fernão Lopes é um cuidadoso investigador apoiado constantemente em
documentos, parece não haver dúvida, até prova em contrário. Que, além
disso, pelo senso crítico com que joeirou a sua documentação, pelo método
de crítica de fontes, ele vai muito além do seu tempo e se antecipa aos
historiadores do século XIX, é também um facto que ressalta da sua
leitura. O
historiador medieval (não falando nos historiadores latinos de origem eclesiástica)
é normalmente um memorialista. Joinville,
Commynes, Froissart são personagens que, pelo
papel político que desempenharam, ou pelas rodas a que. pertenceram, foram
participantes ou testemunhas de importantes sucessos; uma vez entrados na
velhice ou retirados à vida privada, ocuparam o tempo escrevendo as suas memórias.
Froissart foi um pouco mais longe, pois para alargar o âmbito da
narrativa deslocou-se a diversas cortes e cidades para ouvir
testemunhas dos feitos que
pretendia narrar; além de memorialista, foi também jornalista. Nenhum
deles, porém, procurou outro material que não fosse as suas próprias
recordações e os depoimentos orais das testemunhas dos acontecimentos. Na
Península ibérica a Crónica geral de Espanha iniciada por Afonso o
Sábio, e continuado sob Sancho IV, é em grande parte entretecida de
cantares de gesta, que conservavam a memória oral dos acontecimentos. E em
Portugal, depois de Fernão
Lopes, ainda Zurara e Garcia de Resende recorrem predominantemente ao
testemunho oral ou às recordações pessoais. Com
todos estes contrasta flagrantemente Fernão Lopes pela pesquisa e pela.
utilização do documento escrito. Esse documento pode ser uma memória
anterior, e nesse caso o cronista limita-se a transcrevê-la, sem meios para
controlar a sua veracidade. As crónicas dos reis de Portugal anteriores a D.
Fernando são, como notámos, uma justaposição de «histórias»
preexistentes, acerca das quais nenhuma garantia temos. Mas, já nesta parte,
Fernão Lopes soube encontrar outras fontes documentais: lápides sepulcrais,
cartas, actas, etc. É
o caso das inscrições das lápides sepulcrais de D. Afonso Henriques e de
D. Sancho I, e a carta do papa Inocêncio III convidando o rei de Portugal
para a Cruzada (3). A história da guerra civil entre Sancho e
Afonso aparece cuidadosamente documentada com as cartas do Papa ao Rei
destronado e com o texto do compromisso tomado por Afonso em Paris (4).
A partir do reinado de D. Afonso II o recurso à documentação de
chancelaria é constante. As
leis – como a das Sesmarias - as discussões de cortes, as negociações
diplomáticas, os tratados de paz, ocupam capítulos e capítulos que não são
outra coisa senão a transcrição ou o extracto de documentos da Torre do
Tombo. Acontece até que o cronista utiliza documentos autênticos sem
prevenir o leitor; e um investigador inglês pôde descobrir, levado pelo
formulário convencional de chancelaria de certo capítulo de Fernão Lopes,
um documento importante para a história da casa de Lencastre, que falta em
Inglaterra. (5) Fernão
Lopes tinha consciência desta peculiaridade do seu método. de historiador,
para a qual mais de uma vez chamou a atenção do leitor: «Ó
com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros de
desvairadas (6) linguagens e terras, e também públicas
escrituras de muitos cartários e outros lugares!» (7) E
transparece certa ufania na maneira que encarece o seu trabalho: «Quem
cuidais que não, se enfade de revolver cártários de podres escrituras,
cinja velhice e desfazimento nega o que o homem queria saber? Quem achara,
tantos epitáfios antigos que os moimentos em:. que são escritos dêem
testemunho de quem jaz neles?» (8) Esta
autenticidade documental das crónicas de Fernão Lopes dá‑lhes um carácter
muito consentâneo com a profissão de tabelião e arquivista exercida pelo
seu autor A leitura e a cópia autentica de documentos, a factura de pública-forma,
o emprego rigoroso do formulário de chancelaria, o escrúpulo
na indicação de locais e
datas, o relato minucioso das
solenidades legais e contratuais, a noção
de que todo o processo tem de ser instruído documentalmente são
qualidades profissionais que Fernão Lopes soube aproveitar na sua tarefa de
historiador. Até no estilo lhe escapam fórmulas quase profissionais: «...
e nós posto que as não víssemos [as cousas que relata] de muito revolver
com grande trabalho e diligência ajuntamos as mais chegadas a razão em que
os mais autores pela maior parte consentem, e portanto condenamos e
reprovamos e havemos por nulas quaisquer crónicas, livros e tratados que com
este volume não concordam» (9) Como
quem diz: este é o escrito autêntico pelo qual se deve fazer fé e
que anula: todo e qualquer outro que com ele não concorde. Note‑se de
passagem a autoridade de que neste texto se reveste o Cronista, como se atrás
de si tivesse uma autoridade pública a garantir a validade da sua pretensão. Enquanto
os outros historiadores da Idade‑Média se apresentam como testemunhas
particulares dos acontecimentos, ou como porta-vozes de testemunhas, Fernão
Lopes aparece como um magistrado profissional e legalmente qualificado
lavrando o instrumento dos acontecimentos, com a consciência plena da sua
competência profissional e o tom dogmático também característico da função.
Nesta posição se coloca logo no prefácio da Crónica de D. João l. Depois
de se referir aos que, por afeição à sua terra e aos seus compatriotas, se
afastaram da verdade histórica, acrescenta: «Nós
certamente, levando outro modo, posta de parte toda a afeição que por aso
das ditas razões haver podíamos, nosso desejo foi em esta obra escrever
verdade sem outra mistura, deixando nos bons sucessos. todo o fingido louvor,
e nuamente mostrar ao povo quaisquer cousas desfavoráveis, da maneira que
avieram. E se o Senhor Deus a nós outorgasse o que a alguns escrevendo não
negou convêm a saber, em suas obras clara certidão da verdade – sem dúvida
não somente mentir do que sabemos, mas nem sequer errando, falso não queríamos
dizer; como assim seja que outra cousa não é errar salvo cuidar que é
verdade aquilo que é falso. E nós enganado por ignorância de velhas
escrituras e desvairados autores bem podíamos ditando errar, porque
escrevendo homem do que não é certo ou contará mais curto do que foi ou
falará mais largo do que deve mas mentira neste
volume é muito afastada da nossa vontade. Ó com quanto cuidado e diligências
vimos volumes de livros de desvairadas linguagens e terras, e ainda públicas
escrituras de muitos cartários e outros lugares, nas quais depois de longas
vigílias e grandes trabalhos, mais certidão
haver não pudemos que a contida nesta obra! E sendo achado em alguns livros
o contrário do que ela fala, cuidai que não sabedoramente mas errando
muito, disseram tais cousas. «Se
outros porventura nesta Crónica buscam formosura e novidade de palavras e não
a certidão das histórias, desprazer-lhes-á nosso razoado, muito ligeiro a
eles de ouvir, e não sem grande trabalho a nós de ordenar. «Mas
nós não curando de seu juízo, deixados os compostos e enfeitados
razoamentos, antepomos a simples verdade à aformosentada falsidade. Nem
entendais que certificamos cousa salvo de muitos aprovada, e por escrituras
vestidas de fé. De, outro modo antes nós calariamos do que escreveríamos
cousas falsas». Este
prefácio que hoje nos parece banal é todavia um documento singular para a
época em que foi escrito. Depois de ter indicado as razões que levam a
maior parte dos historiadores a faltar à verdade (a conformidade natural com
a terra natal e a afeição pelos homens do mesmo sangue), o seu autor
discorre aí sobre o problema da verdade histórica, estabelece a diferença:
entre erro e mentira, indica e põe em evidência os seus próprios esforços
para superar as condições que naturalmente falseiam o juízo do
historiador; e enuncia brevemente algumas das fontes a que recorreu - tudo
problemas que andavam muito longe das preocupações dos cronistas Medievais.
E é de notar sobretudo a autoridade de que se reveste, a maneira digna e
grave, a consciência de uma importante função pública que acompanham a
sua peremptória declaração de que «mais certidão haver não pudemos que
a contida nesta obra», e de que se em outros livros
for achado contrário do que ela fala é porque esses livros estão
errados. Não é um simples particular quem fala, mas um magistrado como
sentimento de uma responsabilidade pública e
oficial. Ao
magistrado não incumbia apenas
arquivar e conhecer a documentação autêntica e os testemunhos, mas também
saber utilizá-los e induzir deles os factos. Sobre os mesmos factos há versões
contraditórias, registadas por escrito, variando
consoante as testemunhas e os partidos. O cronista tem de escolher.
Também neste aspecto Fernão Lopes se revela um historiador competente, que
avançando muito para além dos seus contemporâneos, se antecipa à critica
histórica do século XIX. Quando
dispõe de documentos autênticos, Fernão Lopes prefere a versão que é
abonada por estes: dizendo uns é
que o Mestre de Avis foi para as Cortes de Coimbra com o propósito de se
fazer proclamar rei, outros que com intenção diferente, Fernão Lopes
decide a questão exibindo a procuração passada pelo concelho de Lisboa aos
seus representantes em Cortes, na qual lhes são dados poderes para aceitar e
levantar por rei o Mestre de Aviz (10). Quando
o documento decisivo falta, o cronista inclina-se normalmente para a versão
que julga mais verosímil, «mais chegada a razão». Quando, enfim não
encontra qualquer critério decisório Fernão Lopes apresenta as duas ou
mais versões contraditórias, deixando a escolha ao leitor. «Desde o começo
desta obra - escreve ele - seguimos pôr desvairadas opiniões para cada um
reter qual mais lhe aprouver» (11). Convém
entretanto não exagerar o rigor crítico de Fernão Lopes. Nem sempre as razões
da sua escolha são explicadas ao leitor; como que utilizando um voto de
confiança, ele declara por vezes que tal ou tal versão é inexacta, e que a
verdadeira é a que ele passa a expor. Outras vezes as suas razões não são
inteiramente convincentes. Tendo encontrado escrito que perto de Santarém
Nun'Alvares foi abandonado pelos seus homens, amedrontados pela proximidade
dos Castelhanos, Fernão Lopes rejeita tal versão com o fundamento de que «o
conde não trazia tais gentes que sem porquê o deixassem, nem por que
passasse tão vergonhosa míngua, antes eram tão leais, e de tal modo.
Provados por bons e ardidos (12)
homens de armas que ainda que viesse todo o poderio de Castela antes se
deixariam todos morrer ante seu senhor que desampará-lo de qualquer modo que
fosse» (13). Mas
incluindo mesmo os casos numerosos em que Fernão Lopes não nos dá as razões
em que estriba a sua versão, é incontestável que pelo sentido da
autenticidade documental, pela crítica das versões contraditórias, e pela
noção de que há uma verdade histórica para além dos critérios pessoais,
ele singulariza-se entre os
historiadores medievais. É incontestável também, tanto quanto se tem
podido averiguar, a sua probidade profissional. Convém não perder de vista
que essas qualidades andam ligadas a certa mentalidades profissional e a
certa função responsável e pública - a de cronista oficial. Não
se deve, porém confundir a probidade e competência de um historiador com a
sua imparcialidade. Cada um destes aspectos levanta um problema distinto.
Dando por averiguado que Fernão Lopes foi honesto e objectivo na utilização
e apreciação dos documentos que escolheu para as suas crónicas, resta
saber se a sua condição social, a sua formação ideológica e até a própria
função de que estava incumbido não o situavam em certa posição, donde
era inevitável percepcionar certa perspectiva. Parece-nos
a priori que Fernão Lopes nunca poderia ser imparcial, no sentido de
não ter uma opinião acerca dos acontecimentos que relatou, e de não ser
parte interessada na actualidade cujos antecedentes imediatos constituíam o
assunto das suas crónicas. Bastava a sua envergadura intelectual
tornar inevitável que tivesse uma opinião sobre os factos; e bastava
a sua qualidade de burguês letrado, oriundo de mesteirais, ao serviço do
rei, numa época de intensos conflitos sociais, para o tornar parte
interessada num processo em curso. Seja
dita de passagem que o não ser imparcial não significa que não se seja
objectivo. Pelo contrário, suposto um dado conflito de grupos sociais, há
sempre uma posição donde se alcança uma perspectiva mais ampla e mais
justa da realidade, e outra donde essa realidade aparece deformada ou
amputada. A
leitura das Crónicas de D. Fernando e D. João I prova-nos que
efectivamente elas constituem um processo bem concatenado em todas as suas
partes, uma seriação de factos em ordem a uma demonstração, da qual
resulta a condenação de uma causa, e respectivos defensores, e a exaltação
da causa oposta. (1)
D. Pedro I e a sua época, Porto, 1924.
Fonte:
Os Grandes Debates da Historiografia
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