A Revolução de 1383 - 1385 segundo Damião Peres.
Capítulo II: A Revolução A
legalização do movimento revolucionário Sem dúvida, obedecendo ao plano anteriormente traçado e com o fim de transformar em golpe de Estado o assassinato do Andeiro, enquanto no Paço a tragédia se consumava, Álvaro Pais lançando mão do seu predomínio, levantava em massa o povo de Lisboa e levava-o sob as janelas da régia morada a reclamar são e salvo o Mestre de Avis, pois lhe fizera crer que a vida deste corria perigo. Assim, o crime individual do Mestre ia ter o referendum popular, e o
atentado transformava-se em primeiro elo de uma corrente revolucionária. Já algum mais exaltado propusera que se lançasse fogo ao palácio e já a ideia se propagara, quando, em pessoa, apareceu a uma janela, sorridente, o Mestre de Avis. Que se fossem em paz, dizia; ele ali estava, perfeitamente incólume; quem morrera fora o Andeiro. Romperam frenéticas as aclamações e, com elas, implícita, a afirmação de que o movimento insurreccional se iniciara. Partindo de ali foram os revolucionários exigindo que em sinal de regozijo todos os sinos repicassem. Silenciosa ficou, única, a torre da Sé. Era bispo D. Martinho, castelhano, e mais não foi preciso para que o silêncio ficasse explicado naqueles símplices cérebros populares. O silêncio era uma forma de protesto, nem mais, nem menos; como tal, devia ser castigado. E foi-o, acto contínuo, com a mais radical das penas: a de morte. Subiram alguns à torre e dela abaixo não tardou muito que viessem o bispo e dois convidados que com ele estavam. Sobre o cadáver do bispo, só porque era castelhano, cevou a multidão a sua ira (6). Os motins continuaram e foi necessária a intervenção do Mestre. Assim a sua autoridade se radicava, embora extra-oficialmente. Mas agora surgia a dificuldade de legalizar o acto revolucionário, sem deixar de dar o governo ao Mestre de Avis. Por diploma legal era regente Leonor Teles; o povo queria D. João. Como resolver o problema, conciliando tudo? Ora foi aqui que o senso burguesmente prático do incansável Álvaro Pais veio a revelar-se. Saltando por cima de todas as considerações de ordem moral, como bom político que era, propôs pura e simplesmente o casamento do Mestre de Avis com a regente Leonor Teles. Aceite o alvitre, partiram a caminho de Santarém, a fim de se avistarem com a viúva, Álvaro Pais e Álvaro Gonçalves Camelo, os quais foram afinal, como era de esperar, mal sucedidos na sua missão (7). Com razões de ordem moral, tentou o Cardeal Saraiva (8) contradizer a insuspeita narração de Fernão Lopes, sem ver que considerações dessa ordem não podiam então ser levadas em linha de conta. Já lá diz o rifão popular: «em tempo de guerra não se limpam armas». Mais razoável, pretendeu Soares da Silva (9) concluir do facto de ter sido comissionado para o empreendimento Álvaro Pais, odiado pela Rainha, que intimamente o Mestre não concordava com o alvitre adoptado. Tudo é possível; inclinamo-nos, porém, mais a supor que na questão moral ninguém, nem mesmo o Mestre, pensava. Entraria para alguma coisa, nesta tentativa de matrimónio, uma paixão do Mestre por Leonor Teles que, hipoteticamente Sandoval (10) lembrou como causa provável do assassinato do Andeiro e de que mais tarde se fez eco Oliveira Martins? (11) Ignoramo-lo completamente. Entretanto, enquanto Álvaro Gonçalves Camelo e Álvaro Pais iam a caminho de Alenquer para falar com a Rainha, o povo de Lisboa, reunido no átrio de S. Domingos resolvia eleger para Defensor e Regedor do reino o Mestre de Avis, oferecendo-lhe, caso aceitasse o encargo, corpo e bens até os últimos recursos. D. João pensou e resolveu aceitar a proposta. Os grandes da cidade chamados no dia seguinte para ratificarem a escolha do Mestre para regente, hesitaram a princípio. Não aceitavam cordialmente a Revolução. Demoveram-nos as ameaças do povo, expressas pela voz rudemente eloquente do tanoeiro Afonso Aires Penedo. O movimento revolucionário assentava; surgia um princípio de ordem. A
atitude do Mestre de Avis, a princípio dúbia e hesitante, ia definir-se
personificando a Revolução. Um só caminho de ora avante lhe era lícito
trilhar: o da emancipação definitiva da tutela castelhana, o da afirmação
da existência consciente de uma nacionalidade, porque era esse o único que
o povo, com a força da consciência resolvida ao sacrifício, lhe indicava e
lhe impunha. (6) Lopes, Chron. de D. João I; I, cap. 12.
Fonte:
Os Grandes Debates da Historiografia
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