A Revolução de 1383 - 1385 segundo José Mattoso.
LUTAS
DE CLASSES ? Os
contrastes verificados na descrição das estruturas sociais no capítulo
anterior [«O contraste entre a cidade e o campo»] mostravam já toda uma série
de pontos de fricção entre grupos sociais, de oposições de interesses, de
domínio pela economia, pela força ou pelo direito da parte de uns e de
submissão passiva ou revoltada de outros. O contraste mais evidente, mais
determinante do funcionamento das estruturas, verifica-se entre a cidade e o
campo. Este, como é óbvio, não pode evoluir para o conflito aberto, para a
revolta dos camponeses contra as cidades, porque o domínio destas se faz por
meio da subtil mutação do funcionamento dos sistemas de produção, de
circulação e de consumo e porque as cidades aparecem aos olhos dos
camponeses com a promessa de uma melhoria das condições de vida e de
trabalho, apesar da exploração a que elas os submetem. Mas a posse dos
instrumentos de produção; e simplesmente do poder e da riqueza, que garante
melhores condições de vida aos mercadores e nobres e leva a penúria aos
trabalhadores da terra, aos artífices e a alguns intermediários, cria situações
de conflito, umas vezes latente, outras aberto. É aquilo a que se pode
chamar o começo da luta de classes, embora esta se processe em termos e
condições bem diferentes das que caracterizam o mesmo conflito no mundo
capitalista. As lutas entre a burguesia e a nobreza inspiraram já as páginas
de Jaime Cortesão e de António Sérgio sobre o fim da Idade Média
portuguesa; as que opuseram os camponeses e o proletariado urbano aos
detentores dos meios de produção foram acentuadas em obras bem conhecidas
de Álvaro Cunhal, de António Borges Coelho e de Armando Castro. O que
aparecia demasiado influenciado por esquemas teóricos em todos estes
autores, mas sobretudo nos marxistas, ao ponto de se descrever como
surpreendente revolução do trabalho contra o capital, ou melhor, como
aplicação exemplar dos mecanismos da economia política marxista, levará a
tentativas de demonstração oposta, bem tímidas por sinal, da parte da
historiografia oficial durante os anos 40 a 60. Estas tentativas propunham-se
acentuar a complementaridade harmónica das forças sociais, a arbitragem
vigilante e equitativa do rei, a firmeza da autoridade estatal centralizadora
e progressista, precursora de um Estado Novo pacificador das tensões
sociais, sapiente condutor do povo em direcção à prosperidade material e
prudente preservador das suas tradições ancestrais e valores morais. O
sucesso político dos governantes de outrora, sobretudo os da Idade Média,
faziam de Portugal uma excepção no panorama retalhado de lutas fratricidas
e de turbulências feudais, permitidas por reis impotentes na repressão dos
privilegiados. (...) Os conflitos abertos O
levantamento mais exacto e objectivo de conflitos abertos durante o século
XIV deve-se a Maria José Ferro [Tavares] e abrange o reinado de D. Fernando,
isto é, o período que vai de 1367 a 1383. Aproveitando todas as referências
a confiscações de bens e castigos de «uniões» populares, encontra-se, na
verdade, uma quantidade considerável de factos que manifestam ambiente
propicio à revolta e a conflitos violentos. Uma parte das sentenças régias
caem sobre indivíduos acusados de terem colaborado com os Castelhanos em
tempo de guerra. Mesmo se excluirmos estes actos, cuja interpretação social
não é segura, encontramos ainda um bom número de casos que podem ser
interpretados seguramente como revoltas, embora não seja fácil medir
exactamente a sua extensão. A
mais conhecida é, evidentemente, a de Fernão Vasques, o célebre alfaiate
de Lisboa que levantou voz contra o casamento do rei em 1371. À primeira
vista, o motivo é um acto da vida privada do monarca; mas tendo os protestos
surgido em Lisboa, Santarém, Alenquer, Tomar, Abrantes e outros lugares,
como diz Fernão Lopes, tendo-se juntado até 3000 mesteirais, besteiros e
homens de pé e considerando finalmente que «muito nom prazia a todollos
fidallgos e privados d'el rei deste ajuntamento que o poboo fazia», não
pode deixar de se conceber o motivo como mero pretexto e de se atribuir ao
movimento uma amplidão que só pode indicar o seu carácter social. De
resto, o movimento arrasta-se e até se agrava. Entre 1373 e 1379 encontramos
a menção expressa de várias «uniões» (é o termo usado pelos
documentos) contra o rei. No primeiro daqueles anos são punidos dois
ourives, um mercador, um ex-escrivão dos judeus, um faqueiro, dois
carpinteiros e um correeiro de Lisboa, indivíduos de profissão desconhecida
em Abrantes, Tomar e Leiria (dois), e catorze revoltosos em Santarém, entre
os quais um tabelião, um estalajadeiro e sete sapateiros. Depois
documentam-se novas «uniões», designadamente uma em Portel em 1374, outra
em Montemor-o-Velho em 1375 e finalmente em Sousel, Valença e Tomar em 1379.
Dado que a maioria dos culpados cujas profissões são conhecidas exercem
trabalhos artesanais, compreende-se que a autora chame ao seu estudo A
Revolta dos Mesteirais. As
uniões deviam dirigir-se mais contra o grupo de nobres que, pelo menos desde
o casamento do rei com Leonor Teles, dominava a corte do que propriamente
contra o monarca. Personificavam neles os malefícios que assolavam o Reino e
oprimiam o povo. Os Teles e os seus protegidos, com o favoritismo (descrito
por Fernão Lopes com acinte) que ameaçava desviar em favor deles toda a espécie
de recursos, provocavam não só a oposição dos mesteirais, que tentavam
verdadeiras revoltas organizadas, como demonstra a palavra «união», as
quais se estendiam, espontânea ou concertadamente, a várias cidades do
centro do País, mas também dos procuradores dos concelhos que reclamavam
contra as abusivas doações do rei e a concessão de jurisdição sobre os
concelhos, o que fazia protestar também outros nobres que eram preteridos ou
afastados do poder. Dai a revolta aberta de João Lourenço da Cunha em 1379,
de Diogo Lopes Pacheco em 1380, do infante D. João em 1383 e logo a seguir
dos dois irmãos João Nunes e Pêro Nunes de Aguiar, quer dizer, de membros
das mais poderosas famílias do Reino. Acrescente-se a atitude crítica de
alguns Pereiras, certamente dos mais jovens, e ver-se-á como a oposição
vai alastrando sem cessar e dificilmente poderia deixar de eclodir quando a
regência foi entregue a D. Leonor. Estes
dados do problema mostram como devia ser provocatória, numa época de grave
crise económica e de contradições sociais, a concentração dos postos políticos
mais importantes nas mãos de um grupo restrito e ganancioso. O reinado de D.
Fernando., no entanto, não se resume ao abandono a esta facção. Tomou também
decisões de grande projecção, mostrou-se capaz de organizar
empreendimentos que requeriam tanto investimento material e humano como a
construção das muralhas de Lisboa e de outras povoações, deu apoio à
bolsa de seguro dos comerciantes marítimos de Lisboa e Porto, revogou alguns
dos privilégios concedidos aos nobres em 1371, reduziu a jurisdição
senhorial nos casos de crime, aumentou a frota marítima, protegeu os
armadores nacionais, promulgou a Lei das Sesmarias e praticou outros actos
que só podiam ser inspirados por conselheiros não nobres. O rei via-se,
assim, entre duas tendências, e oscilava de uma para outra sem conseguir
desenvolver uma política coerente. O
agravamento da revolta contra o partido dos Teles e a intervenção das
camadas inferiores da população nos movimentos insurreccionais faziam
prever a participação maciça da arraia-miúda na revolução de 1383. Os
levantamentos deram-se em muitas povoações alentejanas, nomeadamente em
Portalegre, Elvas, Estremoz, Évora, Beja, Odemira e Montemor-o-Novo, além
de se terem verificado também em Lisboa e no Porto. Noutras localidades é
ainda a plebe que obriga as guarnições dos castelos a negarem obediência
à rainha, como acontece em Óbidos, Santarém, Alenquer, Vila Viçosa, Mértola
e Braga. Estes factos são importantes para se poder deduzir a importância
das forças populares nos conflitos abertos contra os detentores do poder, no
momento em que a revolução alastra por todo o país. É evidente, porém,
que ela não se pode reduzir a um problema de luta de classes. A arraia-miúda
raramente tenta organizar-se para conservar o poder ou subverter a ordem
social. Basta-lhe expulsar ou linchar os simpatizantes do grupo que antes
dominava o rei ou aqueles que simbolizavam a opressão a nível local.
Basta-lhe, a seguir, impedir o regresso da mesma facção, protegida agora
por Castela e apoiada pelos nobres exilados. Basta-lhe, no caso de Lisboa,
conseguir a intervenção dos mesteres nas principais deliberações
respeitantes ao governo da cidade. Os
conflitos abertos têm, portanto, aspectos que não podem deixar de se
relacionar com a disparidade social e a oposição de interesses entre os
detentores do poder ou dos meios de produção e os explorados, mas
dificilmente se poderá compreender a complexidade da revolução sem o
recurso a factores de outra ordem.
Fonte:
Os Grandes Debates da Historiografia
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